Uma decisão, uma expectativa


Há quase 20 anos escrevo neste espaço. No artigo inaugural (Falsos dilemas, difíceis escolhas…, 8/6/2003, A2), dizia: “Ao longo dos últimos 12 meses o Brasil mostrou ao mundo que continua avançando em termos de maturidade político-institucional e de racionalidade no debate econômico”. Gostaria de começar um artigo futuro, talvez repetindo essa mensagem. Esse desejo me veio à mente nessa semana que passou ao subscrever, com Arminio Fraga, Edmar Bacha e Persio Arida, uma singela nota que continha uma decisão e uma expectativa. A decisão: votaremos no segundo turno na chapa Lula-Alckmin. A expectativa: por uma condução responsável da economia num eventual novo governo. Cabe, talvez, tentar explicar a decisão e a expectativa.

O segundo turno será decidido, como apontou Marcus André Melo, por aquela parte do eleitorado que “vai votar em quem não aprova muito para evitar quem rejeita ainda mais”. Não é uma situação ideal, mas para o eleitor que não pretende se abster ou votar branco ou nulo restam apenas as duas opções: Lula ou Bolsonaro.

Por que descartamos a abstenção e o voto nulo ou branco? Em boa parte, pelo sentimento de que mais quatro anos de Bolsonaro representariam importante risco político-institucional, uma ameaça real de erosão dos mecanismos de pesos e contrapesos, filtros e freios da democracia no País. Deve ser o mesmo receio de quem quer que se tenha informado sobre a surreal reunião ministerial de abril de 2020; assistido às manifestações promovidas pelo Planalto em frente ao QG do Exército em Brasília, ou ao desfile de tanques na Esplanada no dia de votação, no Congresso, sobre voto impresso; ou, ainda, quem tenha acompanhado os discursos do presidente nos dois últimos 7 de Setembro.

É grave o que ocorre no mundo hoje: inflação global inédita desde os anos 70, baixíssimo crescimento da economia e do comércio globais, crise geopolítica severa, guerra na Ucrânia, com suas consequências globais, desencanto e ressentimento em mercados de trabalho não qualificados e crescimento de regimes autocráticos. Não convém acentuar esses riscos e incertezas, que são crescentes, com ingredientes do nosso contexto doméstico. Isso é o que decorreria de mais quatro anos do mesmo estilo de governar, que tantos problemas vem causando à imagem do Brasil, aqui e no exterior; de mais quatro anos de um governo que mostra incapacidade para adotar políticas públicas minimamente consistentes em áreas cruciais para nosso futuro – educação, ciência e tecnologia e meio ambiente.

Comento, agora, a expectativa, ou esperança. É verdade que qualquer que seja o resultado das urnas no segundo turno, o governo eleito terá de lidar com um contexto internacional adverso. Não há muito a esperar de Bolsonaro, pelo que já demonstrou. É de esperar que Lula e sua equipe estejam se preparando para o contexto internacional muito distinto daquele, extraordinariamente favorável, do qual Lula tanto se beneficiou. Sempre reconheci que havia interlocutores possíveis no PT, para quem o que receberam em 2003 não foi uma herança maldita, como sustentou Lula repetidas vezes, de forma equivocada. Volto ao artigo citado no primeiro parágrafo deste texto. Em sua essência, ele se referia ao fato de a alternância no poder, própria dos regimes democráticos, não ter naquele momento resultado em grandes rupturas, nem tampouco envolvido experimentos nocivos na condução da economia.

Os escritos publicados neste espaço entre 2003 e 2018 foram reunidos em livro (Uma certa ideia de Brasil: Entre passado e futuro). Muito escrevi sobre as heranças (benditas) com que o PT chegou ao poder, como começou a se dar conta da diferença entre disputar uma eleição e efetivamente governar um país da complexidade do Brasil. De que há falsos dilemas, escolhas difíceis, necessidade de definir prioridades, fazer escolhas, de reconhecer que a miríade de demandas e aspirações legítimas excede em muito a capacidade de atendê-las.

Lula disputou seis eleições presidenciais. Escrevi sobre a sexta campanha neste espaço (12/9/2010) e, no mês seguinte, no dia 10 de outubro, como agora, comentei o resultado do primeiro turno. Expressei, então, minha discordância com a estratégia da campanha petista. Mesmo no auge de seu prestígio e popularidade, com a economia crescendo a 7,5% ao ano, cerca de 52% dos eleitores haviam votado em José Serra e Marina Silva, negando a Lula, mais uma vez, a tão esperada vitória plebiscitária no primeiro turno. A porcentagem de votos nulos, brancos e de abstenções foi, então, de 26,7%.

No próximo dia 30, o País, ou, melhor, seus eleitores tomarão uma decisão coletiva da maior importância. Lula é maior que o partido que fundou e do qual sempre foi o indispensável amálgama e única inquestionável liderança. Se vitorioso, terá uma responsabilidade histórica: tentar unir um país profundamente dividido. Terá de ampliar, em muito, sua base de apoio na sociedade, contrariar muitos seguidores. Afinal, se Lula é maior que o PT, já se disse que o bolsonarismo é maior que Bolsonaro; veio para ficar, como governo ou como renhida oposição. Não será nada fácil a vida de um eventual novo governo.

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ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM