Críticas do governo à responsabilidade fiscal são ‘problema muito sério’


Ex-presidente do BC afirma que esperava mais do governo Lula, especialmente na economia

Apesar de decepcionado com a postura do governo, de um certo “inconformismo com a ideia de responsabilidade fiscal como pilar para se desenvolver o país”, Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, disse ao Valor que não mudaria o seu voto dado a Lula/Alckmin no segundo turno das eleições de 2022.

Ele concordou que o mercado financeiro “acalmou-se”, mas salientou o Brasil está pagando juros reais de 6% nas NTN-B para manter essa situação. “A taxa de poupança caiu e o investimento está em queda. O mercado não está dando essa folga toda”, disse.

Sobre o aumento da carga tributária embutido no pacote de medidas para aumentar a arrecadação como principal instrumento para zerar o déficit primário no ano que vem, seja na tributação dos fundos offshore, seja nos fundos fechados, Arminio avaliou que ele vai na direção de uma maior justiça tributária. Ponderou que não é “contra o aumento da carga que representa redução dos gastos tributários. Acho isso muito razoável”.

A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: Ao fim do primeiro ano do governo Lula, qual a sua avaliação?

Arminio: Há um certo alívio em relação a temas mais espinhosos, ligados à democracia, e também no que diz respeito a algumas áreas que vinham mais estressadas, como a relação entre os três Poderes. Mas, no geral, sobretudo na economia, eu esperava mais.

Valor: O que o senhor esperava?

Arminio: O governo largou com uma posição surpreendente, para mim pelo menos — que ouvi o presidente repetidas vezes dizer que não havia qualquer razão para preocupação com a área macroeconômica, que ele, quando presidiu o Brasil, sempre teve superávit primário —, e, de repente, o que aparece é uma postura de inconformismo com a ideia de responsabilidade fiscal como pilar para se desenvolver o país, inclusive criando espaços para proteger os mais pobres, que sempre foi a preocupação dele. Eu enxergo aí um problema muito sério.

Valor: Por quê?

Arminio: O governo não está dando sinais concretos de buscar paz macroeconômica. O arcabouço foi um passo na direção certa, mas não foi suficiente e está sendo, hoje, questionado pelos analistas que fazem contas. A exclusão do lado do gasto é um duplo problema. De um lado, é um problema fiscal, de endividamento público; mas eu iria bem além, venho dizendo há muito tempo que o Brasil precisa repensar o gasto público, redefinir prioridades, e eu não vejo isso acontecendo.

Valor: Até há pouco tempo falar em aumento da carga tributária era quase que um palavrão. Mas agora parece que todos aceitam como parte do ajuste do governo Lula. É isso mesmo?

Arminio: Eu não sou contra o aumento da carga que representa redução dos gastos tributários. Acho isso muito razoável, Creio que cabe, em algum momento, abrir a discussão sobre o tamanho do Estado, mas eu não misturaria as coisas.

Valor: Esse aumento na tributação sobre a renda do capital faz justiça tributária?

Arminio: Faz. Não está claro o que vai acontecer com o Simples e o lucro presumido. Esses seriam movimentos mais importantes do que os ajustes na tributação da renda do capital (tanto nos fundos offshore quanto nos fundos fechados) para se fazer justiça social.

Valor: O mercado parece calmo com o ajuste fiscal tal como prometido pelo ministro Fernando Haddad. Não está?

Arminio: O mercado é um bicho muito pouco confiável no curto prazo. O Brasil está prestes a aprovar uma reforma tributária importante, o que é bom. E evitou-se propostas do PT que teriam sido catastróficas: mexer na Previdência, para piorar; mexer nas regras trabalhistas e de saneamento, para piorá-las. Foram boas notícias. É difícil dizer que o mercado está apoiando quando você têm as taxas de juros reais entre 5,5% e 6% nas NTN-B. Sem dúvida, as coisas acalmaram um pouco. Mas o Brasil paga para ter essa calma com esses juros. A taxa de poupança está em queda, os investimentos caem. Então, o mercado não está dando essa folga toda. O câmbio, sim, seria um fator, mas tem tudo a ver com os juros e, é claro, com o espetacular desempenho do agronegócio.

Valor: O senhor vê limite para os juros caírem para um digito com o fiscal tal como está?

Arminio: Eu não descarto uma queda no caso de o país entrar em recessão, mas aí seria pelas razões erradas. Taxas de juros muito altas não são normais. Acho que, se o Brasil arrumasse a casa na área econômica, a taxa real cairia para uns 3% a 4%. O desafio é ter juros baixos sem perder o controle da inflação e do balanço de pagamentos

Valor: O senhor diria que há aspectos positivos do lado ambiental?

Arminio: Há, mas é muito curioso: Brasil vai pra Dubai, para a Conferência do Clima, e volta membro da Opep+, não é exatamente um bom sinal.

Valor: Mas e a redução do desmatamento?

Arminio: Sim, a ideia de que o desmatamento tem que parar e que o Brasil tem que aproveitar a sua força natural para incorporar essa dimensão em uma estratégia de desenvolvimento faz todo sentido. Mas o ano está acabando e o governo fez alguns comentários positivos, mas não apresentou muito. O próprio ministro Fernando Haddad falou, agora em Dubai, na estratégia, em um programa nessa área de transição energética e temas afins. Mas o programa em si não apareceu ainda. Claramente não é uma prioridade alta, porque passou-se o ano inteiro e um tema que foi anunciado desde o início ainda não engrenou.

Valor: O presidente continua se aproximando de ditadores…

Arminio: Infelizmente isso não é novidade. Eu tinha esperança de que ele adotasse uma postura diferente, mas não é o caso. É uma pena. Agora está lá o Maduro [Nicolás Maduro, presidente da Venezuela] dando uma rasteira em nós, de certa maneira, com essa ameaça de ocupação da Guiana. Não é algo que faça o menor sentido para nós, estarmos perto dessa liderança que destruiu o seu país. Aliás, esse é um tema clássico: governos em apuros inventam guerra. Era para termos uma postura mais sisuda. Tudo bem, é nosso vizinho e vamos dialogar, mas não é sorrindo na foto, para dar um exemplo mais leve.

Valor: A política das estatais também vem sofrendo mudanças. As empresas, que eram superavitárias, agora apresentam déficit, que neste ano se aproxima da casa dos R$ 6 bilhões. E a Lei das Estatais, que as protegia de indicações políticas depois dos saques feitos na Petrobras desvendados pela Operação Lava-Jato, está sendo aliviada pelo governo.

Arminio: É. Mas a lei, que continua existindo, diz que, em casos de decisões não econômicas que gerem prejuízos, o governo tem que cobrir. Não estou falando de roubalheira, mas de manipulação da política de preços dos combustíveis.

Valor: Dadas as frustrações na área econômica, o senhor manteria o seu voto nas eleições do ano passado?

Arminio: Sim. Eu não mudaria meu voto do segundo turno das eleições, mesmo sabendo da decepção na área econômica. Eu votei da maneira que eu achava razoável.