O Primeiro Inverno do Governo Bolsonaro


“O orgulho nacional é, para os países, o que a auto-estima é para os indivíduos: uma condição necessária para o auto-aperfeiçoamento. Orgulho nacional excessivo pode produzir belicosidade, excessiva auto-estima pode produzir arrogância. Mas, assim como muito pouca auto-estima torna difícil dispor de coragem moral, orgulho nacional insuficiente torna improváveis debates políticos vigorosos e eficazes” (R. Rorty).

Há exatos 16 anos comecei a escrever neste espaço. Assim abria meu primeiro artigo (“Falsos dilemas, difíceis escolhas”): “Nos últimos doze meses, o Brasil mostrou ao mundo que continua avançando em termos de maturidade política e nível do debate econômico – apesar das aparências em contrário. ”Havia então razões para um realismo esperançoso; para crer que estávamos em processo de aprendizado que poderia vingar – se a ele fosse dada continuidade.

O Governo Lula tinha então a mesma idade do Governo Bolsonaro, que tem à frente problemas domésticos e internacionais não triviais. As circunstâncias de hoje são muito mais adversas que as de então. Ali, o contexto internacional era cada vez mais favorável, a herança não era maldita e a política macro-econômica não era aquela que o PT havia defendido – pelo contrário.

Dada a gravidade da hora, é valiosa a recomendação final do texto de Rorty: tentar tornar prováveis debates políticos “vigorosos e eficazes”. Isso exige a superação da excessiva polarização atual e o gradual deslocamento para o centro; exige atenuar as posições extremadas que hoje marcam o precário debate nas redes sociais.

Rorty escreveu a propósito de seu país, os EUA. Argumentou que a “esquerda” americana não deveria deixar a “direita” se apropriar totalmente da bandeira do orgulho nacional e do patriotismo; e que os debates não seriam “imaginativos e produtivos” a menos que “o orgulho sobrepujasse a vergonha”. Raymond Aron, por sua vez, recomendava que espectadores engajados deveriam evitar excessos, tanto de entusiasmo quanto de indignação. E Eduardo Giannetti, que os dois gumes da lâmina contivessem os excessos, seja de otimismo seja de pessimismo. Todos -Rorty, Aron e Giannetti – tinham em mente a necessidade de evitar polarizações excessivas que impedissem o diálogo e a busca das convergências possíveis. Que sempre existem.

O importante é que ganhem espaço a moderação, o diálogo e a tolerância. Esse sonho tem que ser construído ao longo dos próximos meses e anos. Porque é difícil imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas que marcou os primeiros seis meses deste governo. Seria possível argumentar que essas incertezas são apenas reflexo de longo processo de aprendizado em curso; dores do crescimento de uma ainda jovem república democrática. O fato é que antes de Bolsonaro, e desde 1945, o Brasil elegeu, pelo voto direto, 8 Presidentes da República. Quatro antes do Regime Militar de 1964-1985: Dutra, Vargas, Juscelino e Jânio; outros quatro desde então: Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma. Nada menos que quatro desses oito não terminaram seus mandatos. O atual Presidente desempatará esse 4×4 – de uma maneira ou de outra.

Em qualquer país do mundo, a grande maioria da população tem pouca memória em relação ao passado geral, e escasso horizonte de longo prazo à frente. Tomada pela vida privada, afazeres cotidianos, carece de paciência para conceitos, discussões técnicas e informações estatísticas. Apesar disso, pude perceber na prática, ao longo de décadas, o acerto da observação de um dos mais perspicazes analistas do desenvolvimento econômico, social e político. Refiro-me ao excelente texto de Albert Hirschman sobre democracia e debates públicos.

“Com grande frequência, os participantes desse debate têm apenas opinião inicial e incerta sobre as questões de políticas públicas. Anunciam com convicção sua visão, mas sua posição mais articulada surge apenas através da discussão, por vezes de prolongadas deliberações; cuja função é desenvolver argumentos, obter informações. Posições finais podem distar muito das iniciais – e não apenas como resultado de compromissos políticos com forças opostas”.

Nesse processo estamos e não temos alternativa senão nele persistir. Há exatos quatro anos concluí com a seguinte observação o artigo (“Tudo muito pouco usual”) neste espaço: “estamos talvez, no começo do fim de um ciclo, ao longo do qual uma determinada visão e uma determinada política ultrapassaram, por larga margem, sua funcionalidade, relevância e utilidade. ”Não tenho nada a modificar nessa conclusão; exceto retirar a palavra talvez.

As razões para tal são hoje conhecidas: o investimento no Brasil começou a declinar no terceiro trimestre de 2013, caiu 26% até o final de 2015 e 33% até o final de 2016. Hoje está ainda 27% abaixo de seu pico. A economia cresceu de 2011 até 2018, em média, 0,6% ao ano, o que significa uma queda da renda per capita, que ainda hoje é inferior ao nível de 2010. É a mais grave crise que jamais tivemos, e a de mais longa duração. São inegáveis as consequências em termos de desemprego, qualidade dos serviços públicos, desalento, distribuição de renda e carências sociais. Este 2019 será o sexto ano consecutivo de déficit fiscal primário do governo federal. Ao que tudo indica 2020 será o sétimo e 2021 o oitavo, dada a crise das finanças estaduais e municipais. Turbulenta década, esta segunda do século XXI.

Ainda assim, neste primeiro dos invernos do governo Bolsonaro, o Brasil não tem alternativa senão continuar a tentar. Tentar mostrar, a si próprio e ao mundo, que é capaz de avançar em termos de maturidade política e de elevação do nível do debate econômico sobre questões fundamentais: porque crescemos tão pouco, porque é tão desigual a distribuição de oportunidades; porque é tão penoso fazer as reformas. Volto ao realismo esperançoso de Hirschman: há que tê-lo. Apesar – e por causa – das aparências em contrário.