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É Eduardo Giannetti quem aponta a importância de distinguir as três modalidades fundamentais de catástrofes humanas. Duas são bem conhecidas: os desastres puramente naturais, como terremotos e tsunamis, e as calamidades que o ser humano impõe ao próprio ser humano, como guerras e ataques terroristas. A terceira categoria é feita dos eventos que resultam da ação humana, mas não da intenção humana. Este artigo se propõe a discutir uma vertente deste último tipo de catástrofe: os desastres provocados por consequências não intencionais de ações e omissões de governos, combinados com excesso de complacência e desinteresse pela coisa pública por parte expressiva da sociedade.
Nos EUA, o húbris de Donald Trump encontrou sua nêmesis em Joe Biden. A arrogância, imoderação, ganância e audácia excessiva de Trump perderam a eleição para Biden, que personifica o oposto simétrico dessas características: ausência de arrogância e ganância, moderação, audácia sem excessos. Mas Trump resta um fenômeno cuja compreensão justifica esforço detido. Seus quatro anos culminaram, em 6 de janeiro, com a inacreditável invasão do Congresso por uma turba por ele insuflada. Bolsonaro, também ele um fenômeno, perde agora seu ídolo e modelo político. Talvez tenha registrado o repúdio claro das instituições norte-americanas ao inédito desvario de Trump e seus fiéis, cujo comportamento mostra absoluta falta de espírito democrático e deixa clara a propensão ao autoritarismo. Que poderia funcionar, como já funcionou, em dezenas de países desprovidos de freios, filtros e contrapesos institucionais, e de uma mídia profissional independente, como há nos EUA. E como esperamos manter no Brasil, apesar de tudo.
Nos últimos três quartos de século o Brasil teve, antes de Bolsonaro, oito presidentes eleitos diretamente pelo voto popular: Dutra, Getúlio, Kubitschek e Jânio, antes do regime militar, e depois deste, Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma. Desses oito, quatro não concluíram o mandato para o qual haviam sido eleitos. O placar está em 4 x 4 e será em algum momento desempatado por Jair Bolsonaro. Dos presidentes mencionados, apenas três (JK, FHC e Lula) transmitiram o cargo a outro presidente também eleito diretamente pelo voto popular. Apenas um (Lula) não só recebeu, como passou o cargo a alguém também eleito (eleita, no caso) pelo voto popular.
Dores do processo de consolidação de uma jovem democracia, dirão. Mas essa instabilidade, e a própria eleição de Bolsonaro, tem raízes profundas, que cumpre identificar, quanto mais não seja para tentar evitar em 2022 a reedição da polarização que se viu em 2018, na qual tanto se empenham Bolsonaro e seus seguidores fiéis, incluindo a ativa e agressiva militância das redes sociais.
Repetidas vezes comento neste espaço as aspirações do eleitorado e da sociedade desta que é a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo. São demandas por infraestrutura física e humana (saúde, educação) e, crescentemente, por combate à pobreza e à desigualdade de renda e de oportunidades. A capacidade do poder público de oferecer respostas a todas essas demandas é sempre insuficiente. Nesse espaço de frustração, populistas e demagogos apresentam suas promessas eleitorais, fadadas ao descumprimento.
Marcus André Mello refere-se ao “lado da oferta” desse descompasso: a medida em que a capacidade de atender às aspirações e expectativas é limitada por problema político-institucional fundamental. A saber, a combinação de presidencialismo forte, multipartidarismo fragmentado, federalismo robusto e partidos fracos, que dificulta sobremaneira ao Poder Executivo qualquer esforço voltado para a construção de base de sustentação parlamentar capaz de aprovar sua agenda. A tarefa já é momentosa quando o governo federal é capaz de se coordenar internamente para, então, dialogar com o Congresso. Quando nem isso consegue, acentua-se a incapacidade de dar respostas adequadas. Aqui estamos, e é difícil imaginar o que seriam mais quatro anos do mesmo, a partir de 2023.
Em seu belo artigo de final de ano, Desafios para 2021 e depois, na Folha de S.Paulo, Arminio Fraga externou um pingo de otimismo: “As deficiências são tantas que há um amplo espaço para melhorias. Um (outro) governo, com visão e capacidade de execução, poderia acelerar bastante o crescimento”. Tendo a concordar. Mas para tal seria necessário que o eleitorado brasileiro estivesse preparado em 2022 para, pelo voto, tornar aquele o último ano da era Bolsonaro.
Como fez o eleitorado norte-americano ao barrar o ano 5 da era Trump. Desfecho alcançado a duras penas, em larga medida pela desastrosa condução do combate à covid-19. Até então Trump estava em marcha batida para a conquista do segundo mandato. Havia razões para crer que lograria êxito: o bom desempenho da economia, seu inegável apelo político-eleitoral e, não menos importante, as divisões do campo adversário, até a tardia consolidação em torno de Biden. Para países obrigados a lidar com aqueles que têm Trump como modelo, há relevantes lições a extrair. Ainda há tempo – mas não muito.
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ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM
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