Democracia, autocracia e crescimento econômico


“Ah, se eu fosse ditador por um dia…”. É um pensamento que pode ocorrer ao nos depararmos com a distância entre o que o país poderia ser e o que é na atualidade. Tanta coisa para consertar e tantos vaivéns em Brasília que parecem levar o país para lugar nenhum!

Economistas por vezes sucumbem a essa tentação autoritária. Em 1974, no auge do chamado milagre econômico da ditadura militar, Mario Henrique Simonsen, então ministro da Fazenda, exaltava a fórmula matemática que reajustava os salários, asseverando: “Uma fórmula desse tipo tem a vantagem de substituir um infindável jogo de greves e pressões por um simples cálculo aritmético”. E arrematava: “O suposto milagre, na realidade, é o corolário da aplicação de um modelo econômico teoricamente bem estruturado”.

A passagem da renda média para a renda alta está associada ao aperfeiçoamento democrático

Mas não foi bem assim. Não dá para julgar o desempenho da ditadura militar só na fase ascendente do ciclo econômico. Entre 1968 e 1973, a capacidade ociosa preexistente e uma grande melhoria das relações de troca (preços das exportações em relação aos preços das importações) ajudaram o país a crescer. É preciso ver a obra completa. A insistência em querer crescer a qualquer custo, mesmo face às condições externas adversas que se manifestaram nos anos 1970, levou ao acúmulo de uma dívida externa impagável, à dupla recessão econômica de 1981 e 1983, à aceleração da inflação para 200% em 1984. Tristes legados dos quais o Brasil só se livrou com o Plano Real em 1994.

A notar também que o crescimento médio anual do PIB na ditadura, de 1964 a 1984, foi menor do que no período democrático que o antecedeu, de 1946 a 1963: 6,3% na ditadura, 7,1% na democracia. E a taxa média anual de inflação na ditadura foi duas vezes e meia maior do que no período democrático anterior: 58% em comparação com 22%.

Desde 1994, o país tem mantido a inflação sob controle, mas o crescimento econômico tem decepcionado – particularmente no período mais recente, de 2013 a 2022, em que o PIB por habitante (doravante, PIB per capita ou renda per capita) se manteve estagnado. Como outros países na América Latina, Ásia e Europa Oriental, o Brasil aparenta estar preso na chamada armadilha da renda média – a dificuldade de continuar a crescer ultrapassada a fase em que, dispondo o país de alguma governabilidade, a mera transferência da população do campo para a cidade garante o aumento da produtividade necessário para sair da pobreza na direção da renda média.

Problemas de múltipla natureza explicam a armadilha da renda média. Não é nosso objetivo analisá-los, mas uma exploração da relação da democracia com o nível de renda dos países ilustra como a saída dessa armadilha pode se associar a distintos regimes políticos.

Apresentamos a natureza dos regimes políticos de acordo com a classificação adotada pela Democracy Matrix da Universidade de Würzburg. Essa matriz identifica cinco regimes políticos no mundo: democracias funcionais, democracias deficientes, regimes híbridos (que combinam elementos democráticos e autocráticos), autocracias moderadas e autocracias plenas.

A figura ilustra a relação entre regimes políticos e PIB per capita. Os dados do PIB são do World Development Indicators do Banco Mundial. Nele, 162 países, ordenados por nível de renda, são divididos em três grupos de igual tamanho. O Grupo 1 compreende 54 países com PIB per capita de até US$ 7,3 mil; o Grupo 2, 54 países com PIB per capita de mais de US$ 7,3 mil até US$ 22,1 mil; e o Grupo 3, 54 países com PIB per capita de mais de US$ 22,1 mil. Para simplificar, vamos chamar o Grupo 1 de renda baixa, o Grupo 2 de renda média e o Grupo 3 de renda alta.

Indicam-se em cada coluna as percentagens dos distintos regimes políticos no respectivo grupo. Em azul escuro, democracias funcionais; em azul, democracias deficientes (entre as quais o Brasil); em azul claro, regimes híbridos; em amarelo, autocracias moderadas; em laranja, autocracias plenas.

Claramente, a democracia funcional é o regime dominante no grupo de renda alta e representa parcela pequena dos outros dois grupos. No Grupo 2, de renda média, a democracia deficiente é o regime prevalecente. Já no grupo de renda baixa, três regimes aparecem como importantes: democracia deficiente, sistema híbrido e autocracia moderada.

A figura denota a multiplicidade de regimes políticos em níveis baixos de renda. E deixa a sugestão de que a passagem da renda média para a renda alta está associada ao aperfeiçoamento democrático.

Indo além do relacionamento da democracia com o nível de renda, consideramos quais são as características dos países que foram bem-sucedidos no crescimento econômico desde a Segunda Guerra. E como a democracia se enquadra nas experiências de desenvolvimento desses países.

Em 2008, comissão patrocinada pelo Banco Mundial, da qual participei, elaborou o Relatório de Crescimento, com o subtítulo “estratégias para crescimento sustentado e desenvolvimento inclusivo”. O relatório lista doze países cujos PIBs no pós-guerra cresceram 7% ou mais ao ano por pelo menos 25 anos. Características comuns desses países identificadas no relatório são as seguintes: 1- relacionaram-se plenamente com a economia mundial, 2- mantiveram estabilidade macroeconômica, 3- geraram altas taxas de poupança e investimento, 4- permitiram que os mercados alocassem os recursos, e 5- tiveram governos comprometidos, críveis e capazes.

Governos comprometidos, críveis e capazes – mas não necessariamente democráticos. Na classificação da Matriz da Democracia da Universidade de Würzburg, sete desses países são hoje democráticos: Botsuana, Coreia do Sul, Indonésia, Japão, Malásia, Malta e Taiwan; três têm regimes híbridos: Cingapura, Hong Kong e Tailândia; e dois são autocracias: China e Omã.

Uma relação mais clara entre democracia e desenvolvimento econômico aparece em texto meu recente, em que identifico 12 outros países que no pós-guerra fizeram a transição da renda média para se incorporarem aos países ricos. Esses países são os chamados tigres asiáticos: Cingapura, Coreia do Sul, Hong Kong, Israel e Taiwan; membros da União Europeia: Espanha, Grécia, Irlanda e Portugal; e exportadores de produtos primários: Austrália, Noruega e Nova Zelândia. Uma característica comum a eles é seu alto grau de abertura ao comércio exterior. Outras duas características são populações médias ou pequenas (5 a 50 milhões de habitantes) e baixa desigualdade da distribuição de renda. Não há entre eles autocracias e, afora os regimes híbridos de Cingapura e Hong Kong, são todos países democráticos.

Este breve apanhado sugere que nem a experiência brasileira nem as comparações internacionais sustentam a ideia por muitos entretida de que a autocracia tenha superioridade sobre a democracia para promover o crescimento econômico. Ao contrário, as comparações internacionais sugerem que a democracia se associa à passagem de um país da renda média para a renda alta.

Não vale a pena, assim, entreter ilusões autoritária do tipo de “se eu fosse ditador por um dia”. Vale mais a pena nos dedicarmos a aprimorar a qualidade das políticas públicas para que nossa democracia possa mais efetivamente responder ao anseio dos brasileiros por melhores condições de vida.