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Assim que saíram os resultados da eleição de Trump, mandei uma nota para alguns amigos dizendo que estava vendendo baratinho, no site “enjoei”, meu diploma de doutorado em ciências políticas da Universidade da California, Berkeley, assinado por Ronald Reagan, então governador da California. Na véspera, havia sido feliz por dois dias, acreditando, com base em alguns farrapos de evidência (como os resultados de uma pesquisa no estado de Iowa), que havia uma boa chance de uma maré pró Kamala Harris que poderia decidir a eleição em seu favor. A maré aconteceu, mas contra. Há muito que desisti de dar prioridade a meu chapéu de cientista político, preferindo o de sociólogo, mas achei que agora não poderia deixar de dizer alguma coisa sobre as eleições, e me pareceu que o paralelo com Ronald Reagan seria bom um gancho.
Reagan era um locutor de rádio, artista de filmes “b” e apresentador de televisão que ganhou notoriedade por se comunicar bem, e foi financiado por um grupo de empresários para propagar as ideias conservadoras que lhes interessavam. A California, nos anos 60, era um dos estados mais prósperos e dinâmicos dos Estados Unidos, e possuía também o sistema mais avançado de educação superior pública, liderado pela Universidade da California e tendo por base uma grande rede de colégios comunitários. A California foi também o berço do movimento hippie, do movimento estudantil nos Estados Unidos, e das mobilizações contra a guerra do Vietnam. O governo estava solidamente nas mãos do Partido Democrata, que havia se comprometido nacionalmente com o movimento dos direitos civis e procurava se desvencilhar da guerra no Vietnam, na qual havia se envolvido. Reagan ganhou as eleições pelo Partido Republicano em 1966 apoiado por empresários que queriam mais liberdade para seus negócios, grupos religiosos e de classe média que se ressentiam da revolução de costumes e dos movimentos sociais e dos impostos que o Estado cobrava para manter suas políticas sociais e de modernização econômica, e pessoas pouco educadas que se ressentiam das elites formadas pelas universidades do Estado. Foi governador até 1975, e, depois de algumas tentativas, foi eleito presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989.
Exceto talvez em relação ao tema dos imigrantes, era uma plataforma praticamente igual à de Trump, em sua oposição aos movimentos sociais, à presença do Estado na economia e na sociedade e ao anti-intelectualismo. Uma outra semelhança entre Reagan e Trump é que nenhum dos dois tinha muita paciência nem competência para entender as complexidades da tarefa de governar. A diferença é que Reagan se contentava com o papel de presidente de fachada, deixando o governo para os “adultos” que o rodeavam, enquanto Trump acha que pode decidir tudo sozinho, e não tem o menor respeito ou consideração pelas instituições públicas, que Reagan não questionava.
Nos dois anos que passei em Berkeley, 1967-8, havia duas agendas, a dos movimentos políticos que agitavam o campus e o programa de estudos do departamento de ciência política, que estava dividido em duas correntes, a de “filosofia política”, que buscava dar um fundamento acadêmico e intelectual aos movimentos da rua, e a mais empírica, que buscava entender e explicar a lógica de funcionamento dos sistemas políticos, sobretudo o americano. Eu já tinha tido meu aprendizado de movimento estudantil no Brasil de pré-1964, e dei prioridade à segunda, tentando entender sobretudo as origens institucionais dos sistemas modernos de governo. Este foi o tema de minha tese de doutorado, voltada para as instituições coloniais brasileiras e seu impacto na política e sociedade contemporâneas, muito antes que Daron Acemoglu e colegas ganhassem o prêmio Nobel de economia por redescobrirem esta questão.
Em Berkeley, nunca conheci um americano que fosse republicano, mas havia montes deles em Los Angeles e outras partes. Reagan, como governador, mandou cortar parte dos recursos da Universidade, mas presidia seu Conselho de Regentes e assinou meu diploma (quase certamente por alguma máquina). Naqueles anos o establishment americano, assustado pelos movimentos reformistas, começava um ciclo de reação conservadora, e o Brasil continuava mergulhado no autoritarismo do regime militar. Mas ainda reconhecia e avalizava os diplomas produzidos por suas instituições.
A moral da história, se é que ela tem moral, é que não há nada especialmente novo na reação conservadora de Trump, vitorioso contra um Partido Democrata que se exauriu ao tentar atender ao mesmo tempo as agendas dos movimentos sociais, dos movimentos identitários, da agenda climática, e as responsabilidades econômicas e militares de “big brother” de um mundo cada vez mais complicado e refratário a seu comando. Parte dos apoiadores de Trump endossam sua agenda conservadora; mas suspeito que a grande maioria dos que votaram nele são, simplesmente, “contra tudo que está aí”.
A diferença é que o ataque de Trump ao establishment americano é muito mais profundo do que uma simples oscilação da balança de poder. O paralelo com Reagan faz algum sentido, mas talvez o principal paralelo a ser feito, com os devidos cuidados, é com as lideranças fascistas que dominaram a política de seus países e destruiram os governos constitucionais na Itália e Alemanha um século atrás.
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