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Em junho de 1994, a inflação brasileira foi de 47,43% — para termos de comparação, mais de dez vezes o resultado previsto para este ano inteiro. No mês seguinte, o índice recuou para “apenas” 6,84%. Foi resultado direto da entrada em circulação do real, moeda incrivelmente longeva para os padrões históricos brasileiros. Foi a que durou mais tempo, desde os réis, adotados ainda na colonização e que foram a moeda nacional até 1942. O Plano Real, cujo aniversário de 30 anos se comemora no próximo dia 1º de julho, deu fim a décadas de uma hiperinflação que desorganizava a economia brasileira e tornava o cotidiano do cidadão comum desafiador. Para o economista Edmar Bacha, um dos principais personagens de sua implementação, foi uma conquista civilizatória: “Um país se define por seu hino, sua bandeira, sua moeda e sua Constituição”, resume. Nesta entrevista, que dá início a uma série de conversas que O GLOBO publicará nos próximos sábados com figuras-chave do Plano Real, Bacha lembra como as decisões políticas nortearam o ajuste econômico em 1994. E cita como legado do fim da inflação a percepção de que o tema é decisivo nas urnas: “A sociedade acabou virando a grande protetora da moeda por causa do processo eleitoral. Enfim, pela democracia”.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista e veja neste vídeo a visão de Bacha sobre o legado do Real:
O Brasil teve uma sucessão de planos, inclusive o Cruzado, do qual o senhor participou. Por que o Real foi diferente?
A inflação disparou na transição da ditadura para democracia e aí vieram os planos heterodoxos, que foram um fracasso. A inflação subia, e as pessoas já sabiam que ia ter congelamento, e a inflação subia ainda mais para se prevenir do congelamento que viria. Houve o Plano Cruzado, Plano Verão, Plano Bresser. Atingiu uma cumeeira com o Plano Collor 1: ele decidiu “agora vou congelar também a moeda”, com o confisco em 1992 (o presidente Collor bloqueou os saldos bancários de todos os cidadãos, provocando uma redução abrupta do dinheiro em circulação para forçar uma queda na inflação). Foi junto com a Eco 92 aqui (Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, em 1992). Consta que o Fidel Castro (ditador cubano), que estava no Rio, vendo aquilo, falou assim: “Ué, pode fazer isso no capitalismo? Eu achava que só podia confiscar a riqueza se fosse com o comunismo”.
E como foi a entrada da equipe no governo Itamar Franco?
O presidente Itamar teve três ministros da Fazenda, durando 75 dias cada um, e aí o Fernando Henrique assume, e a gente entra no governo. A nossa ideia não era fazer um plano de estabilização porque já estava no segundo ano do governo, não tinha nenhuma legitimação parlamentar. E há coisas que você precisa fazer num início de governo, mais ou menos imperiosamente como o (Javier) Milei (presidente da Argentina) está fazendo agora. A expectativa meio ingênua do nosso grupo de economistas era ir arrumando a casa e, quando a gente tivesse um governo de fato, com quatro anos pela frente e legitimado pela eleição, a gente faria o plano de estabilização. Essa era a ideia inicial.
Mas aí, em 13 de agosto de 1993, dia das bruxas e também dia dos economistas, Fernando Henrique me chama para uma reunião no seu apartamento. Contei como seria o plano que a gente iria fazer (as ideias que estavam sendo discutidas com os demais economistas na PUC para um possível futuro governo) e o Fernando Henrique ficou entusiasmado e levou para o Itamar. À noite ele já tinha convidado o André Lara Resende e o Pedro Malan para fazer parte da equipe.
Como foi aquele início do Plano Real?
Nós falamos o tempo todo que tudo ia ser negociado com Congresso e preanunciado. A gente já tinha aprendido no Cruzado (plano de congelamento de preços de 1986, no governo José Sarney, do qual Bacha também participou) que uma vez que se fizesse a mágica, perdia-se o controle sobre o processo. Quando fizemos a medida provisória da URV, eles queriam mudar tudo no Planalto. (Antes do lançamento do real como moeda, foi criada em 27 de fevereiro de 1994 a URV, a Unidade Real de Valor, que tinha paridade com o dólar e serviu para ancorar os preços. Era um índice ajustado diariamente. Em 1º de julho, fez-se a conversão, e cada URV passou a valer R$ 1).
Fernando Henrique (ministro da Fazenda) teve que ameaçar se demitir para conseguir mandar a MP de acordo com o que a gente tinha decidido. Então, a gente tinha muito medo. A ideia era o seguinte: vamos lançar a URV e dizer que lá na frente vai ter uma estabilização. Isso deve bastar, mas não bastou não. As pesquisas de opinião pública continuavam dando, com URV e sem URV, 40% para o Lula e 20% para o Fernando Henrique. (Nas eleições de 1994, Lula era o líder da oposição e Fernando Henrique, então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, seria o candidato governista).
A decisão de quando a moeda real seria lançada foi política?
A decisão da introdução do plano foi política. Nós não éramos só tecnocratas, éramos políticos. Nós estávamos ali como membros de um partido (o PSDB, que apoiou a coalização do governo quando Itamar assumiu após o impeachment de Fernando Collor de Melo). Politicamente, para eleger o Fernando Henrique, a gente tinha que lançar o real antes das eleições. Prejudicou um pouco, tanto que deu inflação logo depois. A inflação foi 6% em julho de 1994. Ela não caiu para zero. Isso teve duas consequências, uma dramática e outra engraçada.
Quais foram essas consequências?
A dramática foi quando o ministro (da Fazenda) Rubens Ricupero caiu. (Ricupero assumiu o ministério quando Fernando Henrique saiu para concorrer à presidência. Pouco antes de dar uma entrevista, vazou um áudio em que afirmava sobre a alta da inflação que “o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”, no episódio conhecido como “escândalo da parabólica”). A engraçada foi quando eu fui explicar para a imprensa que a inflação que parecia que era 6% ou 5%, era zero na verdade. “Se você tirar esse produto aqui, tirar esse outro produto, dá zero”, disse na época.
Na semana seguinte, tinha um personagem novo no Casseta e Planeta (programa humorístico da Rede Globo dos anos 1990). Era o Edmar Caixa, um sujeito com chapéu e uma capa de chuva que ia visitar o supermercado e ficava olhando os preços. Na hora que ele via alguma coisa com preço alto, ele pegava e enfiava debaixo da capa. Segurou algumas semanas, eu virei para o Sérgio Besserman (na época presidente do IBGE e irmão de Bussunda, um dos autores do programa) e pedi sério: “fala para seu irmão que não está dando, meus filhos estão sofrendo bullying, estão dizendo que o pai dele rouba coisas no supermercado”. Foram bonzinhos comigo e acabaram com o Edmar Caixa.
Foi o melhor momento econômico também?
Havia controvérsias técnicas. Tanto Mário Henrique Simonsen (ex-ministro da Fazenda do governo militar) quanto o Dionísio Dias Carneiro (professor da PUC) falavam: ‘Bacha, não seja maluco. Vocês vão ficar rodando a URV quanto tempo? Vai dar a inflação em URV. Vocês já conseguiram converter o salário pela média, já fizeram esse milagre. Lança logo esse real. Não era óbvio que se você deixasse a URV rolando não ia dar inflação em URV.
Virar a chave da URV para o real era meio o teste da verdade? Tinha o temor de que não ia der certo?
Claro que tinha, mas havia uma certa simpatia pela equipe, porque era a equipe do Cruzado que causou felicidade geral da nação durante um ano.
O que foi diferente também do que se viu nos nossos vizinhos, como a Argentina.
Esses países não tiveram o grau de indexação que a gente teve. Eles eram países dolarizados. O Brasil nunca dolarizou, porque inventamos a correção monetária. Nunca precisamos usar o dólar do jeito que os argentinos e os peruanos usavam. Era a moeda de referência. A nossa moeda de referência era a ORTN (Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional) e, ao fim, a URV.
Não havia o receio que a inflação explodisse com todos os preços indexados?
Claro que tinha. Ter duas moedas já tinha sido feito na Hungria, em 1944, com o pengo e o pengo fiscal, o que provocou a maior hiperinflação do mundo até o Zimbábue aparecer na história (país que teve inflação de 24.400% em 2007). Na origem do plano este era o grande debate. Mas, no Brasil, no real, nós não tivemos esse problema porque nós nunca deixamos ter duas moedas. Nunca elas conviveram (a URV e o real) Isso foi uma grande diferença.
Como foi desafio de comunicação?
Havia um esquema de reuniões semanais com a imprensa, para explicar tim-tim por tim-tim o que que tinha acontecido naquela semana e o que iria acontecer nas próxima semanas. Havia uma preocupação em fazer as coisas inteligíveis. Só a URV já era um negócio complicado. Mas na hora que pôs uma URV igual a um dólar, aí ficou mais fácil. Estou ganhando em dólar, então está tudo bem. Isso facilitou.
Aquele momento em 1999, quando foi mudado o sistema de câmbio fixo para o flutuante, foi o momento mais difícil do plano?
Sim, com certeza. Porque até ali a estabilização estava sendo mantida fundamentalmente por um câmbio apreciado ligado ao dólar e por uma taxa de juros extremamente elevada. Era política monetária de juros elevados e a âncora cambial que seguravam. De repente, a gente ia mudar o regime e o dólar ia flutuar. Então, havia uma guerra, que não era da mesma dimensão de trazer a inflação de 3000% para 20%, mas era uma coisa arriscada, não se sabia o que ia acontecer quando você soltasse o câmbio, o que ia dar.
Pensa se Milei solta o câmbio hoje. Solta nada. Vai ter de soltar daqui a uns tempos porque o FMI falou que só entra grana se você soltar o câmbio. (Ainda como candidato, Milei prometeu dolarizar a economia da Argentina, mas como presidente está fazendo pequenas desvalorizações para evitar a disparada da inflação que está perto de 290% nos últimos 12 meses)
Assim como a decisão do momento de lançar o real foi política, soltar o câmbio também foi uma decisão política (a mudança do regime veio logo depois de Fernando Henrique assumir o segundo mandato)?
Sim, e a outra razão foi que o mercado induziu, forçou a mudança. Acabaram as reservas.
Mas se pretendia soltar o câmbio antes?
Está lá nos nossos documentos, que acabei de doar para Fundação Fernando Henrique e vai se tornar público, está lá, no início de setembro. Vamos indexar no câmbio, colocar uma faixa e, em julho de 1996, vamos soltar o câmbio. Tivemos que negociar com o Congresso a indexação dos salários, o que provavelmente atrasou todo o processo. Não íamos soltar o câmbio com os salários indexados. Existia uma proposta de 70% da inflação passada e 30% de livre negociação.
O ministro do trabalho, Paulo Paiva, falou: por que não ser tudo negociação? E eu falei, o que você vai dar de contrapartida? Participação nos lucros. Santo Paulo Paiva. E houve circunstâncias políticas, dúvidas se já teria segurado o câmbio por tempo suficiente. Quem estava lá teve mais dúvidas do que eu teria. No dia que eles desvalorizaram, eu falei: o real renasceu ali.
A experiência com os planos anteriores ajudou?
Esse plano foi tão diferente dos outros porque a gente aprendeu. Esse tipo de inflação cai de repente ou ela não cai. Tem que ser de um golpe só. Como é que você dá um golpe, mas consegue anunciá-lo, porque se for congelamento você não pode anunciar, né? (O Plano Cruzado, anterior, fez congelamento de preços e, depois do fim do tabelamento, a inflação disparou) A URV foi um achado que vem das discussões que nós tínhamos na PUC ao longo de muitos anos e que se consolidaram ali em Brasília. Não precisamos congelar, nós vamos “urverizar”. Não vamos congelar os preços, nós vamos dar dólar para todo mundo. Isso foi um achado.
O impacto nas pesquisas eleitorais veio?
O plano só teve efeito para o público quando as pessoas puseram o dinheiro no bolso. Um mês depois (do lançamento da moeda real), Fernando Henrique estava com 40% e Lula com 20%. Foi uma coisa instantânea, impressionante o impacto nas pesquisas eleitorais. Quando a inflação caiu, você teve uma melhora nos indicadores sociais muito forte.
Não adiantava tentar resolver pobreza com transferência porque você dava dinheiro para o pobre e ele queimava no bolso (pelos efeitos da inflação). Você pôde fazer programa de transferência de renda efetiva, porque agora a moeda tinha valor. Foi uma precondição para os programas de transferência de renda.
Outras variáveis econômicas que foram importantes naquele momento, como a organização fiscal, a renegociação da dívida com os estados, saneamento do sistema financeiro, não foi só uma questão de ajustar inflação. Foi preciso ajustar outras variáveis também para o plano dar certo.
Mandamos para o Congresso um conjunto amplo de reformas. O que o Milei está fazendo agora. Mandamos 63 emendas para o Congresso revisor da Constituição. Aprovamos uma que permitia que as universidades federais contratassem professores estrangeiros, que era proibido, e aprovamos o Fundo Social de Emergência. As outras, o Congresso rejeitou todas.
Com a crise que o Congresso estava passando com o escândalo dos anões do Orçamento (Em 1993, a CPI dos Anões do Orçamento investigou 37 parlamentares por suposto envolvimento em esquemas de fraudes na Comissão de Orçamento do Congresso). Isso, Fernando Henrique fez ao longo de oito anos. Teria sido muito mais fácil fazer na entrada. Por isso, que o Milei está preferindo fazer na entrada.
Foi feita a renegociação da dívida dos estados, mas voltamos a ter problemas de endividamento.
Você têm estados críticos, mas têm estados que não estão. Quem está crítico é Rio, Rio Grande do Sul, Goiás, esses casos estão hospitalares. Agora os demais, estão indo bem, com ampla ajuda federal no caso do Norte e Nordeste. São Paulo está arrumado, Espírito Santo, Santa Catarina, Paraná, também não têm problema. Mato Grosso está muito bem.
E hoje, 30 anos depois, qual é o maior legado?
Gustavo (Franco, presidente do Banco Central na época) diz que hino, bandeira e moeda fazem uma nação. Ele devia ter falado da Constituição também. A gente não tinha moeda. Hoje nós somos uma nação. Tem esse aspecto civilizatório: uma economia com inflação baixa. Os políticos aprenderam que, se eles mexerem com inflação, não se elegem. O Lula pode falar sobre gasto, emprego, renda, mas ele sabe que se a inflação subir, ele não se elege. A sociedade acabou virando a grande protetora da moeda por causa do processo eleitoral. Enfim, pela democracia.
Com a moeda, o brasileiro já consegue pensar no futuro?
Muito se fala sobre poupança e investimento no Brasil. Temos o sistema previdenciário, um sistema de saúde universal gratuito, ao contrário dos países asiáticos. Mas por que os asiáticos poupam e nós não? Porque aqui, quando eu ficar velho ou ficar doente, vou ter renda e ter o SUS. O que é uma coisa boa, comparando a nossa situação como a dos asiáticos. O que é preciso é que o governo poupe. Já que ele vai prover o futuro, ele não pode pegar, por exemplo, a renda extra do petróleo e gastar tudo com despesa corrente ao invés de pôr no cofrinho para poder pagar a Previdência e o SUS lá na frente. Essa é a questão agora, de como a população induz os governos a se comportarem tendo em vista o futuro.
O que não se conseguiu fazer?
Nós somos um país em que a indústria e o serviço são voltados para o próprio umbigo. E que é muito pouco aberto para o mundo em termos de comércio. O agro é essa beleza, de concorrência de aumento da produtividade, mas a indústria é uma coisa que definha a olhos vistos. Por quê? Porque fica olhando para o próprio umbigo e tem um mercado interno mais ou menos grandinho. Fica satisfeita com esse mercado e o explora com o preço surreal em relação aos quais os consumidores podem fazer muito pouco.
Quem é rico pode comprar tudo lá fora e ainda pode gastar mil dólares no duty free. Quem é pobre e, de repente, descobre um canal chinês, que se for só US$ 50 pode trazer o que quiser. O governo descobre e a associação dos industriais faz pressão no governo e imediatamente querem taxar. Tá bom, vamos taxar, mas vamos taxar os Free Shop também e vamos taxar todo o turismo. Porque, se os pobres vão pagar, os ricos também vão ter que pagar. Ah, mas isso não pode. Então vamos encontrar outra maneira de resolver esse problema.
Por que os ricos têm acesso aos bens do mundo e os pobres têm que se conformar com esses preços irreais com produtos de qualidade substancialmente pior do que existe lá fora. É uma injustiça social inacreditável. E o mais inacreditável é que a esquerda compra isso . É totalmente de interesse do empresariado que explora monopolisticamente o mercado interno com preços irreais e, portanto, impede o acesso dos pobres e da classe média aos bens do mundo. Eu não entendo isso. Eu sempre falo que precisa abrir (a economia) por causa da produtividade, na verdade. é preciso abrir para ter um pouco mais de justiça social.
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