Libra


Muitas novas moedas surgiram nos últimos anos, e os formatos tão variados que se entende por que não se fala mais de “meio de pagamento”, mas em tecnologia de pagamento. 

 

A novidade mais instigante, dentre tantas, é a libra, proposta pelo Facebook como “uma moeda estável”, construída como uma “criptomoeda”, mas lastreada por reservas em ativos reais e governada por uma associação independente. 

 

Esse pacote é novo, mas seus elementos provêm de ao menos três experiências precursoras: a primeira, de 2007, é o M-Pesa, introduzido no Quênia pela operadora local de telefonia celular – Safaricom, onde a gigante inglesa Vodafone tem 40% de participação. O interesse inicial mirava no microcrédito, mas rapidamente se verificou que a maior demanda era para a transferência de dinheiro entre pessoas, e foi assim que o M-Pesa viralizou e se tornou dominante. As pessoas “depositavam” dinheiro, ou carregavam seus pré-pagos, e ganhavam a capacidade de enviar dinheiro, ou minutos, a pessoas/aparelhos por todo o país. 

 

O segundo conjunto de experiências precursoras é bem maior: some-se aí os 900  milhões de usuários do “Ali pay” e os 700 milhões do “WeChat pay” na China. Como qualquer viajante é capaz de relatar, não se usa mais dinheiro no país, nem cheques e  mesmo cartões de crédito. Tudo isso parece existir apenas num “subsolo” de onde esses dois gigantes são capazes de verificar a existência de poder de compra, convertê-lo em  formato digital e fazê-lo transferível entre celulares através de leitura de um “QR Code”. Nesse protocolo, transferir dinheiro é tão fácil quanto mandar uma foto, exatamente a experiência que a libra se propõe a oferecer. 

 

O terceiro conjunto é o das criptomedas, criaturas singulares cujo aspecto definidor mais frequente é um sistema de verificação e custódia descentralizado, conhecido como “blockchain”. A mais famosa delas é o bitcoin, mas quase todas as outras, e existem mais de 2 mil variantes, são empresas que emitem tanto “ações” (com direito a influir na governança) quanto “moedas”, que são apenas um outro tipo de passivo não exigível, ou dívida sem prazo de resgate, nem juros, que as pessoas aceitam por sua própria vontade.

 

Parênteses aqui: a obrigação de aceitar uma moeda, conforme fixada em lei (o  chamado “curso legal”), é o que define a moeda nacional. Qualquer outro instrumento de pagamento sem essa propriedade não é, juridicamente, moeda. 

 

O bitcoin é o caso mais espetacular de criptomoeda pois, se fosse uma empresa, valeria US$ 175 bilhões (valor de todos os bitcoins em circulação). Só que não tem ações, nem acionistas ou governança. Somadas, todas as outras (100 maiores)  criptomoedas, valem pouco menos de US$ 100 bilhões, sendo que 14 delas valem mais que US$ 1 bilhão. 

 

É com essas que a libra se parece. 

 

Nesses casos, o emissor é uma empresa, ou algo parecido, e a criptomoeda pretende ser o vértice de um “ecossistema” empresarial composto de “contratos inteligentes” e novos tipos de empresas sempre descritos em termos futuristas em um “white paper”, o equivalente ao “prospecto” nesse mercado de capitais desse novo offshore do futuro.

 

Nada diferente do que se passa com a libra, que adota um “blockchain” mais simplificado e eficiente (sem o absurdo consumo de energia do sistema original), se organiza como uma associação sem fins lucrativos e adota uma governança cheia de cautelas, envolvendo diversas empresas de tecnologia, mas nenhum banco.

 

Em resumo, o modelo já existe, apenas se teme a escala que possa alcançar uma vez patrocinado por um gigante como o Facebook, e se teremos controles internos como os que valem para os bancos. Em tese, todavia, qualquer empresa global, mesmo sem ser “big tech”, poderia empreender algo semelhante. O McDonald’s poderia criar o Mac, uma criptomoeda conversível em bigmacs. O Starbucks, o Star, funcionando como um “vale capuccino”, tudo em blockchain. Por que não? 

 

Na verdade, quando se faz essa pergunta, a inovação já se tornou inevitável.