Casa das Garças

A educação superior brasileira

Data: 

22/10/2022

Autor: 

Simon Schwartzman

Veículo: 

Monitor Mercantil

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Entrevista a Jorge Priori, publicada em Monitor Mercantil. 21 de outubro de 2022, p. 7 (revisada)

Conversamos sobre a educação superior brasileira com Simon Schwartzman, sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciências.

Como o senhor avalia a educação superior brasileira?

A educação superior brasileira expandiu muito rapidamente nos últimos 20 anos, mas essa expansão trouxe muitos problemas. Eu costumo dizer que essa expansão foi feita em cima de um modelo das profissões liberais. Todos querem um diploma prestigioso e que dê rendimentos tão bons quanto os recebidos pelos médicos e advogados. Essa é uma espécie de aspiração da população brasileira. O sistema público oferece isso em certa medida, e o sistema privado promete oferecer. O sistema expandiu, mas, proporcionalmente, poucas pessoas conseguem esse objetivo. E os que conseguem geralmente vêm de famílias mais ricas e mais educadas, que conseguem dar aos filhos uma educação básica em escolas privadas de melhor qualidade.

Criou-se um sistema que é extremamente custoso para o setor público, que financia a parte pública, e para a população, que, além dos impostos, paga as anuidades do setor privado quando não tem acesso ao sistema gratuito, mas que em grande parte não consegue resultados e fica pelo caminho. O Brasil não soube como lidar com as questões da diversificação e da ampliação da educação superior, que é um processo que ocorreu no mundo inteiro.

Quando o Brasil reorganizou o seu sistema de educação superior com a reforma universitária de 1968, inspirada no sistema norteamericano, a proporção de brasileiros que chegavam ao nível superior era de até 3%. Mas Brasil não copiou o sistema americano como um todo, com sua ampla base de colleges municipais, estaduais e privados, mas só o das universidades de elite de pesquisa e pós-graduação. Quando veio a demanda por mais educação, o setor público não conseguiu responder, e o setor privado abriu e respondeu de maneira bastante caótica.

Assim, nós temos uma situação de uma grande expansão que acabou criando um grande um custo e uma grande frustração.

Na sua opinião, quais são os principais problemas que afligem a educação superior brasileira?

O grande problema é o fato de que, apesar de ter crescido muito, ela não dá a qualificação que se espera para muitas pessoas. Do ponto de vista do setor público, nós temos uma questão complicada já que ele ficou limitado no seu crescimento por causa do modelo que foi adotado na década de 1960, com professores em tempo integral, fazendo pesquisa, cursos de pós-graduação, e alunos passando o dia todo na faculdade. Esse modelo não conseguiu se expandir. Algumas universidades se aproximam mais disso, mas a maioria das outras têm os mesmos custos, como se fossem de pós-graduação e pesquisa, mas não funcionam dessa maneira.

Se você olhar a pesquisa e a pós-graduação brasileira, ela está, relativamente, concentrada em poucas instituições. O custo das universidades públicas é muito alto, basicamente, por causa do regime de tempo integral da quase totalidade dos professores e do regime de serviço público. O resultado disso é que hoje em dia cerca de 25% dos alunos estão no setor público e 75% no sistema privado, que é um sistema desigual que em grande parte dá uma formação muito básica e muito simples.

O sistema privado cresceu em grande parte com subsídios públicos pesados através do sistema de crédito educativo, que foi à falência por causa do aumento descontrolado dos custos e inadimplência. Isso levou a uma situação de crise em que praticamente todo o sistema privado foi para o ensino a distância, que em princípio pode ser uma boa modalidade em alguns casos, mas que na maior parte é uma formação muito precária.

Nós temos um grande funil. Em 2021, 4 milhões de pessoas se candidataram ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio; em 2014, esse número havia sido de 8,7 milhões). Para que tenhamos uma ideia, o número de vagas oferecidas pelo setor público no ano passado foi de 262 mil (SiSU, Sistema de Seleção Unificada).

Grande parte dos que entram no Enem não consegue chegar às universidades públicas. Quando conseguem, uma pequena porcentagem entra nos cursos que gostaria, das universidades mais prestigiadas e carreiras que dão melhor resultado, mas a maior parte fica em cursos de menor qualificação e de menor qualidade. Ou então optam pelo setor privado, que aceita todos que conseguem pagar ou obter uma bolsa ou crédito educativo. Dos que que se matriculam em instituições públicas, metade abandona antes de terminar; no setor privado, o abandono chega a 60% ou mais. E, dos que terminam, metade não consegue uma profissão equivalente ao que se espera do nível superior.

O sistema inchou, cresceu muito rapidamente e criou custos de diferentes lados, gerando oportunidades, mas também muita frustração.

Da mesma forma que existem as soluções mais complexas, existem as soluções mais simples, de fácil implementação e que geram efeitos positivos. Na sua visão, existem soluções mais simples que poderiam ser implementadas para resolver parte dos problemas da educação superior brasileira?

Considerando o setor público, um ponto muito importante é o tema da diferenciação. Em todo o mundo, quando o sistema de ensino superior se expande, ele cria diferentes modalidades de formação. Além dos cursos tradicionais como Medicina e Direito, você tem cursos vocacionais curtos, com duração de 3 anos, mais diretamente direcionados ao mercado de trabalho. O Brasil quase não criou essa modalidade, e, praticamente só no setor privado.

Quando todas as pessoas buscam o mesmo tipo de qualificação, que são os bacharelados tradicionais, muitas delas acabam ficando pelo caminho. É necessário oferecer uma variedade diferente de cursos para as pessoas que chegam ao nível superior com diferentes níveis de qualificação.

Não há sentido em você tratar todas as universidades federais como se elas fossem idênticas, com as mesmas carreiras de professores, quando algumas delas têm uma orientação de pesquisa, pós-graduação e de ensino de alto nível, enquanto outras estão dando uma qualificação mais geral e mais básica, que também pode ser importante, mas que é muito diferente. Hoje em dia, mais de 90% dos orçamentos das universidades federais são gastos com pessoal. Isso não precisaria ser assim.

Outra questão, e que também tem a ver com o sistema privado, é o sistema de avaliação. O Brasil criou um sistema de avaliação que começou com o Provão nos anos 90 e depois passou para o Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior), já no Governo Lula, em 2004. Trata-se de um sistema obsoleto que avalia as instituições como se elas fossem destinadas à formação de alto nível de pesquisa, quando elas não são assim. É muito claro que esse sistema não funciona e não toma em consideração a diversificação do sistema.

Eu participei da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior, que no papel deveria ter sido responsável por rever esse sistema. O governo brasileiro, já no final da presidência de Michel Temer, contratou uma missão da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para trazer pontos de vista internacionais, comparar o Sinaes com outros países e propor a sua revisão. O trabalho ficou pronto no final do governo Temer, mas o governo Bolsonaro não teve o menor interesse pelo assunto.

Por fim, existe a questão do financiamento do ensino superior privado e público. Nos dois lados, o estudante que precisa estudar, mas que não tem condições econômicas, precisa ser assistido, se possível com bolsa ou com algum tipo de isenção ou crédito educativo. Além disso, não faz sentido nós termos 25% dos estudantes no sistema público, que é totalmente gratuito, e 75% no sistema privado, onde ele tem que pagar. A questão da gratuidade total no sistema público tem que ser revista.

Os problemas da educação superior pública são os mesmos da educação superior privada?

Não, eles são diferentes. No caso da educação superior pública, há uma questão de custos. Na minha visão, com o volume de dinheiro destinado ao setor seria possível atender mais gente, de melhor forma e com um público diferenciado.

Eu também diria que o sistema público tem problemas em duas pontas. Numa delas, nós temos as instituições de elite, que formam pessoas muito bem qualificadas e que contribuem para colocar o país na sociedade global do conhecimento. Aí o sistema superior brasileiro sofre porque é muito amarrado. As melhores universidades públicas no Brasil não têm liberdade para contratar um professor pagando um salário equivalente ao mercado internacional. Por exemplo, elas não podem trazer um cientista de ponta para coordenar um novo departamento. Os salários são rígidos e uniformes, havendo um sistema burocrático de concurso. As universidades de melhor qualidade não têm condições de competir por talento, o que seria o seu principal acervo e recurso.

Na outra ponta, nós temos a educação universitária de massa, onde você tem que dar uma qualificação prática mas não necessariamente de nível mais alto. O setor público não oferece essa modalidade de formação, pois continua tentando imitar o modelo da pesquisa, que na verdade não se aplica a 70%, 80% das universidades públicas.

Ele está amarrado a uma concepção tradicional da década de 1960, sem que haja um esforço para repensá-lo de forma a que tenha muito mais flexibilidade institucional para trabalhar com modalidades diferentes para atender diferentes públicos. Toda essa discussão de como você moderniza, atualiza e torna mais eficiente o setor público não foi feita.

Com relação ao setor privado, hoje em dia você já tem algumas instituições, que são poucas, que já começam a competir com o setor público em termos de qualidade. Por exemplo, se você quiser fazer uma excelente pós-graduação em Economia, você não vai para uma universidade pública, e sim para uma instituição como a FGV, o Insper em São Paulo ou a PUC no Rio. Estão entrando instituições que estão trazendo pessoas de melhor qualidade, pagando salários para professores de nível internacional e recrutando de maneira mais qualificada os estudantes. Essa competição não se dá em áreas mais pesadas de tecnologia, mas isso está começando a mudar, nas áreas de saúde e engenharia.

Contudo, isso é um setor pequeno. Grande parte do setor privado faz uma educação de massa para alunos, em geral, mais velhos, na casa dos 30, 40 anos, que não tiveram condições de se formar e que ficam buscando um diploma. As instituições privadas oferecem uma educação barata, à distância, mas com um controle de qualidade muito débil. Ninguém sabe exatamente o que os alunos estão recebendo. Eles recebem um diploma na esperança de que ele lhes dê uma excelente posição no mercado de trabalho, mas, cada vez mais, isso é difícil.

Seria necessário ter um sistema de avaliação e de acompanhamento para dar mais informações para a sociedade sobre o que está sendo oferecido, de forma a que as pessoas não caiam numa espécie de armadilha: entrar num curso; passar 3, 4 anos; pagar como puder aquilo que é cobrado, e no final ficar com um papel que não vale nada.

Além do mais, hoje em dia existe uma discussão internacional sobre novos tipos de conhecimentos, demandados pelas novas tecnologias. Fala-se muito das microcredenciais. Em vez de você dar um título depois de 3 ou 4 anos, você pode dar uma formação especializada de 4 meses, por exemplo, numa nova maneira de lidar com o computador, ou seja, um novo tipo de competência que o mercado de trabalho, que está em movimento, solicita. Isso praticamente não avançou no Brasil.

A discussão no Brasil sobre nível superior ainda está muita presa numa temática antiga. Só se fala acesso e financiamento, havendo uma espécie de briga entre o setor público e privado, que na verdade não faz muito sentido. Os dois são muito importantes, não sendo possível dispensar um ou outro.

Entra eleição e sai eleição, esse tema é tratado com um festival de platitudes e lugares-comuns, sendo a principal delas “mais recursos”. Por que a classe política não trata esse tema com objetividade?

Existem muitos interesses criados nos dois lados. O setor público fica se sentindo muito ameaçado, principalmente agora, já que o governo Bolsonaro é muito hostil à educação em geral, e à educação superior em particular. Ele nunca teve uma política, a não ser uma política de hostilidade para o setor como um todo. Há uma situação compreensível de se querer defender as instituições e as pessoas que estão lá, que têm salários e que vivem disso.

Por outro lado, essa postura defensiva dificulta uma discussão mais aprofundada de uma reforma que precisaria ser feita. Seria necessário ter um governo que ao mesmo tempo tivesse consciência da importância da educação superior e dos recursos para viabilizá-la, mas que não se fique simplesmente financiando o sistema que está aí da mesma maneira.

É preciso mudar o regime jurídico para dar mais autonomia e responsabilidade às instituições; diversificá-las para que elas possam fazer coisas distintas; mudar o processo gerencial para ter um sistema mais adequado de uso de recursos, e mudar o sistema de avaliação do setor público e privado, já que o Sinaes só se aplica na prática ao setor privado, com o setor público ficando de fora, pois não há nenhuma consequência ou efeito sobre ele.

Existe uma série de reformas necessárias para trazer o sistema para o nível do que acontece nos países desenvolvidos onde o sistema de educação superior se massificou, é grande, é caro e onde existe uma convivência do setor público com o privado.

 

 

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