Improvável o teto durar nos próximos seis anos


BRASÍLIA – O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga defende uma “flexibilização limitada e transparente” do teto de gastos, regra que limita o avanço das despesas à inflação, associada a um compromisso firme do governo com as reformas. Para ele, seria melhor manter o teto, mas isso pode não ser possível ou viável.

“Ainda há necessidades prementes ligadas à pandemia e, a médio prazo, de natureza social e ligadas à produtividade do Brasil que demandam algum crescimento do gasto”, afirma. Segundo ele, a flexibilização seria importante para evitar que surjam válvulas de escape de gastos que acabem desidratando o Orçamento.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

O teto foi um movimento muito importante, porque sinalizou o esgotamento do espaço para o crescimento do gasto público, que é algo que vem acontecendo há 30 anos. Em apenas dois desses anos o gasto não cresceu mais que o PIB. No entanto, a expectativa era de que o teto seria posto em prática através de reformas estruturais, que cuidariam dos vários componentes do gasto, os maiores deles com funcionalismo e Previdência, que somam, para o governo consolidado, não só federal, quase 80% do gasto. Se existe uma questão a se abordar é esta: o Orçamento está todo amarrado e começa a espremer áreas que têm impacto econômico e social da maior importância, inclusive investimento. Investimento público no Brasil está caminhando para zero.

Minha leitura é que o espaço para administração orçamentária desapareceu. Estamos no meio de uma crise. Me parece provável que, no curto prazo, alguma demanda social se mantenha. Eu me preocupo não apenas com o que está acontecendo agora, é possível segurar o teto e não sou contra que isso ocorra, mas acho muito difícil que o teto dure os seis anos que ainda faltam [a PEC que instituiu o mecanismo estabeleceu um prazo de dez anos até uma primeira revisão]. Acho praticamente impossível e não acho que seja recomendável.

Implícito no teto está uma queda da relação gasto público/PIB que não me parece razoável. Com a economia crescendo, as demandas todas aumentam. Acho pouco razoável que toda a economia que pudesse ser obtida com as reformas que proponho fosse para a redução da carga tributária. Ainda há necessidades prementes ligadas à pandemia e, a médio prazo, de natureza social e ligadas à produtividade do Brasil que demandam algum crescimento do gasto. A pandemia vai passar, mas nós vamos ter um Estado precisando de reformas e investimentos para que o objetivo de crescimento inclusivo seja atingido.

O governo defende o teto a ferro e fogo, com reformas para mantê-lo no formato atual. Isso pode se voltar contra o governo, com Congresso tomando a frente para mexer na regra?

Para segurar o teto por mais um ou dois anos, é mais ou menos consenso que seria importante a aprovação da PEC (Emergencial, que aciona alguns gatilhos de contenção de despesa), e que o desenho de um eventual Renda Brasil incluísse alguns itens que o presidente da República já descartou, como propostas apresentadas pelo Ministério da Economia de acabar com alguns programas para limitar o custo. O fato é que a conta não fecha. Há um desejo de não se aumentar a carga tributária, de não se eliminar nenhum tipo de benefício já existente e de manter o teto. Quando se joga em cima disso tudo um programa permanente de renda básica, a conta simplesmente não fecha. Essa discussão está no ar, ninguém ainda está colocando os pingos nos is, a prova disso é o Orçamento. Apresentou-se um Orçamento sem qualquer previsão para o ano que vem, quando o Renda Brasil é uma peça política chave do governo.

Um dos pontos mais importantes é focar na importância de se incluir tudo no Orçamento e também voltar a prestar atenção no saldo primário. Não vejo como deixar a coisa correr do jeito que anda. É um fator de risco relevante. A meta tem de focar no primário também. Há quem diga que a minha proposta, de uma flexibilização limitada e transparente do gasto, é mais dura do que se tem hoje. É verdade, na medida em que o que se tem hoje são déficits primários a perder de vista.

A equação é a seguinte. No curto prazo, além da PEC, considero necessário algum aumento de carga tributária, que apenas reponha o que a carga tributária perdeu com vários subsídios do bolsa empresário. Isso com eliminação de algumas brechas que do ponto de vista distributivo são inaceitáveis, como o Simples, lucro presumido, e também elementos da tributação da renda do capital no Brasil. O resto da proposta teria impacto mais no médio prazo, mas sinaliza uma mudança importante do regime fiscal brasileiro, que são os dois grandes blocos de gasto, Previdência e funcionalismo, sendo que a Previdência já foi objeto de uma reforma que atingiu metade do resultado necessário, falta ainda metade, isso em algum momento terá que ser feito.

No passado, focava-se na meta de superávit primário, sem foco no gasto. Mais recentemente as atenções se voltaram para os gastos, ficando solto o primário. Temos que olhar para ambos. Me parece ser necessário um esforço de uns três pontos do PIB, e haveria um ganho adicional de primário à medida que a economia se recupere. Estou imaginando sair de um déficit primário de 2%, 3% do PIB para um superávit de 3% do PIB. Isso teria que ser planejado dentro do Orçamento, e acho muito importante que se sinalize Orçamento plurianual para o governo se comprometer e, com isso, influenciar positivamente as expectativas. Aí é só fazer as contas e ver o que tem de espaço.

Seria um crescimento real bem modesto do gasto comparado com o que aconteceu este ano. Mas imagino que será necessário algum gasto além do teto algum crescimento eu espero que ocorra no ano que vem, seja emergencial, seja para o início de algo mais permanente. Mais para frente, à medida que as reformas estruturais comecem a acontecer, haveria espaço para aumentar investimentos em áreas de importância econômica e social. E para o País poder investir. Mesmo alguém bem liberal como eu não enxerga zero ou menos que 1% do PIB de investimento público. Estou falando de uma estratégia de curto, médio e longo prazo. É um plano de voo coerente que põe o dedo na ferida. Isso a curto prazo não é diferente do teto. Pode dizer ‘vou segurar o teto através dessas reformas e tentar segurá-lo o tempo todo’. A longo prazo, isso significa fazer uma opção, a meu ver política, de canalizar toda economia que se obtenha com reformas para a redução de carga tributária. É uma boa discussão para se ter mais adiante. Hoje, infelizmente, o Brasil passou do ponto. Entre elevar um pouquinho a carga tributária de forma socialmente justa e reforçar a saúde fiscal ou não fazer nada, dou o braço a torcer e defendo elevação. Então, o que proporia para o gasto é algum aumento a curto prazo, ainda ligado à emergência, e algum aumento real a médio e longo prazo para permitir esses investimentos. Sem prejuízo de haver alguma queda da relação gasto/PIB.

Eu considero, neste momento, não abordar as questões ligadas ao Imposto de Renda um sinal político. Considero a demora e agora o desejo de se limitar o impacto de uma reforma administrativa como oportunismo político. Onde eu vejo um xadrez complicado… vejo o governo deixando de fora do Orçamento a renda básica mais permanente, anunciando que não vai mexer em benefício existente. Aí o Executivo vai ficar na seguinte posição: ele vai ao Congresso dizer ‘ou vocês flexibilizam o teto para criar a renda básica, ou vão arcar com consequências políticas’. Tudo tem que estar no Orçamento. Em Brasília a gente sabe, tem a síndrome das prioridades invertidas. Gasta primeiro no que não é essencial e volta ao Ministério da Economia e diz que acabou o dinheiro, não pode deixar gente na calçada do hospital, etc. O Orçamento existe justamente para evitar esse tipo de negociação sequencial em que tudo é sempre prioritário e é difícil dizer não. Hoje estamos caminhando para espaços muito propícios a esse tipo de xadrez, algo a se evitar. Não é de hoje, nós sempre tivemos problemas com espaços orçamentários. Teve períodos da nossa história em que tínhamos três orçamentos, e todo mundo sabe que quem tem três não tem nenhum.

Hoje existe o orçamento de guerra, mas é temporário. Que nós estamos vivendo uma emergência é inquestionável. Que ela vai adentrar o ano que vem parece certo. Isso tem que ser abordado de maneira transparente e segura. E abrir mão do teto sem alternativa forte, muito forte, é perigoso. Meu artigo recente não diz ‘vamos liberar o teto, ponto’. O que estou dizendo é justamente o oposto. As condições para abrir mão do teto são muito duras.

Se isso for possível, tanto melhor, a curto prazo. Eu não sei se é possível e, dependendo do andar da carruagem na economia e na área sanitária, se isso é viável. São temas que deveriam estar sendo internalizados ao debate orçamentário.

Um dos pontos de pressão contra o teto é a defesa por mais investimentos públicos, que estão em níveis baixíssimos. Qual é a sua avaliação?

O que é investimento? É infraestrutura, é educação, é saúde. Não é razoável excluir do Orçamento. Ao mesmo tempo em que se defende itens estratégicos de infraestrutura, estratégicos do ponto de vista político inclusive, por que não defender o aumento do gasto na saúde? Por que não defender a própria Renda Brasil?

O sr. defendeu um olhar cuidadoso para o resultado primário. De 2021 a 2013, o governo prevê rombo de R$ 572,9 bilhões, num momento de dívida alta e com prazo menor. Qual é o tamanho do desafio?

A forma de se lidar com essa questão é a mais tradicional. Ser realista e definir prioridades. E equilibrar um pouco. Faz sentido voltar a ter foco no primário, obrigar a discussão a acontecer dentro do Orçamento. Agora, o que está acontecendo neste momento que dificulta muito? Houve um colapso econômico de enormes proporções a partir de 2014, 2015, com uma queda o PIB per capita, quando o normal teria sido crescer. O cobertor está muito curto em todo o lugar. O desemprego está alto, fora do governo os salários caíram. Tem de fato um quadro de muita escassez, de muito sofrimento. Isso tudo é difícil de se administrar.

Mas do ponto de vista da dívida, isso já virou um fator de risco, ou o governo tem as rédeas na mão?

Claramente o governo não tem as rédeas na mão, porque essas questões mais fundamentais não foram abordadas. Felizmente há um espaço grande de para ajuste nos gastos, ele é politicamente difícil. É o espaço para arrumar a casa e fazer o País engrenar numa trajetória de crescimento sustentável do ponto de vista fiscal e ambiental, e inclusivo. É difícil imaginar respostas adequadas para a falta de mobilidade social e a falta de oportunidade que se tem no Brasil sem gastar mais e melhor em áreas importantes, como saúde, saneamento. O investimento colapsou, e uma parte desse investimento vai ter que acontecer pelo governo.

A resposta, a meu ver, é sim, mas o governo já disse que não. Isso para mim é populismo e é um erro econômico também. Vamos ver o que vai ser apresentado. Sou defensor antigo da reforma do RH do Estado tema e estou torcendo que se anuncie alguma coisa que não fique tão amarrada quanto o que foi sinalizado pelo presidente da República.

Na reta final de discussões, alguns grupos ficaram de fora, e os Estados ficaram de fora também. Alguns Estados estão por conta própria tomando providências, então isso me dá alguma esperança. E o impacto da reforma que foi feita vai se fazer sentir um pouco mais adiante.