A CAPES e suas avaliações


Concordo com Robert Verhine, em sua resenha do livro de André Brasil sobre o sistema brasileiro de avaliação da pós-graduação, de que se trata de uma contribuição importante para o entendimento do tema. Embora tenha também lido o livro, este comentário não pretende ser uma outra resenha, mas uma reflexão mais geral sobre a questão da pós-graduação brasileira e o sistema da CAPES.

Minha principal observação é que os diferentes aspectos e modalidades da avaliação, apresentados no livro e mencionados na resenha, são tratados sobretudo como se fossem questões técnicas, quando na verdade elas refletem concepções diferentes sobre temas como a autonomia universitária, o papel do governo no apoio e ou indução da qualidade e produtividade dos programas de pesquisa e pós-graduação, e inclusive sobre a própria natureza dos cursos de pós-graduação.  Isto aparece com clareza na parte em que se contrastam os sistemas holandês e brasileiro de avaliação. O sistema holandês tem como base a autonomia das universidades, que competem entre si mostrando suas qualidades e com isto atraindo estudantes, recursos públicos e privados etc.  O governo participa tornando explícitos determinados padrões, e financiando diferentes programas ou instituições conforme seus resultados. O modelo brasileiro é hierárquico, top-down, e tem por objetivo controlar e regular o sistema.

É importante lembrar que este modelo foi criado na década de 1970, concebido inicialmente como um mecanismo para a formação de professores pesquisadores para as universidades que estavam sendo reformadas segundo o modelo norte-americano das “research universities” e para os centros de pesquisa que estavam sendo estruturados segundo as políticas do Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico da época. Data daqueles anos a distinção entre a pós-graduação “estrito senso”, para a formação de pesquisadores, e “lato senso”, para qualificação profissional mais avançada para pessoas com diplomas de nível superior . Com o tempo, ao se ampliar, o setor estrito senso passou a incorporar cada vez mais pessoas interessadas em obter uma qualificação profissional ou um título que pudesse levar a uma promoção e maior salário na carreira, e não se qualificar como professor pesquisador. Isto ocorreu sobretudo nos mestrados, concebidos inicialmente como substitutos provisórios para os doutorados que o país ainda não tinha, mas que se tornaram permanentes. Além disto, na década de 90 a CAPES começou a incentivar a criação de “mestrados profissionais” que se afastavam ainda mais do conceito original de pós-graduacão estrito senso.

O resultado foi que se estabeleceu, na pós-graduação, uma dualidade semelhante à que havia também na graduação:  por um lado, um sistema regulado, subsidiado, baseado quase totalmente em instituições públicas, e por outro um sistema aberto, desregulado e pago, baseado quase que totalmente no setor privado. Hoje, o setor público tem cerca de 450 mil estudantes, dos quais 300 mil em programas de mestrado e o privado, cerca de 1.300 mil, segundo os dados da Pnad contínua. Embora, nos extremos, os dois setores sejam muito diferentes, com os doutorados e programas de excelência em pesquisa concentrados no setor público, e a proliferação de cursos de aperfeiçoamento, como os MBAs, no setor privado, existe uma grande área de superposição, sobretudo nos mestrados, que faz com que esta dualidade precise ser revista.

Reconhecendo que a formação para a pesquisa científica havia deixado de ser o objetivo principal da maioria dos programas, a CAPES começou a buscar outros critérios de avaliação além dos relacionados à produção  científica, o que foi tornando o sistema de avaliação cada vez mais complexo, com várias tentativas de combinar diferentes dimensões, mecanismos de avaliação, fontes de dados etc., apresentados no livro e discutidos na resenha de Verhine. Mas a questão fundamental, que precisaria ser discutida, é se já não seria a hora de desmontar este sistema criado meio século atrás e substitui-lo por um sistema semelhante ao que existe na Holanda e outras partes do mundo, em que as instituições oferecem os cursos e programas que consideram mais adequados, e os governos se responsabilizam por manter um marco regulatório amplo e programas específicos de fomento para atividades consideradas prioritárias, sem pretender regular e controlar, no detalhe, o funcionamento das instituições.

O  antigo argumento em defesa do sistema centralizado da CAPES, de que o sistema universitário brasileiro é novo e incipiente, poderia fazer sentido meio século atrás, mas hoje a CAPES é uma anomalia,  sem similar em outros países, e com disfunções importantes. Uma delas é complexidade cada vez maior do sistema de avaliação que procura ainda manter, que se torna cada vez caro de implementar,  difícil de entender e estimula comportamentos conformistas por parte dos programas, muitas vezes mais preocupados com seus conceitos do que com os resultados de seus trabalhos. A outra é a artificialidade da separação entre os dois setores, o público/subsidiado/estrito senso e o privado /pago / lato senso. O terceiro é captura dos sistemas internos de avaliação da CAPES pelas corporações profissionais das diferentes áreas de conhecimento, que faz com que os critérios externos de qualidade (pelo qual os programas de nível 7 deveriam ter um padrão de qualidade internacional, etc.)  sejam constantemente relativizados. O quarto é o cerceamento da autonomia universitária, na criação de programas inovadores de pesquisa, formação avançada e inovação. Outra disfuncionalidade é a inequidade do sistema, já que os alunos dos cursos de pós-graduação, tanto no setor público quanto no privado, provêm de nível social elevado, e não há justificativa para que os do setor público tenham seus cursos subsidiados e recebam bolsas, enquanto os do setor privado tenham que pagar. Hoje, a maior parte dos recursos das agências federais de apoio à pesquisa universitária, CAPES e CNPq, se destina a bolsas de estudo, restando pouco para o apoio à pesquisa propriamente dita. E agora, como seria inevitável, começam as políticas de cotas para o setor estrito senso. Muito parecido com o que já acontece com os cursos de graduação, com um setor público minoritário, subsidiado e controlado, e um setor privado cada vez maior, competitivo e quase totalmente desregulado.

Ao não tratar destas questões mais fundamentais sobre papel do governo, autonomia universitária,  setor privado, espaço para a regulação etc., a discussão sobre avaliação acaba se perdendo em tecnicalidades que na verdade não têm maior importância.  Um exemplo é a questão dos rankings, ou conceitos agregados, de 1 a 7  – por que eles existem e são mantidos no Brasil, mas não na Holanda? Isto tem a ver, claramente, com a regulação top-down do sistema brasileiro, que estimula comportamentos conformistas e acaba, em última análise, perdendo sentido, por causa dos interesses conflitantes das diferentes corporações e a própria complexidade do sistema de indicadores.  Outro é a questão da autoavaliação. Ela é importante para instituições que precisam competir por qualidade em suas diversas dimensões e ante uma ampla clientela de usuários e potenciais financiadores, mas se transforma em um ritual sem relevância se sua única função é atender aos critérios formais estabelecidos pela burocracia reguladora. Não é uma questão “técnica” nem de “cultura acadêmica” enquanto tal, e não há como resolvê-la através de diretrizes ou formulários de um ou outro tipo.

Em conclusão, o que precisa ser entendido é a verdadeira natureza do setor de pós-graduação no Brasil, sua relação com o sistema de pesquisa e inovação (que não são duas faces da mesma moeda) e o papel da CAPES, que não pode continuar sendo o mesmo de meio século atrás. É a partir daí que podemos entender melhor as virtudes e defeitos de seu sistema de avaliação.