Ameaças à democracia têm ‘efeito paralisante’ sobre a economia


O economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, diz que as ameaças à democracia no governo Bolsonaro têm um efeito “paralisante” sobre a atividade econômica. Em entrevista que me concedeu na Globonews, ele classificou como ruim a política econômica do atual governo e disse que o próximo presidente eleito irá encontrar uma economia “machucada”, com baixo crescimento, juros e inflação elevados, e com a necessidade de ajuste nas contas públicas. Além disso, Armínio diz que é urgente para o país combater as desigualdades, com aumentos de gastos sociais e em saúde, e aumento de impostos para os mais ricos. 

Veja abaixo a íntegra da entrevista:

– Você é um economista público, porque você, além de todo o seu conhecimento sobre economia, participa e não se nega a participar desse debate das escolhas do país. O ex-banqueiro Cândido Bracher, que foi presidente do Itaú Unibanco, disse que a democracia será testada nesta eleição. Você acha isso? 

Acho que sim, eu concordo com o Cândido, e iria além: já está sendo testada há bastante tempo. Tem sido um período difícil, muito complicado, a toda hora nós estávamos aqui para ter esse tipo de conversa. As pessoas não se dão conta do quão paralisante é esse tipo de ameaça. Isso altera o comportamento das pessoas, das empresas, e não vem de hoje. Essa que é a verdade. Os questionamentos, as ameaças estão aí já há mais de três anos. 

– Nas suas últimas entrevistas e artigos você tem incorporado de forma muito forte a questão ambiental e climática. Queria que falasse sobre isso. Para um projeto de Brasil integrado ao mundo, aceito na OCDE, a gente pode fazer uma condução de política econômica que não leve em consideração as questões ambiental e climática? 

De jeito nenhum, e o assunto é fantástico. Representa enorme oportunidade para o Brasil, mas no momento é o oposto. Essa área virou um problema para nós muito grave. E isso infelizmente vai ter que ser repensado. Mas vejo alguns elementos. Primeiro, a coisa mais global, a questão da mudança climática é muito séria. Inclusive no que diz respeito à Amazônia, a situação é muito precária. A capacidade de regeneração da floresta vem caindo de maneira assustadora e o que tem ali embaixo é areia. Há um problema global. Há também a questão da biodiversidade, o que é crucial, o Brasil é um reservatório de biodiversidade extraordinário. No caso do nosso futuro, acho que é importante ir além. Estamos falando de qualidade de vida em última instância. Isso vai além da questão colossal da Amazônia, bem além, e tem a ver com a nossa autoimagem, o Brasil cabe no seu espaço e poderia caminhar na direção de ser uma Costa Rica, eventualmente uma Nova Zelândia, é a nossa cara, e nós incrivelmente estamos indo na direção contrária. Espero que isso mude. Isso para mim é uma opção fantástica para o Brasil. 

– Você falou da Costa Rica, que é exemplo de preservação ambiental. Você vem com esse olhar do mercado financeiro, que está com isso na ordem do dia, inclusive com pressões de fundos internacionais, que tem diminuído negócios com quaisquer países que destroem o meio ambiente. Você foi para a Amazônia ver in loco algumas questões. Como essa visão chega até você? 

Para quem não conhece bem a Amazônia, que é o meu caso, fazer essa visita foi parte do projeto Amazônia 2030, muito bacana, que está sendo construído, a gente sai de lá com a sensação de que tudo é gigante. As oportunidades são gigantes e os problemas, também. Quando você está no Tapajós, e ouve dizer que tem muito mercúrio em função da mineração que ocorre lá mais para cima do rio, é uma loucura. Você vê o quanto aqui é maravilhoso, visita as comunidades, entende melhor o que é a vida daquelas pessoas, muitos não têm telefone, não têm internet. O médico passa lá de dois em dois meses. Faz a gente pensar. Eu fiquei hospedado em Alter do Chão, um pequeno paraíso, mas a gente já nota a degradação inclusive de governança. Um quadro assustador, mas ainda acho que tem reversão. Está no nosso alcance ainda. Mas não dura muito tempo não. 

– E do mercado financeiro não haverá trégua para o Brasil mudar o seu comportamento?

Não vai e não é só o mercado financeiro. Grandes empresas do mundo estão tomando decisões que há 10, 15, 20 anos atrás não tomariam, e voluntariamente. Você falou de política pública, uma preocupação minha, há também o aspecto de política pública que vai ter que atuar em paralelo ao que vem sendo uma conscientização dos empresários, em geral, com participação fundamental do terceiro setor, da mídia em geral. Tenho alguma esperança que isso possa se resolver, a despeito das tendências que ainda não são boas. 

– Uma questão de política pública que você sempre se preocupou é a educação. Você sempre apontou esse como o nosso principal problema. O que aconteceu nos últimos dois anos com a pandemia foi o agravamento da distância entre ricos e pobres no Brasil. Houve um desaprendizado dos pobres. Como enfrentar um problema que ficou mais urgente?

Tem que ser encarado de frente, é um problemaço, eu não sou especialista no ramo, mas entendo que algum processo de recuperação dos alunos que não tinham condição de estudar e fazer educação remota, que são a maioria, algum processo especial vai ter que acontecer, esse debate está acontecendo e espero que isso chegue a um solução. Tendo a ser uma pessoa otimista, embora nos últimos tempos eu me ouça falar e ache meio estranho, mas ainda dá para recuperar bastante dessa área, mas não vai acontecer espontaneamente.

– Você é um economista liberal, e apoiou recentemente um candidato de esquerda, o Freixo, como foi o seu processo para apoiá-lo?

Eu não conheço o Marcelo há muito tempo, mas o meu primeiro contato com ele foi interessante, você colocou a questão do Brasil verde, e eu escrevi um artigo há uns três anos, na “Folha”, e ele me procurou para conversar. Foi muito interessante, aquele artigo me colocou em contato com muita gente. E dali para frente tivemos um ou outro contato. Eu apoiei um candidato aqui na Baixada e isso gerou muito confusão no Psol. E a partir daí passei a acompanhar um pouco mais de perto o trabalho dele, muito corajoso, li o livro a “República das Milícias”. E quando ele sai do Psol, acho que é um partido que nunca pensou em chegar ao poder, sinceramente, já li os programas do partido, é bem radical, mas quando ele sai e busca construir uma alternativa mais ao centro, sempre, claro, mantendo o foco nas questões que são enormes no Brasil, como a desigualdade, me pareceu uma boa alternativa. Conversei com ele, ele conversou com muita gente que conheço e que não tem perfil muito ideológico, acho que é o meu caso. Eu tenho preocupação enorme com desigualdade, acho que qualquer um que tenha um coração e dê uma olhada por aí vai ter que ter essa preocupação, eu tenho que ter hoje em dia uma visão um pouco heterodoxa de que no ponto em que o Brasil está não existe conflito entre crescer e distribuir, entre crescer e criar oportunidades e mobilidade social, acho que colocando desse jeito fica claro por quê. Achei que o Freixo estava caminhando nessa direção, ele tem experiência na área de segurança, está se cercando bem.

– Isso que você falou que está convencido que não tem esse conflito entre crescer e atender as demandas sociais e se desenvolver. Porque sempre foi colocado de forma errada. Fale mais sobre isso.

Teoricamente em um país em que tudo está funcionando perfeitamente bem, quase um teorema da microeconomia, em que se você está numa certa fronteira e quiser desviar de uma locação de produtividade máxima vai ter um custo. Se quiser aumentar a carga tributária, tem um custo. Isso normalmente não é levado em consideração nos debates, mas isso existe e é relevante. E em função disso o instinto da maioria dos economistas, como eu, com uma formação razoavelmente mais rigorosa, é ver que tem conflito. Mas no nosso caso a desigualdade é tão extrema, as distorções são tão grandes, as barbaridades são tantas, que eu acho que o Brasil, abordando essa questão, vai ter ganhos não apenas econômicos, como políticos. E quando junta os dois, o Brasil vai deixar de ser presa fácil para o populismo, para as saídas fáceis e milagrosas. É um conjunto. 

– Mas vai ter que gastar mais, e aí? 

Não estou convencido disso. O Brasil hoje tem um gasto público que chega a 35% do PIB. Temos um problema de priorização. 

– Mudar o gasto? Em vez de gastar com uma coisa, gastar com outra?

Sim. Tem uma discussão importante sobre o teto, ele foi medida emergencial, as reformas que precisam ser feitas ainda não foram feitas, é um tema bastante delicado. Mas não é possível se imaginar o gasto público crescendo para sempre. 

– Como avalia a política econômica do governo Bolsonaro?

Avalio mal. É preciso reconhecer que com uma pandemia deste tamanho o desafio não é fácil, mas as respostas já nessa área começaram a sinalizar uma visão bastante complicada. A ideia que foi vendida de que seria um modelo liberal meio escola de Chicago, em função da formação do ministro da Economia, isso nunca aconteceu. As propostas não vieram redondas, o próprio presidente vem bloqueando uma série de iniciativas, então no geral não foi bem. Vejo com bons olhos o trabalho do Banco Central. Tem agenda bastante rica e que vem sendo bem-sucedida. A parte visível é o pix, mas agora mesmo aprovaram uma reforma que estava em discussão há 30 anos, das regras cambiais, foi algo importante. O Banco Central vem fazendo o seu trabalho. 

– Você foi diretor da área externa do Banco Central. Foram processos que passaram de governo para governo e chegou nessa agenda de modernização. Mas os juros estão muito altos, você acha que está correta essa taxa?

Ela veio de um nível historicamente muito baixo, com juros reais negativos, o brasileiro estava acostumado a ter uma taxa de retorno em cima da sua poupança muito alta, talvez a mais alta do mundo, e de repente passou um período com juro real negativo. A inflação nesse meio tempo, que já vinha mostrando o seu jeito, passa hoje por pressões muito claras, ligadas à guerra na Ucrânia, o impacto que isso tem tido nos preços das commodities, isso fez com que o Banco Central tivesse que mudar de mão, ele mudou, e agora estamos, isso inclusive com impacto na taxa de câmbio, porque com juros a 2% estava saindo muito dinheiro daqui. As pessoas estavam se perguntando: eu estou ganhando 2% aqui e lá fora o juro é zero, a diferença é pequena, vou sair. Agora os juros caminham para 13% ou mais, e o dinheiro mais de curto prazo volta. É um quadro que traz outras preocupações. 

– O dólar se mantém nesse patamar ou pode ter uma reversão?

Acho que pode ter reversão. O que aconteceu com o dólar lá atrás é que tem uma corrida entre a conta de capital e a conta corrente, que é balança comercial mais serviços, essas coisas. E a conta de capital estava ganhando, porque os juros estavam super baixos, tinha muita incerteza, a confusão política, institucional, sobre tudo, e aí o dinheiro sai. Os horizontes ficam muito curtos, isso atrapalha tudo. E de repente a situação vira, e agora com esse juro real alto, e está alto outra vez, inclusive com riscos da própria inflação, que é um risco que nos assusta, pela nossa história, começa a voltar a preocupação com o lado fiscal. Nós estamos com o cobertor curto, essa que é a verdade, bem curtinho. Quem ganhar essas eleições vai ter que administrar uma economia bem machucada. E não vai ser suficiente uma resposta quantitativa, como fazer aperto fiscal. Mas como isso vai ser feito? E o resto? E a qualidade da nossa democracia? E a segurança, e o Estado de Direito, como que ficam? A resposta agora é muito maior. E isso me dá bastante medo. Mesmo depois das eleições, independentemente de quem ganhar, haverá um quadro precário.

– Para consolidação da democracia?

Também, mas para a condução da economia, em particular.

– Queria falar do monstro que nos assusta que é a inflação. Você fez parte do processo que venceu a hiperinflação. A inflação no mundo está alta, no EUA cresceu muito, mas a inflação brasileira tem componentes nacionais. Queria que falasse da inflação externa e interna.

A externa pegou uma economia superaquecida, eles erraram a mão na política fiscal, desde o Trump, nos EUA, estava uma economia quente e em cima disso vem o choque de oferta. E aí fica um quadro bem complicado, que é o que a gente tem lá. No nosso caso teve menos esse componente de demanda, tem um componente de oferta pós, um componente que se materializou em cima do câmbio, porque ele estava lá na lua, e isso acalmou um pouco temporariamente, mas nos deixou com uma inflação que caminha para os 6% ou 7% este ano. 

– Você quer dizer que todas as instabilidades institucionais, com o presidente ameaçando de golpe, aquelas coisas, elevaram muito o dólar, além dos juros baixos? E isso já produziu inflação alta, antes do choque da guerra? E aí eleva ainda mais?

Exato. A resposta bem convencional é acomodar um pouco, ou seja, permitir alguma inflação em função do choque de oferta, mas cuidar das expectativas para que não haja uma perda de controle maior. O que no nosso caso chama de novo a discussão da questão fiscal. A dívida pública caiu porque o juro real caiu muito, caiu também porque houve aumento temporário, provavelmente, das receitas, pelas commodities, mas o problema não está resolvido e é um problema muito grave, e alguns aspectos que se tem hoje não são sustentáveis. O investimento público está perto de zero, o federal. Não dá, mesmo o liberal sabe que tem coisas que só o governo faz. É um quadro difícil. Hoje há uma certa tranquilidade, mas acho que ela é superficial, temporária. 

– Para o ano que vem, um novo governo terá que aumentar o investimento se quiser que o país cresça?

Olhando mais a longo prazo, para onde vai o gasto do governo? É muito difícil imaginar que o governo não gaste mais na área social, com questões ligadas à desigualdade, alguns aspectos são bem visíveis hoje, infelizmente em função da pandemia. O SUS tem espaço para ganhar eficiência? Claro que tem. Mas ele é bem subfinanciado, precisa mexer. Tem alguns aspectos ligados a bens públicos de infraestrutura, algum investimento público sempre se faz necessário, tem questões regionais e assim por diante. Tem espaço, pesquisa básica também sempre fica largada, algo no meio ambiente. Zero de investimento público não dá. 

– Apesar de eu entender a parte que tem realocar o gasto público, você apoiaria aumento de imposto para área social?

Apoiaria algum aumento em áreas que na verdade são subsídios, porque tem a ver com Imposto de Renda. O Brasil tem um sistema de IR que permite com que pessoas que tem renda muito alta paguem pouquíssimo imposto. Isso é um absurdo. Existe espaço para economizar e redirecionar para outras áreas na previdência, porque a reforma foi razoável, mas incompleta, e na folha de pagamentos. E o Brasil, quando se soma folha do setor público e previdência, está no nível mais alto do planeta. Ali tem um espaço de economia para redirecionar o gasto e o aumento de carga viria da eliminação desses subsídios, gastos tributários, na verdade