Casa das Garças

Um homem cheio de planos

Data: 

26/02/2016

Autor: 

Edmar Bacha

Veículo: 

O Valor

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Texto de Edmar Bacha para O Valor.
Publicado em: 26/02/2016

 

Edmar Bacha poderia ser um “scholar” nos EUA, pois não lhe faltaram oportunidades para se radicar por lá como professor titular em várias universidades. Quando o Plano Cruzado já dava sinais de que estava emborcando, na década de 80, por pouco não aceitou o convite de Yale para se mudar de mala e cuia. A afinidade com a universidade de Connecticut, na Nova Inglaterra, é antiga. Foi lá que o economista, mineiro de Lambari, fez doutorado depois de graduarse na UFMG, em Belo Horizonte.

Aos 74 anos, Bacha ainda cultiva os laços acadêmicos como professor titular ou visitante de universidades no Brasil e nos EUA. De certa forma, esses laços também estão presentes no que hoje é a sua principal ocupação, a de diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica Casa das Garças, centro de ideias formado em 2003 por economistas e pessoas egressas do governo de Fernando Henrique Cardoso ou que têm vínculos com as propostas defendidas durante ou após o lançamento do Plano Real.

Entre seus colegas estão Armínio Fraga e Gustavo Franco (ambos ex­presidentes do Banco Central e professores do departamento de economia da PUC carioca) e o ex­ministro da Fazenda Pedro Malan, todos arregimentados por Dionísio Dias Carneiro, morto em 2010, que era o elo desse grupo.

A Casa das Garças promove seminários ao longo do ano, restritos aos membros do instituto (os responsáveis acham que a presença de jornalistas poderia inibir os palestrantes e debatedores). No ano passado foram 22, vários voltados para a questão política e o impacto na economia, por demanda dos próprios associados. Foi Bacha quem sugeriu o Le Vin para este “À Mesa com o Valor”. Ele próprio reservou e escolheu a mesa (número 18), próximo à varanda, mais apropriada para uma conversa informal. Como diz o nome, o simpático bistrô de Ipanema se propõe oferecer uma boa variedade de vinhos, a preços razoáveis. Nessa tarde de verão faz muito calor
no Rio e, durante o almoço, Bacha preferiu beber apenas água mineral. Recusou o tentador couvert ­ “exatamente por ser muito bom” ­ e optou por pratos leves: uma salada tropical de entrada e como principal o peixe do dia, o vermelho, com batata­doce e alho­porró, como é chamado, no Rio, o salsão. Frutos do mar são uma das
especialidades do restaurante, mas Bacha os evita, por causa do colesterol alto e também porque não é amante desses pratos.

Ao longo do almoço, Bacha compartilhou suas preocupações com a conjuntura política. “Por falta de confiança, os investimentos minguam. As pessoas passam a ficar atraídas apenas pelo dólar, pela taxa de juros ou pela indexação, que formam obstáculos à queda da inflação, um problema que parecia vencido”, diz. Bacha foi um dos principais formuladores do Plano Real. Hoje, revela que na época não esperava que o plano resistisse por tanto tempo. “Agora voltamos à estagflação” ­ o que caracteriza uma economia que não cresce, mas mesmo assim não consegue se livrar de uma inflação alta ­ enfatiza, decepcionado.

Para que o país retome a trajetória de crescimento, na opinião do economista, precisará investir bem mais, desafio mais complexo do que no passado, quando houve a transição da economia rural, atrasada, para a urbana, com enormes ganhos de produtividade. O Brasil já é uma sociedade urbanizada, porém com sérios problemas de infraestrutura. Portanto, tem espaços expressivos para investimentos, que “poderiam estar sendo realizados se o governo Lula não tivesse enfraquecido as agências reguladoras e o arcabouço institucional, capazes de dar segurança aos potenciais investidores”.
Com os investimentos minguando, Bacha lembra que seu colega Régis Bonelli (ex­Ipea, atualmente no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), conceituado pesquisador no tópico produtividade, fez uma nova estimativa do chamado PIB potencial do Brasil, concluindo que a economia só teria condições de crescer, sem graves desequilíbrios, a um ritmo anual de 2,5%.

“Considerando que a taxa de expansão demográfica anda por volta de 0,7%, calculo que nesse ritmo de crescimento do PIB potencial atingiremos a atual renda média por habitante dos americanos, em torno de US$ 50 mil, lá pelo ano 3000!”, afirma Bacha, com a ironia que muitas vezes extravasa em célebres artigos, como o da fábula em que criou a imaginária “Belíndia”, ilha onde uma pequena parte da população vivia com padrão belga, enquanto a maioria permanecia com renda comparável à dos indianos ­ não os de hoje, mas os da ainda paupérrima Índia nos anos 1970.

A fábula, de 1974, foi publicada na página central do jornal “Opinião”, um dos pioneiros da imprensa alternativa, que se aventurava a criticar o regime militar. A inspiração do artigo fora uma frase do então general presidente, Emílio Garrastazu Médici: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. Naqueles tempos se discutia ­ parcimoniosamente, pois o regime era alérgico a qualquer oposição política, rejeitando críticas de todo tipo, até de humoristas ­ se o modelo econômico era concentrador de renda ou não. Antes de sofrer o impacto do primeiro choque do petróleo (1973/74), a economia brasileira chegara a crescer a uma invejável taxa de 11% ao ano.

Alguns defensores do modelo costumavam dizer que era necessário fazer o bolo crescer primeiro para depois dividi­lo. Tese que Bacha contestou na fábula, usando como personagens um certo Antônio (clara alusão a Antônio Delfim Netto, ministro da Fazenda e quem de fato conduzia as rédeas da economia), o rico, assim como um Fernando (Henrique), uma Conceição (Maria da Conceição Tavares) e outros do lado pobre, nomes inspirados nas pessoas com as quais o autor convivia no Cebrap, espécie de Casa das Garças da ocasião, só que com viés que poderia ser rotulado como “à esquerda”.

Delfim sempre foi bom de réplica. A veia sarcástica que contribui para tornar saborosa a leitura de seus textos atuais ainda não tinha aflorado de todo. Mesmo assim, suas respostas já eram temidas pelos que o criticavam. Mas ele esperou 20 anos para replicar. No começo do Plano Real, quando Bacha ocupava o cargo de assessor especial do governo, Delfim escreveu que estava sendo criado o “Ingana”, uma mistura da rica Inglaterra com o pobre país africano Gana. Não houve tréplica. Naquele período, Bacha preferia não se expor publicamente, circulando mais pelos bastidores do próprio governo, já às voltas com as dificuldades que o novo plano de estabilização monetária enfrentava.

Bacha diz que mudou sua maneira de encarar o funcionamento dos governos, da máquina burocrática, quando fez parte dele pela primeira vez, na Nova República, presidindo o IBGE por três anos, de 1985 a 1988. “Não conseguia convencer a equipe que os censos não seriam mais necessários e que poderíamos obter os resultados pretendidos com amostras bem formuladas. Mas os censos já faziam parte de uma rotina, um hábito, que ninguém queria mudar.”
Na Nova República, como integrante do grupo que o concebeu, Bacha percebeu que o Plano Cruzado (1985­86) iria desmoronar, pois o governo Sarney optou por manter tudo como estava ­ a popularidade do presidente estava nos píncaros ­, em vez de tomar medidas necessárias para viabilizá­los. Foi nessa época que se viu tentado a se mudar para os EUA. Não se mudou e teve a oportunidade de pôr em prática mais uma tentativa de estabilização monetária, o Plano Real (1994), que livrou a economia brasileira de um processo crônico e agudo de inflação.

Gato escaldado, relutou em embarcar nesse barco, até que os próceres do PSDB de então o encurralaram em uma histórica reunião, em Brasília. Bacha convivia com políticos havia anos. Costumava escrever “papers” para senadores do MDB, como Franco Montoro (futuro governador de São Paulo), quando coordenou um curso de mestrado na Universidade de Brasília (UnB). O país entrara na fase de abertura “lenta e segura”, nos fins dos anos 1970, e a oposição moderada já era tolerada pelo regime militar. Bacha se descreve como um “hippie” nessa época. “Irreconhecível, para quem me conhece hoje”, um avô de barba e cabelos curtos, inteiramente brancos.

E foi esse professor “hippie” que um dia acabou sendo chamado pelo poderoso reitor da UnB (de 1976 a 1985) José Carlos Azevedo, curioso para conhecer quem era o economista que andava fazendo a cabeça de senadores de oposição. Azevedo era oficial de reserva da Marinha e com jeito meio militar recebeu Bacha na porta de casa. Ao se deparar com um jovem cabeludo, o tratou como menino: “Você veio com seu pai?”, quase sem acreditar que estava diante do economista que despertara sua curiosidade.

Essa convivência com senadores de oposição viria a ser útil a Bacha quando o Plano Real estava em gestação e era mantido em segredo, bem guardado. Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda, achou que já era o momento de pôr o presidente Itamar Franco a par do que estava a caminho. Com a afinidade de serem ambos mineiros, Itamar tinha boa lembrança de Bacha, dos tempos do Senado. Estava aflito com a inflação persistente e não hesitaria em recorrer até a um congelamento de preços, tipo Cruzado, para conter o “dragão”.

Bacha explicou a Itamar o que pretendiam, de uma maneira bem resumida: “O país tem duas moedas, a dos mais ricos, protegida pelas contas remuneradas nos bancos, e a dos pobres, que é corroída pela inflação a cada minuto. O que vamos fazer é unificar tais moedas.” Itamar se convenceu, mas pediu pressa. Na saída do encontro, em um autógrafo endereçado aos dois filhos de Bacha, escreveu que esperava que o pai deles acelerasse a tarefa (sem mencioná­la) que iria executar, para o bem do país.

Bacha não quis ocupar cargos de destaque nos governos Itamar e FHC. A não ser por breve passagem na presidência do BNDES (que às vezes é até esquecida em seu currículo), permaneceu como assessor especial nos primórdios e na efetivação do plano Real. Ao deixar o governo, Bacha aceitou o convite de dois amigos (Fernão Bracher e Antônio Beltran Martinez) para trabalhar no banco de investimento BBA, incorporado mais tarde ao grupo Itaú, inicialmente em Nova York e depois em São Paulo (“mas mantendo residência no Rio, uma exigência minha”).

Permaneceu como consultor sênior do banco de 1996 a 2010. Visto como esquerdista nos anos 1970, o economista viria a presidir a Associação Nacional dos Bancos de Investimentos (Anbid, que virou Anbima) de 2000 a 2003. Não se arrepende da experiência, porque precisava conhecer de fato como as empresas são por dentro, o que é
raro entre os macroeconomistas.

No Le Vin, bistrô de Ipanema que é um dos preferidos do economista, ele diz que agora se dedica à Casa das Garças. A atividade só é interrompida a cada dois meses para assumir o papel de avô de Mila e Caio, pimpolhos da filha Júlia, documentarista premiada, que se empenha pela paz no Oriente Médio, todos morando em Nova York. Bacha continua tentando decifrar a esfinge que é o Brasil e empolga­se com os seminários realizados. Em um dos
últimos, em homenagem a Fábio Barbosa (ex­secretário do Tesouro, morto no ano passado, aos 54 anos), debateram a relação entre o Banco Central e o Tesouro Nacional. Surgiram ideias e contribuições que serão transformadas em artigos e editadas em um livro.

Em outro seminário, no ano passado, a Casa das Garças homenageou os 80 anos do professor brasilianista Albert Fishlow, com a sua presença. Assim, com as idas a Nova York, Bacha consegue conciliar a atividade na Casa das Garças com a de professor visitante e pesquisador nas universidades americanas Columbia, Yale e Harvard. Aliás, um dos seus primeiros empregos foi no Massachusetts Institute of Technology (MIT), ligado a Harvard, trabalhando no Chile.

Bacha tem mais um filho, Carlos, que, assim como Júlia, estudou relações internacionais, mas profissionalmente se dedica ao mercado financeiro, contratado por um banco de investimento em São Paulo.

Os pratos chegaram rápido ­ bistrô é uma palavra que os franceses adaptaram dos clientes russos, que chegavam sempre esbaforidos, pedindo pressa. Nesse sentido, o Le Vin faz jus ao rótulo de bistrô. Enquanto isso a conversa fluiu, com a política pautando grande parte dos comentários. “Para fazer as necessárias reformas, o país precisa de comando. Lembro de uma conversa com o deputado Luiz Eduardo Magalhães, uma perda inestimável para o país. Fernando Henrique perguntou a ele, que presidia o Congresso e era o principal interlocutor do governo no Legislativo, quantos políticos apoiariam a reforma da Previdência”, conta Bacha. “No dia de hoje, creio que só nos dois, respondeu o deputado. Com a liderança dos dois, a reforma andou no Congresso. É isso que nos falta agora, da mesma forma que a morte prematura de Luiz Eduardo [que sofreu um infarto fulminante, aos 43 anos] nos desfalcou da habilidade política dele nos passos seguintes do real. Luiz Eduardo poderia ter sido presidente da
República.”

Bacha cita como exemplo a transformação que vem ocorrendo na Argentina, depois da eleição de Maurício Macri para a Presidência. As reações favoráveis dos mercados foram rápidas, após longo tempo de desgaste causado pelo kirchnerismo. Nos seminários que tratam de política, a Casa das Garças tem procurado ouvir partidos, especialmente o PMDB. Wellington Moreira Franco, que preside o Instituto Ulysses Guimarães, esteve lá. Quando governador da Bahia, o hoje ministro da Casa Civil, Jaques Wagner, foi convidado, mas não aceitou. O único do PT a participar foi Paulo Bernardo, na ocasião ainda ministro das Comunicações.

O almoço foi frugal e está no fim. Nada de sobremesa. Só cafezinho e em seguida a conta.

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