Casa das Garças

Arminio vê com preocupação situação das contas públicas

Data: 

08/06/2020

Autor: 

Arminio Fraga

Veículo: 

Valor Econômico

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Ex-presidente do BC alerta para situação das contas públicas e para “tensão política crescente”

Por Claudia Safatle — De Brasília 

Arminio Fraga, sócio-fundador do Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central, está muito preocupado com a situação das contas públicas, contabilizados os gastos com a pandemia. Segundo ele, as contas não fecham e as pressões pelo aumento de gastos são crescentes. “O governo não pode se acomodar achando que o Brasil é um Japão ou os Estados Unidos, que podem sair gastando sem grandes consequências”, disse. Em entrevista ao Valor o ex-presidente do BC fala da combinação de três crises: a sanitária, a econômica e a política. 

Ele também não esconde a inquietação com o risco de solvência da dívida pública, que deve encerrar o ano na casa dos 90% a 100% do PIB. Arminio traça um roteiro da insolvência. Ela começa, explica, com o encurtamento dos prazos dos títulos e, portanto, do prazo médio da dívida, diz. Se nesse ínterim um ajuste em direção ao equilíbrio fiscal não for feito de forma convincente, a dívida vira uma quase moeda, com prazos muito curtos de vencimento e em valor superior às reservas cambiais. 

Nessa etapa, prossegue, o risco de uma fuga para outros ativos ou moedas, aumenta. A pressão altista nas taxas de juros põe em risco a solvência do Estado, deixando apenas duas opções, segundo ele, “intragáveis”: uma superinflação ou um calote (nos detentores dos papéis), conclui. Armínio estava à frente do Banco Central em 2002 quando viveu uma situação parecida. 

A seguir, os principais trechos da entrevista: 

Valor: O ambiente político está deteriorado e a economia, bem frágil. Não é uma combinação perigosa? 

Arminio Fraga: Essas coisas tipicamente andam juntas. O caso atual é mais complicado que o usual, pois a crise é também sanitária. Uma fragilidade reforça a outra, com certeza. Uma resposta eficaz terá que abranger as três áreas. Ocorre que, mais do que nunca, o papel da liderança do Executivo é crucial, e tem deixado a desejar, tal qual se viu na famosa reunião de 22 abril. E isso cria muita tensão. 

Valor: Os danos são maiores na economia real e na expectativa de investimentos, não? 

Arminio: Quando se fala em investimento, com frequência se pensa em investimento estrangeiro. E se esquece o principal, que é o que está acontecendo aqui dentro. O investimento no Brasil vem pífio há bastante tempo e, com essa crise, a tendência é que caia mais ainda. E o investimento público, que sempre foi uma fração do total – mas sempre foi relevante, chegou a 5% PIB – hoje é menor do que 0,5% do PIB, indo para zero. Esse é um sinal muito importante. Tem a ver com confiança a longo prazo. Uma empresa que vai decidir investir em qualquer setor da infraestrutura brasileira vai pensar duas vezes se não tiver confiança na política, na economia e nas regras do jogo. 

Valor: Estamos vivendo uma depressão na economia? 

Arminio: Em termos de tamanho e de profundidade da recessão, sim. Eu diria que isso é uma depressão, embora não seja comparável à Grande Depressão da década de 1930. 

Valor: Essa combinação de crises não gera um quadro paralisante? 

Arminio: Sim. E agora chega a pandemia e cria muita insegurança nas pessoas, também, que estão perdendo seus empregos. Muita gente do setor informal tem perdas catastróficas, quem está no setor formal tem medo de perder o emprego, então gasta menos. A saída vai exigir, também, respostas em todas as frentes. E ação coordenada como se tem feito no mundo inteiro, que é praticar o isolamento social, procurando alertar as pessoas com relação aos riscos. O Brasil é um ponto fora da curva. 

Valor: Exatamente como? 

Arminio: Se você for olhar mundo afora, na maioria dos casos e inclusive os que chamaram mais atenção na Europa, como Itália e Espanha, o que se viu foi um período de crescimento acelerado de casos, mas que em cerca de cinco semanas chegaram a um pico e começaram a cair. A partir do momento em que a queda no número de casos e mortes atinge certo nível e a taxa de reprodução cai abaixo de um, começaram os passos na direção da abertura. Levando-se em conta, o que parece muito claro hoje, que os governos só vão até um certo ponto com suas ações. 

Valor: De isolamento social? 

Arminio: O governo não pode obrigar uma pessoa a se expor. As mais bem informadas só se expõem quando não têm opção. Quem pode se isola. Não é à toa que as estatísticas das áreas mais prósperas do país mostram que nesses ambientes houve isolamento, porque as pessoas podem. Mas mesmo os que não podem, com um pouco de ajuda do Estado, e os programas estão atingindo muita gente, poderiam se proteger, sobretudo se estivessem um pouco mais informadas. Mas o que nós temos é diferente: são várias semanas seguidas de crescimento no número de casos sem, ainda, um sinal claro de reversão, mas já com muita pressão para… 

Valor: Para reabrir a economia? 

Arminio: Isso, para reabrir. São decisões questionadas por especialistas, e vamos torcer para dar certo. Mesmo nos países mais avançados, mais ricos, como não houve nem de perto uma imunização geral, a tal da “imunização do rebanho”, há risco de recorrência, de segunda e terceira onda. Esse assunto vai seguir vivo até aparecer uma vacina. Esse parece ser o consenso de quem é do ramo. 

Valor: Enquanto não mudar a curva da doença ficamos em estado de suspense? 

Arminio: É isso. Mas, no nosso caso, as outras crises, a econômica e a política, têm um papel grande. Em outros países a situação é diferente. Há, com frequência, uma ação de união nacional pela saúde, quase que uma suspensão de briguinhas políticas de épocas normais, para que haja um esforço concertado para superar a parte sanitária. Aqui, o problema vem junto de uma situação econômica que já era ruim, de um colapso fiscal em 2014 que não foi resolvido. 

Valor: Não foi nem atenuado? 

Arminio: A recuperação que houve a partir de 2016, 2017 foi modesta. Todas as expectativas de uma opção liberal na economia, onde tudo melhoraria, foram frustradas. Mesmo antes da covid-19 a economia já vinha devagar. É complicado, e agora temos um duelo… 

Valor: Que duelo? 

Arminio: De narrativas. Para mim está claro que a narrativa do governo é de pôr a culpa do problema econômico no isolamento, e não na doença. E também de dizer que defende a democracia e a liberdade armando a população. 

Valor: Com um discurso de extrema-direita? 

Arminio: Sim, com um discurso extremado e bastante agressivo. Quando o que temos é uma economia cheia de problemas, que não melhorou nos últimos tempos… 

Valor: Gostaria de aprofundar um pouco esse assunto, pois no governo o discurso é que caminhávamos para uma melhora boa e fomos abatidos em pleno voo. O que o sr. diz é: “Não, você não estava nesse bom caminho.” 

Arminio: Isso é o que eu acho, e a maioria dos observadores parece concordar. Normalmente, a recuperação depois de uma crise como a de 2014 a 2016 deveria ser muito forte, porque foi um buraco muito fundo, é da natureza do ciclo que a capacidade ociosa e o desemprego ofereçam oportunidades para um período de crescimento acima do que seria a tendência. Mas não ocorreu. 

Valor: Por quê? 

Arminio: Houve a aprovação de uma reforma da Previdência, que já vinha sendo discutida há décadas, foi bom. Algumas reformas já tinham sido feitas no governo Temer, com destaque para a trabalhista e a introdução do teto do gasto, mas não o suficiente para criar clima de confiança diante dos acontecimentos que se seguiram. 

Valor: Aí começa um novo governo. 

Arminio: E começa a ficar claro, também, que há uma incompatibilidade entre o presidente e o seu ministro da Economia [Paulo Guedes]. O próprio ministro mostra também dificuldade em executar seus planos. Outras áreas de atuação do governo atual ganharam destaque negativo: política externa, educação, meio ambiente. São áreas extremamente visíveis, que têm impacto interno e externo… 

Valor: O receituário que o ministro da Economia apresentou estava errado? Ou foi subexecutado? 

Arminio: O desenho inicial parecia ser liberal na economia e pouco preocupado com o tema da desigualdade. Este último eu já via como falha grave. Acredito com grande convicção que esses assuntos andam juntos, sobretudo no Brasil. Penso aqui em oportunidade, mobilidade social, em temas que mostram que a redução da desigualdade é o caminho para o país retomar o crescimento. Logo surgiram também problemas de natureza política. 

Valor: Por exemplo? 

Arminio: O próprio presidente foi contra a reforma da Previdência. Há, no Congresso, uma PEC emergencial, que é uma tentativa de recauchutar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que foi para o espaço sideral. Mas não se vê empenho político do governo para aprovar. 

Valor: Após a da Previdência, houve pouco empenho em aprovar outras reformas? 

Arminio: Em duas grandes áreas, acho que realmente houve muita dificuldade de colocar de pé propostas, sobretudo na tributária, em que o governo se mostrou obcecado pela CPMF, e o presidente era contra. E do lado da reforma do Estado… 

Valor: O governo estava preparando uma reforma administrativa que não foi apresentada… 

Arminio: Pois é. Perdeu-se um ano e meio que poderia ter sido dedicado a construir e aprovar essas duas reformas. Teriam feito a diferença. E algo mais no lado fiscal, pois o país já segue com déficit primário há sete anos. 

Valor: Com o aumento do gasto no combate à covid-19, o país poderá ter mais cinco a dez anos deficitários? 

Arminio: Pelo visto, mas espero que não. A conta não fecha. O governo não pode se acomodar achando que o Brasil é um Japão ou os Estados Unidos, que podem sair gastando sem grandes consequências. Nossa história é de inflação alta, de confisco, de moratórias… infelizmente. Com o surgimento da pandemia foi preciso gastar? Sim. Quanto? Como? Por quanto tempo? Fácil dizer agora, mas a coisa foi sendo feita, sem planejamento… Claro, era e é uma situação bem complicada. Mas, agora, de repente surgem nuvens no horizonte mais carregadas do que se viu em muito tempo. 

Valor: De pressão pelo gasto? 

Arminio: Sim, carregadas de gastos, ou seja, nuvens que apontam para tempestades. Já dá para dizer que os números projetados são extremamente preocupantes. 

Valor: Digamos que se tenha déficit primário no final deste ano de R$ 1 trilhão. A expectativa antes da pandemia era de déficit de pouco mais de R$ 120 bilhões. Ou seja, o problema fiscal foi multiplicado por oito? 

Arminio: Isso. Exato. 

Valor: Isso significa que a agenda liberal não deu certo e é hora de gastar? Ou as coisas estão dando erradas porque os ciclos não se completam? É tudo feito na base da meia-sola? 

Arminio: Eu não poria a culpa em uma agenda que não foi posta em prática. O problema é que de meia-sola em meia-sola o buraco vai aumentando e, agora, nós estamos batendo na porta de uma dívida de 100% do PIB e uma máquina do crescimento absolutamente avariada. 

Valor: Como você vê o risco de solvência da dívida? 

Arminio: Eu vejo com muita preocupação. Em tese daria para cuidar das pessoas, através da assistência social e aos desempregados. Os programas seriam limitados, mas suficientes para as pessoas terem um mínimo de conforto, não passarem fome. Mas o acúmulo de dívida preocupa. 

Valor: E do lado das empresas? 

Arminio: O assunto é um pouquinho mais complicado. 

Valor: Por quê? 

Arminio: Com um bom sistema de recuperação judicial e de falências, não haveria muita razão para o governo entrar. Então, qualquer ação além do auxílio direto às pessoas deveria acontecer ou porque a falência foi decorrência de uma decisão do governo, ou por questões sociais. Por exemplo, as pequenas e médias empresas empregam muita gente, são muito vulneráveis, aí o mundo inteiro tem apelado pra modelos tipicamente de crédito subsidiado ou até de doação mesmo. Mas são questões que precisam ser discutidas com muita transparência, dentro de um orçamento para gastos emergenciais. 

Valor: E para as grandes empresas? 

Arminio: Para as empresas maiores a receita clássica seria recuperação judicial e, em alguns casos, falência. E os mecanismos de falência e recuperação são desenhados para minimizar as perdas econômicas. Vale também algum critério para apoios orçamentários em casos especiais. Exemplo: setores impedidos de funcionar. 

Valor: A lei de falência abrigaria esses movimentos? 

Arminio: Em tese, sim. Mas essa crise não é uma crise típica; não é uma recessão, onde o PIB cai 1%. É uma recessão muito mais profunda, e certos setores são atingidos de maneira muito mais violenta. Então aí é que entra a questão de solidariedade com dinheiro público. Cabe fazer e quanto custa, como é que vai ser desenhado. Isso é o que está acontecendo agora, no mundo inteiro. Essa é uma questão que acaba sendo de natureza política e distributiva também. 

Valor: O auxílio emergencial deveria se perenizar em um valor menor do que os R$ 600? 

Arminio: Sou muito favorável a se repensar todo o desenho da assistência social, mas tem que ser feito um trabalho minucioso, fazendo conta. Caberia refletir sobre assistência social, Previdência, questões trabalhistas, tributárias e incluiria também o SUS e seu financiamento. Esses cinco grandes blocos, a meu ver, estão maduros para um grande repensar. Levando-se em conta que o Estado está quebradinho. 

Valor: Como resolver isso, então? 

Arminio: Não vai ser possível fazer tudo só com a maquininha de somar. Tenho defendido que o grande espaço de fontes para gastos eficazes, do ponto de vista da desigualdade e da produtividade, está na Previdência e no funcionalismo. E, além disso, tem muitos subsídios que são regressivos e deveriam ser eliminados. 

Valor: Qual o ajuste necessário? 

Arminio: Estou supondo que é possível, ao longo de cinco a dez anos, economizar 7 pontos percentuais do PIB nos gastos com funcionalismo e Previdência. Já se economizou 1 ponto percentual por ano na reforma da Previdência, faltam 6 pontos. É ambicioso, mas factível. E o mundo dos subsídios e impostos está cheio de barbaridades que oferecem espaço para redirecionamento do gasto. Estimo mais 3 pontos do PIB aqui. 

Valor: O sr. acha que a elite é sensível a questões distributivas para não se opor a isso? 

Arminio: Pior. Ela sempre foi chapa branca e sempre jogou esse jogo simbiótico com o Estado. Há uma relação carnal com o Estado. Aí você vai dizer “De quem que é a culpa?”. Sei lá. Daqui a pouco vão dizer que é de Pedro Álvares Cabral. 

Valor: Mas quando se trata de obter benefícios, regalias, as pressões são muitas… 

Arminio: São sim. Acontece o seguinte: se continuarem insistindo do jeito que está agora, em breve podemos estar diante de uma outra crise gigantesca, certamente pior do que a última. 

Valor: O que acontece se o Estado tiver dificuldades de financiar os gastos se endividando mais? Se ele tiver dificuldades para colocar papéis no mercado? 

Arminio: Num ambiente de incerteza a demanda por papéis longos diminui. O Tesouro seria forçado a encurtar a maturidade dos títulos que coloca. Tanto o próprio Tesouro quanto o BC, este até o fim do ano graças à Emenda Constitucional recente, poderiam reforçar o processo trocando títulos mais longos por curtos. O prazo médio da dívida iria se encurtando. Dessa forma se ganharia tempo para se fazer um ajuste fiscal mais permanente e convincente. As reservas cambiais também oferecem proteção. Sem elas já estaríamos em crise. 

Valor: E se o ajuste não for feito? 

Arminio: Alguns acreditam que controles de câmbio dariam conta do recado, mas bem sabemos que sua eficácia dura pouco. No limite, a dívida ficaria muito curta, uma quase-moeda, pois teria liquidez a um valor fixo. Nesse momento a dívida de curto prazo ficaria bem maior do que as reservas cambiais. Portanto, aumentaria o risco de uma fuga para outras moedas ou ativos. A decorrente pressão altista nas taxas de juros poria em questão a solvência do Estado, deixando apenas opções intragáveis: uma inflação muito alta ou um default. 

Valor: Antes de ter que escolher entre uma superinflação ou um calote, daria para indexar a dívida à taxa de câmbio? 

Arminio: Pode indexar ao câmbio, à inflação ou à Selic, mas no limite não haveria saída sem que se encarasse o buraco fiscal. E no fundo há um outro buraco: a escassez de gastos adequados na área social. E note que falo em gastos no plural. E, para eles, as coisas já não vinham muito boas antes da crise do coronavírus. 

Valor: Sim e por quê? 

Arminio: Porque as desigualdades aqui são extremas. Haverá sempre uma enorme demanda por gastos do Estado em áreas como saúde, educação, Previdência e outras. 

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