Fogo amigo, prioridades e erros do passado


Esta semana, em meio a intenso fogo amigo sobre mudança da meta fiscal, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que a tarefa de organizar a trajetória fiscal do País não é simples, e defendeu que é preciso ter “convicção no trabalho, além de compreensão por parte de todos os Poderes”. Insistiu em que o governo pode gastar, desde que o faça de maneira que a taxa de retorno seja suficiente para garantir a sustentabilidade das contas públicas no médio e longo prazos. E, muito corretamente, afirmou que isso é “zelo com a coisa pública”.

A condução da política econômica nos primeiros meses do primeiro governo Lula, em 2003, também era questionada. Dentro do próprio governo inclusive, era vista e descrita como uma simples – e indesejável – extensão da política econômica do governo anterior. Palocci, o então ministro da Fazenda, afirmou naquele contexto que na maioria dos países de alguma expressão econômica “ninguém mais questiona se um governo, independentemente de sua coloração político-partidária, deve ou não ser fiscalmente responsável, preservar a inflação sob controle ou respeitar contratos e acordos”.

As críticas que então se faziam descreviam a reafirmação do compromisso com a estabilidade como uma curta fase de transição, prestes a ser concluída, quando, então – e só então –, começaria de fato o “verdadeiro” governo Lula. Este, sim, voltado para o crescimento da atividade econômica, do investimento, do emprego, da renda e da justiça social no País (objetivos que, assim formulados, não têm um só opositor dentre os mais de 200 milhões de brasileiros). O próprio presidente anunciava, para o mês de julho de 2003, o início do “espetáculo do crescimento”.

Volto a 2023. Tem havido, é verdade, declarações do presidente Lula que expressam compromisso com responsabilidade, credibilidade, previsibilidade e estabilidade. Mas são enunciados isolados, que não têm o condão de afetar expectativas quanto ao curso futuro das variáveis fundamentais da política econômica. Já na primeira reunião ministerial, em 6 de janeiro, o presidente pediu que a equipe aposentasse a palavra “gasto” do vocabulário; o governo deveria falar em investimentos. O papel da equipe econômica, afirmou, é dizer que não tem dinheiro; o dos demais ministros é pedir recursos; e o seu é o de arbitrar o impasse, descobrindo brechas para arrumar verba.

Cumpre perguntar: qualquer gasto? Porque, se qualquer gasto for considerado sempre como investimento em “alguma coisa”, haja Tesouro, haja carga tributária, haja aumento de dívida bruta, haja impostos sobre gerações futuras. Há que definir claramente prioridades e avaliar cuidadosamente os projetos e seus retornos – para evitar erros, velhos e novos.

Afinal, já vivemos um período, recente, no qual tudo parecia possível – porque desejável. Construir não uma nem duas, mas quatro refinarias no País (e comprar mais duas no exterior). Fazer a Vale construir siderúrgicas. Criar uma empresa para encomendar a sete estaleiros (alguns a serem construídos, outros ampliados) nada menos que 29 sondas, 31 plataformas e 88 navios e submeter à análise de outra (EPL) perto de 4 mil projetos e dez cadeias logísticas.

Por trás de todos esses – chamemo-los assim – processos decisórios havia uma crença, arraigada entre nós, de que a demanda (desejada, planejada) ou as intenções e expectativas de gasto geram a sua própria oferta. O problema é que, caso a oferta doméstica não responda em prazo hábil às demandas, o País – qualquer país – experimenta, como o Brasil já o fez inúmeras vezes no passado, uma combinação de pressões inflacionárias; ainda pior, acompanhadas de baixo crescimento.

Tentativas de fazer face às incertezas do futuro com as pretensas certezas do passado estão fadadas ao fracasso. Porque na raiz do problema da incerteza em economias modernas está, como ensinou Keynes, o caráter cambiante das expectativas quanto ao curso futuro dos eventos. Essa é a razão pela qual uma das responsabilidades fundamentais de um governo é a de procurar reduzir a extensão e o grau de riscos e incertezas que podem afetar negativamente o ânimo dos investidores (domésticos e internacionais) e a confiança dos consumidores.

Na conclusão do último artigo de meu livro Uma certa ideia de Brasil: entre passado e futuro (Ed. Intrínseca, 2018), comentei que, apesar de tudo, e paradoxalmente, também nos vemos, e somos vistos, como um país extraordinário na sua diversidade, de enorme potencial, dotado de importantes recursos naturais, humanos, técnicos, culturais, morais. Que podem nos levar, talvez, à superação das dificuldades presentes, que são parte real e sofrida – parafraseando Marcus Aguinis – do “atroz encanto” de ser brasileiro.

É meu também o sentimento expressado por Dorrit Harazim: “Assim como a esperança sem pensar crítico é mera ingenuidade, o pensar crítico sem esperança acaba desembocando em cinismo – e cinismo é do que o Brasil menos precisa, pois ele leva a um dar de ombros cúmplice àquilo que se está pretensamente condenando.”

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ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM