O que as figuras centrais da política econômica brasileira dos últimos 40 anos têm a ensinar


Nascido do projeto de uma série de podcasts de entrevistas, cuja ambição na origem era conectar estudantes a economistas com experiência no setor público, “A arte da política econômica” constitui, em suas 430 páginas, um registro histórico da participação de economistas em momentos-chave da trajetória do Brasil desde a década de 1980. Os 30 depoimentos são autobiográficos e transcritos em primeira pessoa, a partir de gravações dos podcasts, que contaram com perguntas de um público composto, além dos estudantes, por jovens profissionais.

 

O livro é um “registro” porque, entre os entrevistados, figuram os artífices de algumas das decisões mais impactantes da economia brasileira desde então. Entre eles constam Mailson da Nóbrega, ministro da Fazenda no governo de José Sarney, que participou da reformulação das finanças do Estado em época de hiperinflação; Pedro Malan, que negociou a dívida externa e ocupou o Ministério da Fazenda no mandato de Fernando Henrique Cardoso; Gustavo Franco, que presidiu o Banco Central nos primeiros anos da estabilização; Elena Landau, diretora de Desestatização do BNDES de 1994 a 1996.

 

Nas contribuições mais recentes, destacam-se as de Ricardo Paes de Barros, um dos formuladores do Programa Bolsa Família; Ana Carla Abrão, ex-secretária da Fazenda de Goiás; Ana Paula Vescovi, ex-secretária da Fazenda do Espírito Santo; Ilan Goldfajn, ex-presidente do BC, hoje presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento; e inclusive um secretário do Ministério da Fazenda do atual governo: Bernard Appy, responsável por tirar do papel uma reforma tributária.

 

O registro é “refletido” porque não se limita a transcrever as memórias, mas também introduz a questão dos desafios que uma pessoa acostumada a problemas teóricos enfrenta quando mergulha na gestão pública. Naturalmente, o registro não é exaustivo: oriundo de uma iniciativa do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (Iepe/CdG), um think tank de orientação predominantemente neoclássica, ele não contém entrevistas com alguns personagens que, a partir de outras doutrinas, tomaram decisões importantes nesse período. Não chega a ser uma lacuna, porque o propósito do livro não é o registro histórico, mas o compartilhamento de perspectivas e memórias pessoais.

 

Por esse prisma, uma chave de leitura se encontra no prefácio de Edmar Bacha. O ex-presidente do BNDES e diretor do Iepe/CDG sugere a existência de um atrito entre o conhecimento técnico do economista e o dia a dia da formulação de políticas econômicas. Bacha apresenta a questão por meio de uma citação de John Maynard Keynes, para quem “o problema econômico é matéria para economistas”, e prossegue com uma metáfora: é um saber técnico, como o do dentista. A evocação a Keynes não é casual. O economista britânico passou boa parte da vida mergulhado em problemas de política econômica e desenvolveu sua influente teoria a partir dos problemas que encontrou nesse campo. A trajetória de Keynes mostra que a via que liga as faculdades de economia aos governos é de mão dupla: se o economista que migra para um ministério traz um conhecimento teórico que deve confrontar ao dia a dia do poder, esse cotidiano também fornece conhecimentos que podem levá-lo a reformular seus modelos.

 

Outra chave de leitura se encontra na apresentação de José Augusto Coelho Fernandes, pesquisador associado do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes) e ex-diretor da Confederação Nacional das Indústrias (CNI). Fernandes distingue três reações comuns dos ouvintes da série de podcasts. Quais sejam: a continuidade, porque, “a despeito de agendas inconclusas, o Brasil revela avanços institucionais importantes desde os anos 80”; a competência, porque “o Brasil mostrou dispor de recursos humanos com capacidade de formular e gerir políticas”; e a frustração, porque “o país pode fazer mais e opera abaixo do seu potencial”.

 

Essas reações também são as dos depoentes. Perpassam a obra e se encontram em praticamente todos os relatos. Em particular, o tema da competência é digno de nota. Com efeito, Fernandes constata a existência de uma demanda reprimida, na jovem geração de economistas, por compreender os meandros da política pública. Desde a década de 1990, programas de pós-graduação e cursos de economia vêm se tornando menos abstratos e mais empíricos. Profissionais formados nessas escolas têm crescente interesse por temas tão variados como saúde, educação, saneamento e combate à pobreza. O Prêmio Nobel de 2019, concedido a Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer por sua adaptação das pesquisas randomizadas aos problemas econômicos, dá testemunho dessa tendência.

 

Nesse sentido, muitos dos depoentes são pioneiros. Outros são artífices da transição entre o mundo em que economistas tinham de se preocupar quase exclusivamente, às vezes até desesperadamente, com problemas macroeconômicos, a começar pela hiperinflação, e a nova realidade de aplicações mais amplas.

 

O mesmo vale para a profissionalização, racionalização e aprimoramento da gestão pública, preocupação crescente em um país que, há alguns anos, montou um Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (o CMAP, instituído em 2019) e neste ano criou um ministério dedicado à gestão. Vários relatos trazem histórias de modernização do aparelho estatal, de ministérios a prefeituras, como o de Maria Silvia Bastos Marques, que assumiu a secretaria de Fazenda do município do Rio de Janeiro quando salários eram pagos em espécie.

 

Por meio dessas histórias, a passagem das gerações fica registrada, deixando transparecer a continuidade evocada por Fernandes. Através dos depoimentos, podemos acompanhar a evolução do problema de administrar a política econômica no Brasil: da trabalhosa organização das contas nacionais, como um todo, à adequação dos entes subnacionais; e, em seguida, a adaptação do Estado às demandas colocadas pela sociedade.

 

A julgar pelos relatos do livro, comparando com o cenário de décadas passadas, em que um economista no governo encontrava uma situação bagunçada e urgente, o cenário atual é benigno, permitindo enfrentar problemas de longo prazo. Por que, então, permanece a terceira reação descrita por Fernandes, ou seja, a frustração? Parte da resposta vem do posfácio de Malan: há um descompasso entre as aspirações do país, muitas delas inscritas na Constituição, e suas condições sociais e políticas, denuncia o ex-ministro, a tal ponto que políticas pensadas para beneficiar os pobres são apropriadas pelos poderosos.

 

A partir do prefácio de Bacha e do posfácio de Malan, é possível ler os depoimentos como um conjunto estruturado. Nesse caso, à citação de Keynes junta-se a de outro autor inglês. Não um economista, mas o filósofo Francis Bacon, que escreve, em 1597, que “saber é poder”, referindo-se ao conhecimento da natureza. Na política econômica, como mostram os relatos dos 30 economistas brasileiros, essa coincidência é mais difícil de atingir.

 

A arte da política econômica . Org. José Augusto Coelho Fernandes. Intrínseca. 430 págs. R$ 59,90 (e-book)