Um manual de artista para atuar na economia


Eles estão entre os mais conhecidos e respeitados do Brasil e participaram de momentos-chave, que lhes exigiram criatividade como atores e observadores privilegiados da vida econômica do país. Formaram convicções que alimentam discussões férteis sobre políticas públicas e tiraram lições que merecem ser adotadas em qualquer projeto para a economia e a política nacionais. Estão, agora, reunidos em livro. Mais exatamente, num e-book.

“A Arte da Política Econômica”, organizado por José Augusto Coelho Fernandes e recém-lançado em formato eletrônico com o selo História Real, pela editora Intrínseca, traz depoimentos de trinta formuladores e gestores de políticas públicas.

São cinco ex-ministros da Fazenda (como Maílson da Nóbrega, Pedro Malan), e cinco ex-secretários-executivos do ministério (como Bernard Appy); cinco ex-presidentes de Banco Central ( como Ilan Goldfajn e Pérsio Arida) e dois ex-presidentes de bancos públicos (BB e BNDES, como Edmar Bacha); um ex-ministro da Casa Civil e uma ex-ministra de Administração; duas executivas com experiência em secretarias estaduais, além de conhecidos ex-ocupantes de cargos públicos e especialistas com atuação relevante em setores que vão do meio ambiente à reformas estruturais no setor público.

Em comum, todos têm ligação com o Instituto de Estudos de Política Econômica, mais conhecido como Casa das Garças, nome da mansão do ex-banqueiro Antônio Bittencourt onde, em 2003, um grupo de executivos e economistas, muitos deles ligados ao PSDB, passou a se reunir para conversas sobre o país.

O livro combina depoimentos autobiográficos com relatos em primeira mão sobre a História econômica recente do país. Conta bastidores políticos – que incluem até o relato da chantagem de um senador – na aplicação dos diversos planos anti-inflação e na modernização do Estado brasileiro; e detalha o aprendizado obtido a partir de sucessos e fracassos de comunicação com a sociedade e com a própria máquina pública.

Traz, ainda, recomendações detalhadas de políticas públicas a serem seguidas pelo atual e próximos governos, e é recheado de alertas para pecados a serem evitados pelos gestores.

A obra traz uma rica memória dos ensaios, decisões e consequências dos sucessivos planos de estabilização econômica em que os autores participaram, do Plano Cruzado ao bem-sucedido Real.

Comenta, com algumas revelações, a transição entre os governos Fernando Henrique Cardoso a Lula e, baseado em depoimentos veiculados em podcasts pela Casa das Garças em 2021; inclui avaliações – em geral bastante críticas – sobre os desdobramentos da política econômica no governo de Jair Bolsonaro.

O título já indica: trata-se do papel da política na gestão econômica. Não é só questão de boa técnica, como recomendava John Maynard Keynes, comparando a Economia à Odontologia. Lembra, Edmar Bacha, no prefácio: “não basta ser modesto e competente, como um bom dentista”.

A obra é um bom documento sobre o passado recente, mas também um interessante livro de consulta para pesquisadores e executivos e marinheiros de primeira (e segunda) viagem na administração pública.

Tem relatos exemplares e saborosos sobre a importância de saber como lidar com o mundo político, como fez o próprio Bacha, no Cruzado; a necessidade de uma liderança firme e capaz de mediar conflitos, como a de Fernando Henrique Cardoso no Plano Real; e o valor de uma equipe motivada, bem-informada e aplicada, tema de vários dos depoimentos.

De todos, há apenas um que está o atual governo, o Secretário Extraordinário de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, elogiado por vários dos outros participantes por sua longa atuação em favor da reforma de tributos no país.

Appy dedica quase todo seu depoimento a lembrar seus esforços por simplificação e melhoria do sistema de tributos e uma defesa detalhada da proposta de reforma tributária que ajudou a construir, hoje em tramitação como projeto de emenda à Constituição 45, de 2019.

Pelo texto, pode-se ver a importância que Appy dá, com bons argumentos, à unificação dos impostos sobre consumo em um só tributo, a ser cobrado no destino. A fragmentação e irracionalidade do disfuncional sistema tributário brasileiro fazem com que empresas prefiram sediar centros de logística em lugares menos eficientes, mas de menor carga tributária, lembra.

O mesmo se dá na construção, onde estruturas pré-fabricadas, mais baratas, são mais tributadas que edificações de concreto armado. Sabedor das dificuldades políticas, algumas das quais descreve por experiência própria, Appy defende extensos prazos de transição para o novo regime de cobrança – e distribuição – de impostos.

Muitos dos participantes enfatizam, com bons exemplos, a importância da comunicação e da clareza das ideias na divulgação, negociação e implementação de políticas públicas, seja em um plano de estabilização, seja em uma reforma setorial, como a da Previdência, seja na gestão cotidiana das tarefas de governo.

O ex-presidente do BNDES e do Banco Central, Pérsio Arida, surpreende, por exemplo, ao confessar francamente que, embora contrário à proposta de criar limites quantitativos de emissão de moeda, no Plano Real, acabou aceitando a medida só para dar um sinal de compromisso para agentes do mercado, que acusava de adotar um “monetarismo básico, tosco, daqueles que acham que inflação resulta da expansão da quantidade de moeda”.

Interesses velados, sejam na própria burocracia, sejam de outros atores políticos, trazem complicações adicionais que exigem atenção. Ao acabar com um – disfuncional – imposto punitivo sobre os bancos, vinculado ao número de cheques sem fundo, por exemplo, o mesmo Arida foi alvo de enorme pressão de políticos ligados a gráficas que se beneficiavam da receita do tributo, repassado ao Ministério da Educação.

Outro ex-presidente do BC, Ilan Goldfajn, cita o esforço que levou à criação do sistema de metas de inflação e a divulgação da agenda “BC+”, com medidas em preparo pelo governo, como exemplo de transparência útil à consolidação de expectativas – ainda que, em alguns casos, num país emergente, as autoridades tenham de mudar de planos e agir diferentemente do que haviam divulgado.

“Sempre teremos crises e emergências, mas, se houver uma agenda de ações clara, divulgada corretamente e acompanhada pela sociedade, pelo mercado, pela imprensa e hoje pelas redes sociais, ela vai andar de forma mais sistemática e robusta”, defende.

Questões que ainda desafiam o governo, da meta de inflação às políticas de redução da pobreza e da desigualdade, encontram no livro contribuições merecedoras de debate, de atores tão diferentes quanto o acadêmico Ricardo Paes de Barros e o pragmático Murilo Portugal.

A variedade dos temas tratados e das experiências relatadas em áreas tão diferentes quanto as privatizações, as renegociações das dívidas dos estados, a política industrial e as tentativas de reforma da Previdência torna “A Arte da Política Econômica” uma obra de referência para quem quer entender o passado e se dispõe a trabalhar por um melhor futuro para o país.