Moeda digital e arte brasileira


Uma boa chave para se entender o fenômeno das criptomoedas, que tanto encanta como atordoa, é o trabalho do consagrado artista brasileiro Cildo Meireles, particularmente o seu “Zero Cruzeiro” de 1978, com o qual o artista fabricou seu próprio dinheiro.

Ele imprimiu gravuras frente e verso, do tamanho de cédulas verdadeiras, usando o projeto gráfico do cruzeiro de 1970, concebido por Aloisio Magalhães, mas com algumas interferências perturbadoras.

A principal era a denominação “zero cruzeiro”, que causou enorme impacto, muito mais que o fato de o artista homenagear na cédula figuras que descreveu como “socialmente invisíveis” — um louco e um índio —, em vez de heróis nacionais, como normalmente se faz.

O dinheiro mexe profundamente com símbolos nacionais, sobretudo em um país assolado pelo fato de que a “promessa de pagamento” que vinha inscrita no dinheiro oficial (“promete-se pagar ao portador desta a quantia de …”) estava sendo revogada ou malversada.

O “dístico” relativo à “promessa de pagar” desapareceu do papel moeda brasileiro bem antes de Cildo, anos depois substituído por um “Deus seja louvado”, afinal abolido também.

Não há mais promessas nem compromissos inscritos do papel-moeda, que se tornou puro “valor de troca”. Zero lastro, zero promessa, zero cruzeiro.

Para piorar as coisas o artista não designou quantidade, nem numerou as gravuras. A emissão era “ilimitada”, portanto, sua escassez não podia ser estabelecida. Qual deveria ser o seu valor de troca?

Antes de Cildo, um artista japonês que não se chamava Satoshi, mas Geipei Akasekawa, havia experimentado com cédulas de “zero yen”, nos anos 1960, e acabou preso por conta das arcanas leis japonesas sobre falsificação de dinheiro.

No Brasil de 1978, no contexto de ditadura e inflação, Cildo experimentou distribuir suas notas entre camelôs na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro em uma performance em que a intenção era inserir mensagens selecionadas em “circuitos ideológicos”.

Mas os camelôs da Cinelândia, astutamente, venderam as notas como arte, ou seja, não as repassaram como dinheiro.

A denominação “zero” certamente confundiu os participantes do experimento, muitos dos quais, inclusive, desabafaram com observações como “esse (nosso) dinheiro não vale nada mesmo”, “agora, pelo menos, reconhecem”.

Em retrospecto, parece claro que Cildo Meirelles estava fazendo uma espécie de ICO (Initial Coin Offer, o acrônimo criado para apontar a similaridade entre as ofertas de novas criptomoedas e ofertas de ações) e coletando “senhoriagem”, que é o nome que os economistas dão às receitas decorrentes do poder de emitir dinheiro, e que são dadas pela diferença entre o valor de troca do papel e seu custo de produção.

Não há mais promessas nem compromissos inscritos do papel-moeda, que se tornou puro “valor de troca”