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Fernando Canzian
São Paulo
O ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, 62, diz que não será “perseguir um fantasma ou uma coisa impossível” o Brasil voltar a fazer superávits primários e assim reerguer o chamado tripé macroeconômico.
Franco foi um dos personagens centrais, em 1998, do episódio que depois levaria o governo Fernando Henrique Cardoso a desvalorizar o real após a reeleição. Na sua opinião, o governo deveria ter esperado um pouco mais antes de decidir pela desvalorização, no início de 1999.
Após 20 anos do tripé macroeconômico, temos hoje sobretudo uma das pernas mancas: desde 2014 o governo não faz superávit primário. Qual a importância do mecanismo? Há condições de voltarmos a ter as contas em ordem com a reforma da Previdência?
O tripé que conhecemos nessa versão mais popular [superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação] é mais restrito do que o tripé que o Plano Real trouxe, que tinha três pontos também: responsabilidade fiscal, abertura comercial e estabilidade da moeda.
Em um primeiro momento, a responsabilidade fiscal não era tão clara como veio a ser o superávit primário. Tampouco a abertura era taxa de câmbio flutuante. Já a estabilidade da moeda eram várias coisas, incluindo políticas cambial e monetária, que depois virou o sistema de meta de inflação.
O tripé em 1999 é o capítulo dois desse drama maior que prevalece, já que o superávit primário é hoje um assunto muito complicado.
Não é só um número, mas todo um conceito de responsabilidade fiscal, que entra na questão da reforma da Previdência, do problema dos estados. É um tema longo e difícil.
O assunto taxa de câmbio flutuante, então, é supercomplicado até de dizermos que tivemos depois que o Armínio [Fraga, ex-presidente do Banco Central de 1999 a 2002] saiu.
Logo antes da crise de 2008, no período em que o Lula já estava na fase boa, acumulou-se um absurdo de reservas, algo como US$ 150 bilhões. Não dá para dizer que temos um regime de flutuação quando se compra um montante desses em dólares. Após a crise de 2008, temos US$ 200 bilhões de crescimento de reservas.
O que fizemos foi uma espécie de administração da abundância cambial acumulando reservas.
Já a passagem da âncora cambial para metas de inflação é a mais celebrada. Foi sequência natural das coisas. Ocorreu na hora em que tinha de ocorrer mesmo. Esse sim amadureceu e está estabelecido e organizado desde então.
O Brasil parece longe de voltar a fazer superávits sem reformas duras como a da Previdência, não?
Esse é o grande problema. E não dá para dizer que estamos perseguindo um fantasma ou uma coisa impossível, porque tivemos superávits primários superiores a 3,5% por mais de dez anos. E não foi uma década de austeridades e privações. Longe disso.
Mas a dívida líquida foi reduzida à metade, para 30% do PIB, e foi ótimo. Se tivéssemos continuado, teria sido maravilhoso. Mas não. Refizemos esse caminho de endividamento de uma forma lamentável.
Como vivemos mais de uma década assim, não deve ser tão difícil de voltar. Estávamos assim em 2010, e o Brasil de hoje é mais ou menos o mesmo.
As finanças pioraram por causa da Previdência, mas houve também aumento da carga tributária e aumento do PIB. Não é só a Previdência que explica a gente ter estragado tanto as contas públicas.
O que me faz crer que essa piora fiscal é reversível.
Em 1998, houve a controvérsia sobre se o governo deveria ou não ter promovido uma desvalorização do real, mas se tratava do ano eleitoral em que FHC acabaria reeleito.
Ele escreve em seu “Diários da Presidência” que, antes mesmo do primeiro turno, fez uma “reflexão ultrassecreta”. Nela, dizia: “Há um ponto que os críticos não pegaram, só um ou outro economista percebeu. Tudo isso que digo —déficit fiscal e tudo mais— é um pouco meia verdade. Não que não exista déficit a ser combatido, mas a questão que nunca foi posta [pelo governo] é a cambial. É a questão central”.
O fato é que o real acabou sendo desvalorizado só depois da vitória de FHC. Como avalia aquele episódio?
O que acontecia desde 1994 é que vivíamos em um regime de abundância cambial e minha vida era comprar câmbio para evitar que o dólar caísse mais. Eu era criticado por manter o câmbio sobrevalorizado quando todo dia comprava câmbio para ter uma subidinha na faixa de uns 8% ao ano. Então, não dá para discutir sobre regime cambial até chegarmos à crise da Rússia, ali pelo meio do ano [de 1998], quando dissemos ao presidente: “Mudou o vento. Esta crise tem uma profundidade diferente. Não significa que a gente tenha que mudar as coisas amanhã ou depois de amanhã, mas vamos nos preparar para uma outra coisa”.
Deu um certo medo porque tinha uma eleição se aproximando. E, se era para caminhar para a flutuação do câmbio, para fazer direito nesse ambiente de crise, tinha de subir os juros.
O que se apresentou ali foi uma escolha entre fazer um ajuste cambial com política monetária mais apertada [com juros mais altos] ou fechar um acordo com o FMI. E o presidente escolheu fazer o acordo com o FMI. Nesse acordo não havia nem a necessidade nem a previsão de fazer a mudança no regime [de câmbio]. Aquilo resolvia o problema pelo menos até onde a vista alcançava e a gente podia, com calma, fazer a mudança na direção da flutuação que iria trazer alguma desvalorização, que a gente não sabia que tamanho poderia ter.
O que eu queria fazer era passar a transição de governo e sobretudo a crise que o Itamar [Franco, então governador de Minas Gerais] vinha criando com os estados, que era a moratória de Minas (decretada por Itamar no início de 1999). E ter resolvido as questões de pressões cambiais, de mercado, para ir para a flutuação [do câmbio] em um momento como no Carnaval —momento de calmaria.
Mas houve a decisão de antecipar o cronograma. Francisco Lopes virou o presidente [do BC] com a proposta da banda diagonal endógena e o presidente [FHC] fez a escolha dele. Ai não é mais comigo.
Olhando retrospectivamente, teria feito algo diferente?
Gostaria de ter levado o que eu vinha fazendo até o Carnaval e ter flutuado [o câmbio] juntamente com uma nova política monetária com metas de inflação mais restritivas. Deixaria flutuar e ficaria acompanhando, já que o mercado me respeitava como operador e tínhamos reservas durante todo esse período.
Mas ali houve um movimento meio político de afastar a ala ortodoxa das decisões da política econômica. Isso era contra mim e contra o Pedro [Malan, então ministro da Fazenda].
Só que o processo saiu do controle. A fórmula do Chico [Lopes] não funcionou, e ela fracassou em um período de tempo muito curto, mudando todo o plano.
Como vê as perspectivas do novo governo e de 2019?
Está com uma cara muito boa e o mercado todo está otimista porque acha que existe uma mudança paradigmática de política econômica que ninguém esperava que fosse tão longe.
Imaginava-se uma Presidência Bolsonaro sem maiores expectativas sobre o que ele viria a fazer na economia. Mas não que o Paulo Guedes viesse a ter tanto poder e influência em nomear as pessoas e em fazer o governo se comprometer com agendas organizadoras e reformistas na extensão que está se verificando.
Tudo está acontecendo ainda. Mas é uma surpresa superpositiva que as pautas econômicas e modernizadoras estejam ganhando uma importância que ninguém esperava.
A cada nova fronteira que o Paulo consegue romper, o mercado fica mais alegre e o mundo empresarial está mais animado. Tudo está com um jeitão muito melhor do que qualquer pessoa poderia imaginar antes da eleição.
Vamos ver as notícias. O ano está começando e suponho que a proposta da Previdência, que é o item número um de todo esse edifício, só apareça mais para perto da posse do novo Congresso. Conforme a reação, acho que a gente sobe mais um patamar nas expectativas. Ou não.
Gustavo Franco, 62
Bacharel (1979) e mestre (1982) em economia pela PUC do Rio e doutor pela Universidade Harvard (1986); foi presidente do Banco Central (1997-1999) e participou da formulação do Plano Real; e estrategista-chefe da Rio Bravo
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