A vida que ele levou: John Williamson (1937-2021)


Deixou-nos recentemente o economista John Williamson, mais conhecido como o Pai do Consenso de Washington. Casado com uma brasileira, John viveu no Brasil de 1978 a 1981 e se manteve próximo desde então. Fui aluno do primeiro curso que John deu na PUC-Rio, em 1978. Ele insistiu em dar a disciplina em inglês, o que dobrou a dificuldade natural do curso. Eu, já pensando em estudar fora, revidei e pedi a ele permissão para escrever meus trabalhos e provas em inglês. Ele topou. Eu me lembro bem de um trabalho que voltou corrigido com comentários generosos e com a seguinte pérola anotada na margem (em inglês): “Your paragraphs are short and, therefore, jerky. English is very much like Portuguese in this respect” (“Seus parágrafos são curtos e, portanto, bruscos. Nesse sentido, o inglês é bem parecido com o português”, numa tradução livre). O mestre cuidando do aluno.

Seguimos em contato. Ele me perdoou os parágrafos curtos e escreveu uma carta de recomendação para a Universidade de Princeton, onde, assim como ele, fiz meu doutorado. Meu interesse era em economia internacional e macroeconomia, e ele me estimulou muito a ir para lá. Além de grandes nomes das áreas de nosso interesse comum, ele mencionou também Joe Stiglitz (“um gênio”) e Avinash Dixit (“um extraordinário microeconomista aplicado”), ambos teóricos brilhantes. Fui para lá. Por isso, minha eterna gratidão ao John.

John era um economista muito completo. Dominava todos os campos da disciplina, sempre com um olhar rigoroso, mas prático, não dogmático. Em matéria recentemente publicada no jornal O GLOBO, sua filha, Theresa Williamson, revelou que “perguntou ao pai o que havia defendido com mais ardor”. Ele citou, em minha adaptação do que ela disse, o sistema de bandas cambiais, a vinculação de dívidas de países ao crescimento econômico, a tributação do carbono e a formação do euro. As bandas cambiais eram uma forma de administração da taxa de câmbio que permitia alguma flexibilidade dentro do contexto do sistema de Bretton Woods, desenhado no Pós-Guerra, em que prevaleciam paridades fixas com a âncora global que era o dólar. Até 1974, era ligado ao ouro. A banda poderia ser fixa ou ajustável e poderia ter como referência o próprio dólar ou uma cesta de moedas.

O caso do Brasil ilustra bem a proposta. Em função de termos uma taxa de inflação superior à do dólar, era necessário ajustar periodicamente a taxa de câmbio, o que era feito por meio de minidesvalorizações. John deu importantes contribuições para essa discussão, tendo sempre defendido a manutenção de um câmbio competitivo. Essa literatura conversava com os trabalhos de Robert Mundell, também recém-falecido, e Peter Kenen, outro professor de Princeton, sobre que áreas deveriam usar a mesma moeda, base conceitual para a criação do euro. John e seus colegas fazem falta neste momento potencialmente turbulento em que a dominância do dólar está ameaçada pelo próprio euro e pelo renmimbi chinês.

A ideia de vincular o custo das dívidas dos países emergentes à taxa de crescimento do PIB é instigante. Se adotada, traria alívio em momentos difíceis, tais como o atual, quando recessões brutais causadas pela pandemia reduzem a capacidade de pagamento dos países. A ideia nunca vingou, provavelmente, por falta de confiança na medida do PIB, tipicamente controlada pelo devedor. Mas o conceito de certa forma permeia o desenho das instituições de Bretton Woods — Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio —, que oferecem amortecedores para choques econômicos como recessões, crises financeiras, fugas súbitas de capital e quedas nos preços das exportações.

A tributação do carbono completa a lista das contribuições de John. O tema está quente em mais de um sentido. Em algum momento mais iluminado das lideranças globais, poderá oferecer uma boa ferramenta para combater a terrível ameaça da mudança climática que paira sobre o planeta. Vejo sinais auspiciosos nesse front mundo afora, inclusive no Brasil, embora não no governo federal.

Curiosamente, John omitiu da lista o famoso Consenso de Washington. Como disse Edmar Bacha no GLOBO, provavelmente porque foi interpretado como exemplo de dogma neoliberal, algo que certamente não fazia jus às ideias dele. Como a maioria das pessoas não sabe do que se trata o Consenso e em defesa do legado de John, apresento aqui um breve resumo, extraído de escritos dele próprio. São ideias que devem ser lidas levando-se em conta que surgiram em um período de crises cambiais e inflacionárias.

As principais características são: (1) disciplina fiscal, (2) foco do gasto público em saúde, educação e infraestrutura, (3) reforma tributária com base ampla e alíquotas moderadas, (4) liberalização do mercado de câmbio, (5) taxa de câmbio competitiva, (6) abertura comercial, (7) abertura ao investimento estrangeiro (mas sem abertura plena da conta de capital), (8) privatização, (9) desregulamentação das barreiras à abertura e fechamento de empresas (concorrência) e (10) respeito ao direito de propriedade.

Esta lista tem sido muito criticada, mas, a meu ver, é bastante razoável. A linha geral é liberal, exceto no que tange à política cambial, área onde John teve mais influência em sua carreira. Neste quesito, sua recomendação foi sempre de cautela quanto à perda de competitividade da taxa de câmbio, na linha do item 7 acima. A lista nunca pretendeu representar uma estratégia completa de desenvolvimento econômico. Suas propostas afetam inúmeras áreas da economia e inevitavelmente incomodam a grupos de interesse poderosos, o que explica as dificuldades que sempre enfrenta. Como diria Rogério Werneck, outro mestre da PUC-Rio, uma lista assim equivale a um edital de convocação de inimigos…

Mas, se tivesse sido seguida na América Latina, me arrisco a dizer que as economias da região estariam bem melhores do que estão. Num primeiro momento, o que se viu foi algum progresso com relação à década perdida de 1980. Nos anos que se seguiram, o desempenho dos países da região foi muito heterogêneo e, na média, medíocre. Os países que mais aderiram ao Consenso, como o Chile e a Colômbia, foram os que melhor desempenho tiveram. E os que menos aderiram, como a Venezuela e a Argentina, o pior.

Claro que faria muito sentido incluir outras prioridades ao Consenso original. Para o Brasil, John provavelmente consideraria uma reforma do Estado, o combate às desigualdades, o combate ao crime organizado, o reflorestamento e a preservação da biodiversidade, a redução das incertezas jurídicas e regulatórias e uma reforma política (no mínimo, a manutenção do que já está encomendado). Seria uma evolução natural do Consenso, em linha com o que John defendeu ao longo de sua produtiva vida. Ele deixa muitos amigos e admiradores no Brasil.

Arminio Fraga é fundador da Gávea Investimentos, do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde e do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social. Foi presidente do Banco Central