Retrocesso na democracia já ocorreu. O risco é que piore


RIO – A instabilidade política abala as instituições e já afeta a economia, afirma Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos. Ele vê, nas ações do governo e nas declarações do presidente Jair Bolsonaro , um retrocesso na democracia, em seu sentido mais amplo, que dificulta a retomada da confiança e dos investimentos. Arminio alerta para pressões contra o combate à corrupção e avalia que o país vive uma crise maior, de valores da sociedade, com efeitos inevitáveis para a economia.

— Cria um ambiente que não inspira o gasto e o investimento.

Havia uma avaliação de que a agenda liberal poderia blindar a economia de ruídos políticos. O senhor acha isso possível?  

Não. A política sempre afeta a economia, diretamente através das expectativas e indiretamente através de fatores que, à primeira vista, não parecem ser econômicos, mas que, na prática, são. Por exemplo: o tema da Amazônia está nas manchetes do mundo inteiro. A maneira como o assunto vem sendo conduzido (pelo governo) desde seu início afeta decisões em outras áreas. As pessoas param para pensar. Será que o que nós estamos vendo no meio ambiente e na educação vai se repetir em outras áreas? É claro que é possível. Está tudo muito imbricado com a questão maior do investimento, da confiança, até mesmo do gasto das pessoas, que ficam com medo. Além disso, o Brasil segue com um desemprego muito alto, muita gente vai ficando para trás e o ambiente de negócios fica prejudicado. Muita gente elogia a economia publicamente, mas não investe. 

O senhor citou educação e meio ambiente, mas houve um acirramento no tom das declarações do presidente. Isso afeta o clima de negócios? 

Sim, claro, deveria ter mencionado antes dos outros. O presidente é quem dá o tom, e ele tem feito mudanças na sua equipe que reforçam o seu estilo, muitas para um governo tão novo. É claro que a  direção do governo vem de cima.

Como vê o funcionamento das instituições? Elas podem afetar a economia?

Com certeza. Sobre o Executivo já falamos. O Judiciário tem tido enorme protagonismo recentemente com a Lava-Jato, que representou uma grande novidade para o Brasil, e que hoje volta à cena mais fragilizada. Parece que está se firmando a opinião de que, infelizmente, houve exageros. O Supremo, que no caso do mensalão agiu de maneira rápida e coerente, de uns tempos para cá vem tomando mais decisões de forma monocrática, e as coisas têm sido mais erráticas, ou não têm andado. Quando se desce para as instituições menores, mas que têm enorme importância, o quadro complicado se mantém. Por exemplo, as agências regulatórias. O bom funcionamento da economia depende do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que está com um número grande de conselheiros a nomear. Alguns tinham sido indicações dos Ministérios da Economia e da Justiça. Do além, essas indicações foram revogadas. Pegou mal para os ministérios e deu um sinal paralisante e velho. Cria um ambiente que não inspira o gasto e o investimento. 

As instituições estão abaladas pela instabilidade política?

Olhando o Brasil como um todo, tudo indica que o Mensalão e a Lava-Jato foram pontas de iceberg. Deve ter muito mais coisa por aí, nas esferas inferiores de governo, infelizmente um cacoete generalizado. As tensões aumentaram, com grupos claramente procurando atrapalhar o funcionamento da Lava-Jato. Mais recentemente, questões ligadas à família do presidente criaram uma “aliança” surpreendente contra as investigações, contraditória em relação ao que se viu na campanha. As instituições têm sido severamente testadas. 

Como avalia as consequências desse quadro?

O quadro geral inspira cuidados. Estamos olhando não apenas instituições, mas valores. Essa questão está presente desde a campanha, e diz respeito a preconceitos os mais variados, de questões raciais à misoginia ao obscurantismo. Esse clima afeta as decisões das empresas e das pessoas, e representa um retrocesso no desenho de país que temos que construir. Há no ar também uma certa forma truculenta de agir. O aparelho de Estado não pode ser pressionado ou usado para ameaçar pessoas. As discussões públicas precisam ser civilizadas e substantivas.

A sociedade brasileira está reagindo a esse retrocesso?  

Vejo a sociedade civil se mobilizando, e isso num momento econômico dificílimo. O terceiro setor vem se posicionando com firmeza, e a imprensa livre é crucial nesse momento. Essa é a principal arma de defesa, a liberdade de expressão, de grupos se organizarem, se posicionarem, e isso nós ainda temos. Não tem sido suficiente, mas ainda temos isso. Espero que em algum momento essa maré vire.

Vê algum risco de retrocesso na nossa democracia?   

Não há risco algum, há certeza: o retrocesso já aconteceu. O risco é que piore mais ainda. Sempre há esse risco. Isso é o que se vê no mundo afora. Existem dois aspectos do que vem acontecendo no planeta que são muito negativos para o Brasil. Do lado econômico, o mundo parece estar no fim de um ciclo de crescimento, com algum risco de recessão já visível a olho nu em várias regiões importantes enquanto nós, por outro lado, ainda estamos tentando sair do fundo do poço. O segundo ponto é político. O que se vê é uma proliferação de regimes onde as pessoas votam, mas que não são verdadeiramente democráticos. São com frequência populistas, autoritários, inimigos das instituições, inimigos da liberdade. E mais, com frequência descambam para o nacionalismo, que não deve ser confundido com patriotismo e outros sentimentos que podem ser bons.

O senhor mencionou o nacionalismo, surgiu um novo tema durante a crise das queimadas que é a soberania, depois que o presidente francês Emmanuel Macron introduziu a questão da internacionalização da Amazônia. Como vê este debate? 

Essa coisa da soberania é sempre um fantasma. Não vejo nossa soberania ameaçada, nem acho que vai haver uma invasão, que vão tomar a Amazônia. Isso é meio uma desculpa. Ameaçado está o planeta, e nós mesmos, se a Amazônia não for preservada. Se tem gente querendo nos ajudar, que se decida, ou sim ou não, dentro do que for do nosso interesse nacional. Acho que é natural que outros países queiram influenciar esse debate, matéria de primeira página de jornais do mundo inteiro. Essa é uma discussão quase infantil (sobre soberania). Se outros países fizeram bobagem no passado, não quer dizer que nós devamos fazer o mesmo agora. Eu penso que o Brasil, do tamanho que tem, com a população que tem, com a tendência demográfica atual, o Brasil cabe muito bem no seu espaço. É do nosso interesse preservar a Amazônia, acabar totalmente com o desmatamento, eu até defenderia o reflorestamento. É totalmente do nosso interesse ter um papel de liderança nesse processo. O Brasil poderia dar o exemplo para outros países, e assim acumularia um capital político enorme pelo mundo afora. Como em quase tudo, a minha preocupação é com o que está acontecendo aqui dentro, que sinais nós estamos dando a nós mesmos em relação ao futuro da Amazônia. E eu iria mais além, em relação a temas ambientais que têm a ver com a qualidade de vida nossa, do nosso povo, é o ar que nós respiramos, a água que bebemos, a comida que comemos, tudo isso. Para não falar em saneamento, que segue um antigo escândalo aqui no Brasil. 

Uma piora na imagem do Brasil pode dificultar a atração de investimentos?

O Brasil segue sendo um captador de investimentos pela sua escala. Do ponto de vista estratégico, é difícil imaginar grandes empresas do mundo não tendo uma presença aqui. Ocorre que o investimento estrangeiro é pequeno perto do local. Portanto, a minha preocupação maior é conosco, aqui dentro, pois o investimento de nós mesmos no nosso próprio país anda muito baixo, tanto o privado quanto o público. O privado por razões de confiança. E o público porque o governo quebrou. O investimento público no Brasil está próximo a 1% do PIB, enquanto no passado estava em 5%. O governo vem trabalhando em algumas frentes de reformas na área econômica, que são positivas, mas esse quadro geral ainda não permite que se destrave um processo (de retomada dos investimentos e do crescimento à altura do que em tese seria possível.  

Havia a expectativa de que, com a reforma da Previdência, o clima ficaria favorável a investimentos. Agora, qual deve ser a reforma prioritária?

A reforma tributária já está em discussão e é prioritária. A grande área de reforma do Estado, reforma administrativa e liberdade econômica é também prioritária. Mas outras áreas precisam melhorar, e muito. É fundamental tratar da nossa imensa desigualdade. E não é uma questão “apenas” de cunho social, como se isso não bastasse, mas vai além. Um trabalho mais profundo nesta área teria consequências positivas para o crescimento. Primeiro, porque é algo que, se não tratado, vai continuar a polarizar o nosso país, vai nos fazer vítimas fáceis de populismo e, portanto, tem um impacto indireto gravíssimo sobre a capacidade de o Brasil melhorar. Há também no campo da igualdade de oportunidades, que não existe no Brasil, um espaço enorme para investir. O Brasil precisa obedecer ao comando constitucional de ter saúde de qualidade para todos. A educação, além de ser o instrumento mais clássico de uma agenda de igualdade, contribui também para aumentar a produtividade e o crescimento. Mas essa agenda da desigualdade anda largada. Não vejo como prioridade clara deste governo. De vez em quando alguém solta alguma ideia, fala alguma medida, mas são pontuais num quadro geral bastante deficiente.

O senhor pensa em ampliar sua participação na política?  

Eu não penso em ter uma participação direta na política, eleitoral, isso está fora dos meus planos. Mas me mantenho ativo, me dedicando a estudos e a conversas com muitos. Continuo aberto a conversas, com Luciano Huck, com o ex-governador Paulo Hartung (do Espírito Santo) e vários outros. Tem muita gente mobilizada, muitos movimentos importantes com os quais me identifico, como Renova, Agora, Livres, Acredito e outros. Essa é a hora de se debater os grandes temas, em busca de convergências.