Armínio alerta para o tamanho da dívida em hipotecas nos EUA


Ex-presidente do Banco Central comentou cenário externo e consequências do acirramento do conflito entre o Hamas e Israel 

O economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, conta que fez uma análise recente do mercado de hipotecas americano e concluiu que a dívida hipotecária é quase tão grande quanto a dívida pública americana, que é altíssima. Isso é mais um complicador na conjuntura econômica, em um momento em que tudo fica mais instável com o acirramento do conflito entre Hamas e Israel. 

Fraga, com quem conversei ontem, lembra que os juros americanos já subiram muito. E isso torna essa dívida mais cara. Abaixo as principais partes da minha entrevista com Armínio Fraga sobre as consequências econômicas da guerra. 

Míriam Leitão – Na sua opinião quais serão os desdobramentos dessa crise provocada pelo ataque do Hamas a Israel? 

Armínio Fraga – Do ponto de vista de mercado hoje, não teve nada assim muito grande ainda. Normalmente nessas horas você tem uma corrida na direção dos ativos menos arriscados. A pergunta é quanto que isso pode influenciar a trajetória do próprio Fed, que tende a ser um fator dominante nesses momentos de subida de juros. É histórico. Aquela história de que quando eles espirram lá em cima a gente pega uma pneumonia aqui embaixo não mudou muito não.

Míriam Leitão – E o que acontecerá com o Brasil? 

Armínio Fraga – Aqui no Brasil essa crise está casando com um período em que acredito que a ficha está caindo de que esses ajustes na área fiscal são muito difíceis, e que a agenda de desenvolvimento do país não está clara. Haddad [o ministro da Fazenda, Fernando Haddad] faz um bom discurso, mas a gente não sente que isso vem com uma base de convicção. E então fica tudo meio no ar. 

Há temor que o ambiente externo nos atrapalhe aqui dentro, caindo na real de que a gente tem um longo trabalho pela frente. E sem mexer no lado do gasto realmente é muito difícil. Então o Brasil está entrando nesse momento um pouco fragilizado. 

No Brasil o quadro geral é muito difícil. Se os caras têm uma restrição de não poder tocar no gasto, nenhuma reforma mais profunda será feita. Fica difícil, e será necessário mexer na Previdência de novo. Não tem jeito. 

É preciso uma reforma administrativa e do estado em geral, que pegue Executivo, Legislativo e Judiciário, por exemplo. Governo federal, estados, municípios. O país está com uma espécie de infecção generalizada nessa área toda, e não é com um band-aid, um Tylenol, que vai resolver.

O país mais arrumado cresceria a 3%, 4% ao ano. É tanta coisa que poderia melhorar e que criaria um círculo virtuoso maravilhoso. Você tem que ser até burro para não querer combater as desigualdades todas, e isso aí para mim significa boa saúde pública, boa educação pública. Você pode terceirizar, experimentar. Tem um mundo de coisas boas pra gente fazer. 

Míriam Leitão – Os juros americanos vão subir? 

Armínio Fraga – Os diretores do Federal Reserve estão dando sinais de que, embora o número de empregos que saiu agora tenha sido gigante [o número de vagas criadas em setembro foi quase o dobro do esperado], olhando para frente é possível entrar talvez em compasso de espera. Os juros estão claramente restritivos aqui no Brasil também. 

Lá eles ainda não completaram o que gostariam em termos de trabalho de inflação. Os juros reais americanos de 10 anos, os TIPs [títulos indexados à inflação] subiram de uma taxa negativa de 1% em um determinado momento para mais de 2,5%. Uma alta de 3,5 ponto percentual, e isso causa uma certa apreensão sobre entender o que vai acontecer no mercado de hipotecas americano, que é gigante. 

A dívida de hipoteca nos Estados Unidos está quase do tamanho da dívida pública americana, que por sua vez, está lá na lua. E continua subindo. E com a alta dos juros, esse mercado é afetado. 

Se você olhar os juros nominais dos Treasuries no mesmo período, também subiram muito. O de 10 anos chegou a 0,50%, e agora está em 4,80%. E os juros americanos já vêm subindo desde meados de 2020. Então já estão há mais de três anos em alta. Ainda tem essa situação da Rússia, que acontece há um tempo já, e agora essa situação louca em Israel. Tem essa tensão com a China e tem o monstro da mudança climática também correndo por fora. 

Míriam Leitão – A deterioração da situação internacional poderia vir através da piora desses ativos? Da alta de juros, de dólar, do petróleo? 

Armínio Fraga – Normalmente os bancos centrais nessa hora não jogam gasolina no fogo. Então a minha expectativa é que eles vão dar uma segurada. Você está lá no Banco Central, com os juros restritivos e a inflação ainda não está na meta. Eu posso apertar mais ou dar um pouco mais de tempo. Eu acho que eles vão dar um pouco mais de tempo. 

A mesma coisa aqui no Brasil. Não está exatamente na meta. Não está nem perto, se você olhar a taxa implícita das NTN-Bs [títulos anexados à inflação], a taxa de inflação é muito alta. Mas o que o cara faz no meio dessa confusão? É apertar mais? Eu acho que não. Eu acho que eles agiram corretamente. Se demorar um pouquinho mais, demorou. O importante é não perder o senso de direção. Ter ortodoxia num momento assim é um grande perigo. Então a última coisa que você quer nesse momento é banco central que está com fósforo lá no barril. 

Acho que os caras vão segurar um pouco. Mas sempre seguram. E isso significa não subir os juros. 

Míriam Leitão – Há outros pontos de preocupação na economia americana? 

Armínio Fraga – Eu fiz outro dia o gráfico dos preços dos imóveis lá nos Estados Unidos. Os imóveis hoje estão mais ou menos no pico do que foi considerado a maior bolha da história, corrigido pela inflação lá de 2007 e 2008. Agora as hipotecas estão muito mais bem documentadas, mas o juro real foi lá para a Lua. O mercado vai dar uma freada. 

Este é tipicamente um ano de retranca mesmo. Significa que as expectativas ficam meio deprimidas, a economia dá uma segurada, é natural. Eu acho que deveria ser a consequência natural, salvo alguma surpresa positiva. Mas no momento não é um cenário muito provável. 

Míriam Leitão – Lá no Oriente Médio pode escalar e ir pra uma crise mais ampla? 

Armínio Fraga – Acho que pode. Não sei quais conversas estão tendo nos bastidores, quem confia em quem. Eles mesmos não se entendem. 

Da mesma forma, acho que nessa questão climática a coisa não vai andar se não houver uma paz pelo planeta entre China e Estados Unidos, pelo menos uma trégua. Eu acho que se eles não acordarem não está nem perto de andar. 

Se não houver uma trégua para destravar tudo que poderia acontecer, eu acho que a gente vai estar indo em direção a um desastre, e o planeta já está dando sinais horrorosos. Está pior do que se esperava, com essa seca no estado do Amazonas, o que aconteceu em Porto Alegre, na Líbia. Está tudo meio estranho. 

Míriam Leitão – Você tem estado cada vez mais preocupado com a questão climática, não? 

Armínio Fraga – Eu fiz parte de um pequeno grupo que assessorou o G20 a pedido do governo indiano, para fazer recomendações sobre bancos multilaterais, sobretudo com foco nas grandes questões que esses bancos perseguem, que são pobreza, bens públicos globais e hoje em dia sobretudo mudança climática. 

Larry Summers [ex-secretário do Tesouro dos EUA] e outros caras chamaram mais seis pessoas, e eu participei dessa discussão durante vários meses. Disseram que levaria três meses, e levou oito. Mas foi muito interessante. Eu saí seguro de que esse troço não ia andar muito bem. A organização do planeta para lidar com essa situação, esse imperativo, está devagar. Os esforços são modestos.