A derrocada


Boa parte da contrariedade hoje existente com o governo tem a ver com a sensação de que fomos enganados, e que durante as eleições de 2014 a candidata Dilma ocultou problemas, pedalou as contas públicas, abusou da contabilidade criativa, fez controle de preços igual ao Sarney em 1986, tudo isso para entregar, no primeiro biênio de seu segundo mandato, o pior PIB de nossa História.

Apenas em 1930­31, em virtude da Grande Depressão, tivemos dois anos seguidos de queda no PIB, acumulando 5,33% para baixo. Se o crescimento no restante de 2016 se mantiver em zero, o que será um grande progresso, o PIB de 2016 registrará uma queda de 2,48% (é o tal “carregamento estatístico”) e o biênio 2015­16 registrará uma queda acumulada de 6,23%.

Bem, com o que hoje sabemos sobre o Petrolão, e com suas ramificações e pestilências brotando tanto das páginas econômicas quanto do noticiário político­policial, é claro que estamos sendo enganados há muito mais tempo.

A derrocada que hoje vivemos começou em algum momento em torno de 2007­2008 quando a administração petista começa a encerrar um período de timidez, quando aceitou herdar a política macroeconômica anterior, apesar de mentir aos quatro ventos que era uma “herança maldita”.

Os primeiros anos do petismo poderiam ter Forrest Gump como patrono. A demografia estava extraordinariamente favorável, assim como as condições externas, e junto a isso, entre 2003 e 2013 o crédito bancário dobra relativamente ao PIB (de 23,6% a 55% do PIB), quase que exclusivamente em razão do crédito pessoal.

O endividamento familiar mais que dobra (de 20% para 46% da renda) sem maiores elevações no comprometimento de renda, em razão do advento do crédito consignado.

Esse combustível se mostra extremamente poderoso numa economia onde o envelhecimento da população produzia o fenômeno conhecido como a “ascensão da classe C”. Exemplo simples: famílias de 7 membros – casal que trabalha, mais cinco filhos em idade escolar –, era Classe D ou E pela Pnad no início dos anos 1990.

Quinze anos depois, são 7 de 7 trabalhando mais o avô que foi morar com a família, e é quem toma o crédito consignado por conta de aposentadoria pelo INSS, com o qual limpa os carnês da família, alongando suas dívidas. Esta é a classe C: 8 de 8 da família tem renda, nenhuma das meninas engravidou e todos moram e se endividam juntos.

O principal motor dessa transformação, que envolve redução da desigualdade, é a demografia, como tem se observado em vários lugares do mundo. Não se trata de programas sociais, nem de vontade política de ninguém.

O fato é que essa “idade de ouro” do consumo que se encerra em 2008 deu a impressão ao governo que eles haviam descoberto a pólvora. Esta soberba, combinada com a descoberta do pré­sal, assinalou a passagem da administração petista para uma segunda fase que poderíamos designar como de petismo desinibido, que vai nos conduzir à derrocada hoje muito claramente estabelecida.

O pré­sal foi a faísca final, pois foi entendido como um presente da natureza que nos transformaria numa grande Venezuela, onde os “royalties” podiam lubrificar um clientelismo político inaudito, inaugurando uma dinastia, e ademais parecia se materializar um mito fundador da nacionalidade, o de que a nossa natureza exuberante ia nos fazer ricos sem nenhum esforço.

A liderança política parece se embriagar nesse momento, e tudo se passa como se dois desafios fossem lançados. O primeiro, no lado da macroeconomia, era confrontar o “tripé”, tido como filho do Consenso de Washington, através da Nova Matriz. Vieram as “políticas anticíclicas” e outras esquisitices que foram ficando cada vez piores, especialmente no plano fiscal.

O segundo era o de confrontar a agenda de “ambiente de negócios”, também originária de Washington (esta Banco Mundial), e iniciar um novo modelo de relacionamento entre o público e o privado que, em retrospecto, pode ser descrito como o “capitalismo de capangas” (“crony capitalism”, em inglês) já amplamente estudado em outros países, notadamente entre os Brics. Nada de competição e mercados, mas de acordos e conchavos, políticas seletivas e definição de campeões e empresas amigas do poder.

Tínhamos aí, portanto, um ataque macro e outro micro aos pressupostos internacionalmente aceitos da boa política econômica. O governo adota esse novo receituário talvez pela crença, nada impopular em 2008, que o capitalismo estava acabado, ou que deveríamos buscar um modelo alternativo, meio chinês, meio chavista, sem falar nas razões obscuras para estas opções.

O desempenho econômico do País, de lá para cá, é uma tragédia, macro e micro. Vale o registro que a desarrumação macro não se traduz na volta da hiperinflação porque instituições e defesas foram criadas a partir de 1994 para que a doença não retornasse. Entretanto, a Nova Matriz resultou em uma crise de hiperendividamento público, cuja solução vai requerer bastante criatividade das melhores cabeças da economia brasileira nos próximos anos.

A desarrumação micro teve uma consequência explosiva, adicional à estagnação da produtividade: a corrupção em larga escala. O capitalismo companheiro se irradia a partir de alguns focos principais, e passa a enfrentar a resistência das instituições próprias da democracia de mercado que somos. O primeiro confronto foi no Mensalão, o segundo, bem mais sério, no Petrolão.

Tenha­se claro: a corrupção é tanto maior quanto menor é o papel dos mercados, maior a arbitrariedade decisória do agente público e menor é a transparência. As condições para o avanço da doença se multiplicam com as novas posturas “cronistas” do governo, e não há acidente algum em que a Petrobrás tenha sido maior teatro de operações desse enredo.

A Petrobrás, pasmem, está perto da insolvência. Quem poderia imaginar? Em face das obrigações da legislação americana a empresa registrou em seu balanço de 2014, R$ 6,2 bilhões em pagamento de propina ao longo do período 2004­2014. Corrupção auditada, prova firme, e Dilma Rousseff foi presidente do Conselho de Administração de 2003 a 2011.

As ações disparadas contra a adoção do “capitalismo companheiro”, destacadamente a operação “Lava Jato”, são de importância essencial para afastar do País esta forma pervertida de relacionamento entre o público e o privado que o petismo quis implantar no país. Será fundamental que as investigações prossigam até onde a vilania se estender e também que as instituições se fortaleçam para prevenir a reincidência dessas práticas. Nesse sentido, são importantes as dez medidas propostas pelo Ministério Público, cujo foco é o processo
penal, mas também e principalmente o retorno das pautas reformistas no terreno microeconômico com o intuito de melhorar o ambiente de negócios e fortalecer a economia de mercado.

Impessoalidade, concorrência, transparência e meritocracia são valores essenciais de uma economia de mercado sadia que queremos e podemos ser. Trata­se aqui de uma pauta de crescimento limpo, e a limpeza aqui não é apenas no tocante ao meio ambiente.

Gustavo H. B. Franco é ex­presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos.