Casa das Garças

A grande ameaça vem do lado fiscal

Data: 

01/07/2024

Autor: 

Persio Arida

Veículo: 

Valor Econômico

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Com política monetária apertada e política fiscal folgada, país tem combinação oposta à ideal, afirma um dos criadores do Real

Valor

A grande ameaça à economia brasileira hoje vem do lado fiscal, diz o economista Persio Arida, ex-presidente do Banco Central (BC). “Há um consenso de que o ideal é política monetária frouxa, com juros baixos, e política fiscal apertada, com superávit fiscal. Estamos na outra ponta: política monetária apertada e política fiscal folgada”, afirma ele, um dos criadores do Plano Real, que completa 30 anos.

Ao tratar das contas públicas, Arida destaca que o filme importa mais do que a foto. “Números fixos em economia fazem muito pouco sentido. O fato de a dívida ser alta, em si, não é tão problemático quanto parece. A preocupação não é o tamanho, mas a velocidade de crescimento”, afirma ele, ressaltando a importância da disposição do governo de enfrentar o problema. “Em matéria fiscal, importa a expectativa.”

Para ele, o filme no Brasil preocupa. “Há modos simples e complexos de agir. Uma reforma administrativa demora uma década para fazer. Mas, se você desvincular a Previdência do salário mínimo e fizer as desvinculações de educação e saúde da receita, são duas emendas constitucionais e o problema já muda de figura radicalmente”, observa Arida, lembrando que, em 1994, a equipe econômica havia proposto muito mais desvinculações do que foram efetivamente aprovadas no Fundo Social de Emergência (FSE). O mecanismo desvinculava parte das receitas e dava mais flexibilidade ao manejo orçamentário. “Estou falando de 1994. E, 30 anos depois, estamos com o mesmo problema. Isso mostra que não houve o amadurecimento da sociedade como um todo para enfrentar o problema”, diz ele.

“Fernando Henrique [Cardoso, ex-presidente] tinha uma frase de que eu sempre gostei – Nunca se deve desperdiçar uma crise. Na crise é que o status quo se desorganiza e é quando se consegue avançar. O governo vai aproveitar a atual crise para avançar ou não vai? No fundo, essa é a questão.”

Ao falar dos 30 anos do Real, Arida destaca o papel da democracia para o sucesso do plano. “A inflação brasileira foi de 20% ao ano para 200% ao ano, de 1970 até a véspera da democracia, e não houve nenhum plano de estabilização, como se concebe”, nota ele. “Com democracia, tem o voto, e os políticos percebem que o voto se orienta pela estabilidade econômica.”

Ao comentar o papel da Unidade Real do Valor (URV), a moeda indexada que não existia fisicamente, fundamental na transição de uma inflação elevada para uma inflação baixa, Arida lembra que a maior parte dos economistas foi cética. “E foi cética desde a partida; o Larida foi recebido com uma saraivada de críticas monumental”, diz o economista, referindo-se ao estudo escrito por ele e pelo ex-presidente do BNDES André Lara Resende em 1984, da qual a URV é uma variante. “Mas, do ponto de vista da opinião pública, o processo foi exatamente oposto. O povo abraçou a ideia, entendeu o mecanismo intuitivo.” A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Há quem diga que mudanças econômicas radicais são mais difíceis numa democracia, mas o sr. tem ressaltado o papel da democracia para o sucesso do Real. Por quê?

Persio Arida: Não é à toa que os vários planos de estabilização ocorreram com a democracia. A inflação brasileira foi de 20% ao ano para 200% ao ano, de 1970 até a véspera da democracia, e não houve nenhum plano de estabilização, como se concebe. Houve tentativas aqui e ali, mas nunca houve um grande plano de estabilização. Com democracia, tem o voto, e os políticos percebem que o voto se orienta pela estabilidade econômica. Ganha quem mantém a inflação baixa e, se possível, o desemprego baixo também. Mas a prioridade é a inflação. Essa percepção do voto é importante porque dá o impulso político para fazer o programa de estabilização. Como a estabilidade foi conseguida? Fernando Henrique foi eleito por causa do Real. Ele fez tudo para sustentar o Real. O próprio Lula, apesar de ter sido contra o Real e falado da herança maldita, não fez nada destruir os fundamentos do Real – pelo contrário, foi na mesma direção. A democracia permite explicitar a preferência dos eleitores e força os governos na direção da responsabilidade com o processo inflacionário.

Valor: Quais os principais motivos que explicam o sucesso do Real, após vários planos que fracassaram?

Arida: O Plano Cruzado era muito parecido com o plano israelense de 1985, mas foi mal executado. Em vez de ter um congelamento temporário, estendeu-se o congelamento e a política fiscal e a monetária eram expansionistas. Acabou num baita excesso de demanda. O que aconteceu com o Cruzado foi que o congelamento de preços ficou no imaginário popular. A avaliação era de que aquele plano não havia dado certo, mas um outro poderia dar. Essa visão fez com que todos os vários planos seguintes tivessem congelamento de preços. Até o Plano Collor, que era um bloqueio de liquidez monumental, tinha congelamento, o que era totalmente desnecessário – obviamente, sem liquidez não há demanda. Se você olhar os vários planos em detalhe, todos eles procuravam ter o que faltou ao Cruzado para dar certo. Ah, o Cruzado teve taxa de juros muito baixas? Então vamos ter taxas de juros altas. O Cruzado teve excesso de demanda, então vamos aumentar os impostos. O Cruzado tinha liquidez excessiva, então vamos tirar a liquidez da economia. Nesse sentido, os vários planos subsequentes foram natimortos. Repetir a dinâmica do Cruzado foi um erro enorme. Aquilo ficou no imaginário coletivo. Com isso, o mantra do Plano Real, muito mais do que a URV, foi dizer — “Não haverá congelamento. Não haverá surpresas. Tudo vai ser pré-anunciado”. A preocupação era desmontar essa fixação do imaginário coletivo.

Valor: Esse foi um dos fatores decisivos para o plano ter dado certo?

Arida: Eu não tenho a menor dúvida. É claro que a montagem da URV, basicamente uma variante do Larida, [um trabalho] que eu e o André [Lara Resende] tínhamos escrito em 1984, foi fundamental. Mas, do ponto de vista da opinião pública, tão importante quanto a URV foi enfatizar o mantra de que não haveria congelamento de preços e salários e que tudo seria pré-anunciado. Esses dois elementos, do ponto de vista da retórica política e do convencimento, foram fundamentais. Tem um livro do Fernando Henrique, “A Arte da Política”, em que há um capítulo sobre o Real. Há um momento em que ele fala de uma reunião de economistas e eu dei uma ideia que o entusiasmou – fazer um plano pré-anunciado em etapas, o que ele chamou de uma pedagogia democrática. Ele começou a percorrer o país para explicar as etapas ao povo. Seria o modo de não ter mais surpresas, de não ter o elemento que lembrava o congelamento. O país precisava do oposto da surpresa que vinha do congelamento.

Valor: Qual foi o papel da URV? Fazer a transição de uma inflação muito alta para uma inflação bem mais baixa?

Arida: Foi exatamente esse papel. A URV é uma construção “made in Brazil” – não teve nenhum plano do mundo feito desse modo — e se conseguiu desinflacionar a economia de uma maneira surpreendente. O mais extraordinário é que a maioria da profissão dos economistas sempre foi cética em relação ao plano – e foi cética desde a partida; o Larida foi recebido com uma saraivada de críticas monumental. Mas, do ponto de vista da opinião pública, o processo foi exatamente oposto. O povo abraçou a ideia, entendeu o mecanismo intuitivo, embora a URV tenha uma tecnicalidade grande. O fato é que a população percebeu que havia ali um elemento da coisa certa, da coisa justa. O salário vai ter um valor que não vai mais ser corroído pela inflação. A questão da conversão de preços em URVs também foi algo extraordinário. Não tinha norma, não tinha decreto, não havia exigência legal. Quando nós dizíamos que os preços estavam livres para serem convertidos em URV, por que a pessoa iria aumentar o preço? O termo que eu usaria é de um pacto social implícito. Não havia norma. Ninguém obrigou. Havia explicação.

Valor: A fragilidade das contas públicas sempre foi apontada como um dos calcanhares de aquiles para o lançamento e para a sustentação do Real, embora o FSE tenha dado alguma margem de manobra para o governo. De que modo as incertezas fiscais afetaram o Plano?

Arida: Em matéria fiscal, muitas vezes importa mais o filme do que a foto. Houve uma substantiva contração de despesas no ano de 1994, em parte pelo FSE, em parte pela não liberação efetiva de verbas. Mas, estruturalmente, o ajuste de 1994 foi insuficiente e o déficit voltou. Só acabou com o tripé macroeconômico [adotado em 1999, composto pelo regime de câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários]. Mas o fato de FHC ter sido eleito por causa do Plano Real deu certeza aos mercados de que, se necessário fosse, ele faria tudo para sustentar o plano, inclusive um forte ajuste fiscal. Essa expectativa se mostrou fundada. Voltando ao FSE, ele saiu muito menor e muito menos ambicioso do que nós queríamos, mas ele acabou acontecendo. Além disso, houve um represamento na boca do caixa de gastos pelo Tesouro, o que se sustenta apenas por um tempo. Foram dois elementos importantes. Isso sinalizou a nossa disposição e o nosso entendimento de que o fundamento da estabilidade é fiscal. Nesse sentido, ter uma equipe que implementa e fala isso foi muito importante. Não adianta a promessa do ajuste fiscal, porque a dinâmica política é incontrolável. Você tem que começar por ele. A experiência do Cruzado foi muito importante nesse aspecto, porque mostrou que você precisa partir primeiro do ajuste fiscal. Com o Real, não foi o ajuste fiscal definitivo. Quando você olha os anos subsequentes, havia déficit, de 1995 a 1999. Mas, como eu disse, em matéria fiscal, importa o filme muito mais do que a foto. A foto era de um déficit, mas as pessoas sabiam que a equipe econômica tinha começado com o ajuste fiscal, sabiam que a equipe econômica continuava no governo, sabia que o governo dependia do programa e sabia que o Fernando Henrique foi eleito por causa do Real. Se precisasse, ele faria o ajuste fiscal, o que ele acabou fazendo. Em matéria fiscal, importa a expectativa. Vamos dizer que eu tenha um déficit hoje, que pressiona a demanda, o que faz o juro ser alto demais, para manter a inflação sob controle. Se eu achar que daqui a um, dois, três anos, isso vai acabar, eu não desancoro a expectativa de inflação.

Valor: A âncora cambial durou tempo demais. O real só flutuou em janeiro de 1999. Isso colocou em risco o Real?

Arida: Houve muito debate entre nós sobre a âncora cambial. Eu queria ter flutuado de partida. O presidente achou muito arriscado, o que acabou levando à minha saída como presidente do Banco Central [em junho de 1995]. Impossível saber hoje se teria sido o melhor caminho – exercícios contrafactuais são sempre controversos. O fato é que o caminho da âncora cambial terminou no Brasil como terminou em inúmeros outros países: numa enorme crise do balanço de pagamentos que leva à flutuação.

Valor: O Real completa 30 anos e a inflação nunca mais saiu do controle, embora tenha voltado em alguns momentos a superar dois dígitos, como em 2002/2003, 2015/2016 e 2021/2022. Por que o Brasil não teve mais episódios de inflação mais elevada e persistente, ao contrário da Argentina?

Arida: A inflação de um dígito tem dinâmica muito diferente da alta inflação. É basicamente o resultado da política monetária e da política fiscal do presente e das expectativas sobre a sua evolução no futuro. Nos casos em que chegou a ser de dois dígitos, houve uma rápida correção de rumos na política macroeconômica porque os governantes sabem que inflação alta leva à perda de poder. Nesse sentido, o voto popular é o esteio da estabilidade. Quanto à Argentina, houve um paralelo artificial com o Brasil. Ambos tiveram inflações crônicas que degeneraram em hiperinflação, mas a reserva de valor da Argentina sempre foi o dólar no exterior, enquanto no Brasil foi o ativo monetário doméstico, sustentado por taxas de juros que compensavam a inflação. O Plano Cavallo era uma plano de conversibilidade plena e o Real um plano lastreado na experiência da correção monetária, porque as histórias dos dois países na escolha da reserva de valor foi diferente.

Valor: Qual é o principal legado do Real? E qual é a maior a ameaça hoje à economia?

Arida: O principal legado é a própria estabilidade. A grande ameaça vem do lado fiscal. Ter um Banco Central independente ajuda muito na estabilização das expectativas. O tema da coordenação de políticas fiscal e monetária é antigo, há décadas e décadas debatido no mundo todo. Há dois modos de sustentar uma inflação baixa – com taxa de juros baixa e política fiscal apertada ou política fiscal solta e taxa de juros alta. Há um consenso de que o ideal é politica monetária frouxa, com juros baixos, e política fiscal apertada, com superávit fiscal. Estamos na outra ponta: política monetária apertada e política fiscal folgada. Parte do problema é institucional. É importante dar voz e voto ao Banco Central na determinação da política fiscal. Veja bem, as diretrizes básicas da política monetária estão fixadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), composto pelos ministros do Planejamento e da Fazenda e pelo presidente do Banco Central. Teríamos que ter uma institucionalidade semelhante para a política fiscal. A razão é que trajetória da dívida pública depende das duas políticas, fiscal e monetária. E também da taxa de crescimento, é claro.

Valor: Qual é problema institucional nesse caso?

Arida: Nós temos uma institucionalidade curiosa. A Fazenda opina sobre o BC, mas o BC não opina sobre a Fazenda. É necessário ter uma institucionalidade em que o BC opine sobre assuntos fiscais tanto quanto o Tesouro opina sobre assuntos monetários. A institucionalidade tem que forçar a coordenação, o que nós não temos hoje. Outro problema é a eterna pergunta – quando a dívida pública fica impagável. O que importa é o filme, muito mais do que a foto. Se você tiver disposição para equacionar o problema da dívida pública, se você sinalizar que vai fazer de um modo crível, o problema não aparece hoje. O compromisso do governante nessa direção faz uma enorme diferença. Não é tanto o deficit hoje, mas o compromisso de resolver o problema para frente. Quanto se fala em dívida pública, há uma noção errada. Ah, você vai monetizar e vai dar uma hiperinflação. Não dá, isso é uma visão antiga. Hoje, a liquidez é toda remunerada.

Valor: O sr. vê o risco de dominância fiscal no Brasil?

Arida: Dominância fiscal é algo de que se fala muito, mas eu nunca vi ocorrer no Brasil. Há um teste que é muito simples sobre dominância fiscal. Se você aumenta a taxa de juros e a moeda desvaloriza, há um problema de dominância fiscal. Se você aumentar os juros e a moeda, tirando outros fatores, valorizar, não há dominância fiscal, que é a situação que nós temos aqui. A discussão não é tanto sobre o tamanho da dívida. O que faz diferença é a disposição de enfrentar o problema da dívida pública.

Valor: Como o sr. vê a situação fiscal? A dívida bruta deve crescer 10 pontos percentuais do PIB no atual governo.

Arida: Não existe um número fixo – a partir de 90% do PIB, por exemplo, cria-se uma situação irreversível. Números fixos em economia fazem muito pouco sentido. O fato de a dívida ser alta, em si, não é tão problemático quanto parece. A preocupação não é o tamanho, mas a velocidade de crescimento. De novo, se você sabe que o governante, se necessário, vai agir, é uma coisa. Eu insisto que o problema não é tanto o nível, mas sim a velocidade de crescimento, que é intrinsecamente ligada à crença na determinação do governo de equacionar o problema.

Valor: Voltando à sua imagem. Não é o que está ocorrendo? A foto não é tão ruim, mas o filme está preocupando?

Arida: O filme preocupa. Como sempre, há aquela história de que o Brasil vai até a beira do precipício e dá meia volta. Não pula. Há essa visão de que se a situação ficar realmente grave, os governantes agem. Há modos simples e complexos de agir. Fazer uma reforma administrativa, por exemplo, uma desconstitucionalização geral, são coisas complexas, difíceis e levam tempo. Uma reforma administrativa demora uma década para fazer. Mas, se você desvincular a Previdência do salário mínimo e fizer as desvinculações de educação e saúde da receita, são duas emendas constitucionais e o problema já muda de figura radicalmente. Uma coisa é a reforma estrutural do setor público para ter um Estado eficiente, moderno e barato. Outra coisa é corrigir distorções que fazem uma enorme diferença na evolução da dívida pública. São simples de escrever juridicamente, como essas desvinculações. Mas é fácil falar. Eu disse que o FSE aprovado foi um pedaço do que nós tínhamos proposto, porque na versão original havia inúmeras outras desvinculações. Estou falando de 1994. E, 30 anos depois, estamos com o mesmo problema. Isso mostra que não houve o amadurecimento da sociedade como um todo para enfrentá-lo. Não é uma questão intelectual de dificuldade de compreensão. Já estava maduro, tinha sido proposto em 1994. É muito mais uma questão política de amadurecimento da sociedade.

Valor: O sr. vê o atual governo com disposição para enfrentar isso?

Arida: Fernando Henrique tinha uma frase de que eu sempre gostei – Nunca se deve desperdiçar uma crise. Na crise é que o status quo se desorganiza e é quando se consegue avançar. O governo vai aproveitar a atual crise para avançar ou não vai? No fundo, essa é a questão.

 

 

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