Bacha defende ‘desengessar’ despesas de forma substancial


Um dos integrantes da equipe que implementou o Plano Real e destaque no debate econômico brasileiro nas últimas décadas, o economista Edmar Bacha vê com preocupação a situação fiscal no país hoje, ao focar receitas, e não despesas. Na sua avaliação, não há solução para a questão fiscal sem “desengessar” despesas “de forma substancial”. Ele defende “volta às origens do Plano Real”, com desvinculação de despesas, citando o Fundo Social de Emergência criado na época e depois transformado na Desvinculação de Receitas da União (DRU). Crítico do PT – desde antes de o partido se opor ao Plano Real -, Bacha destaca “o fogo amigo” enfrentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. 

 

Embora reconheça a alta do investimento no primeiro trimestre como notícia positiva, lembra que a turbulência fiscal traz incerteza aos investidores. No caso do dólar, no entanto, apesar da alta nas últimas semanas, diz que a tendência é que a moeda americana recue diante das atuais condições: balança comercial favorável, incluindo agropecuária, mineração e petróleo. Mas evita qualquer previsão, reforçando sua máxima de que “Papai do Céu não perdoa economista que faz previsão de dólar”. 

 

Bacha condena a falta de articulação do governo tanto com o Banco Central quanto com o Congresso e diz que o Brasil está pronto para crescer. “É o Lula que não deixa. Se o Lula parasse de brigar com o Banco Central, se o Lula se entendesse positivamente com o Centrão, se dispusesse a dividir poder, efetivamente, em vez de se seguir com essa política maluca de emendas parlamentares obrigatórias, se pudesse criar um clima mais ameno na relação entre o Executivo e o Legislativo… o país está pronto para crescer.” 

 

Sobre a situação dos juros, lembrou frase do economista Dionísio Dias Carneiro, de que o Banco Central deveria ser o primeiro dos pessimistas e o último dos otimistas. “O Banco Central é o zelador da moeda”, afirma Bacha, ao elogiar a linha atual adotada pela autoridade monetária, por fazer “o que é necessário diante da desancoragem das expectativas”. 

 

Numa análise de mais longo prazo, diz que o aniversário de 30 anos do Real é número meio mágico, porque as pessoas se deram conta de que a estabilidade veio para ficar. Na próxima terça-feira (25), será lançado o livro “30 anos do Real: crônicas no calor do momento” (História Real), de Gustavo Franco, Pedro Malan e Edmar Bacha, que reúne textos sobre o plano escritos em diferentes momentos de sua história.

 

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

 

Valor: Como vê a situação fiscal? 

 

Edmar Bacha: A situação é muito preocupante. Nós já estamos com nível de emprego muito elevado. A taxa de desemprego já está muito baixa. A economia está, obviamente, chegando perto do seu limite, da sua capacidade. Isso cria necessidade de o governo cuidar das suas contas da maneira mais cuidadosa possível, para evitar aumentar o excesso de demanda sobre os recursos disponíveis. Só que isso não está acontecendo porque o governo tem vontade muito grande de gastar. O Congresso com o Centrão é de uma voracidade só, e a sociedade está reagindo contra a tentativa de se resolver problema aumentando impostos. 

 

Valor: Como deve ser o esforço fiscal?

 

Bacha: Aumentar impostos resolveria problema a curto prazo do excesso de demanda. Mas complicaria ainda mais a médio e longo prazos, porque afetaria disponibilidade de os empresários investirem, que é do que a economia depende para crescer no longo prazo. A questão é [querer] resolver problema pelo lado da receita, e não pelo lado da despesa. De qualquer maneira, seja aumentando alíquotas, seja aumentando arrecadação em si, retira recursos do setor privado, que poderiam ser usados para aumentar investimentos privados. Neste sentido, são contraproducentes do ponto de vista do estímulo para o crescimento econômico.

 

Valor: O Rio Grande do Sul afeta do ponto de vista fiscal?

 

Bacha: O problema da situação fiscal não são gastos temporários em situações excepcionais. Ninguém estava preocupado com fiscal durante a pandemia porque sabia que era questão temporária. E havia assuntos mais urgentes a serem tratados do que aumento da inflação, naquele momento. Este também é caso particular. Precisa reconstruir a infraestrutura do Estado, o que vai exigir aumento de demanda a curto prazo. É preciso atacar esse problema com uma perspectiva de valores e tempo. 

 

Valor: O ajuste fiscal proposto será insuficiente?

 

Bacha: Pelo que tenho lido, o ministro da Fazenda [Fernando Haddad] vai levar ao presidente da República uma proposta de desindexação. Acho que a gente deveria voltar às origens do Plano Real. Porque a primeira coisa que fizemos foi desindexação, para poder cortar 20% do Orçamento em despesas obrigatórias. Foi o chamado Fundo Social de Emergência, que depois virou Desvinculação das Receitas da União [DRU], mas que ao longo do tempo foi diluído. É preciso retomar essa perspectiva de desindexação, de desregulamentação, especialmente a questão de vinculação da Previdência ao salário mínimo, e o fato de educação e saúde agora estarem vinculadas à arrecadação, e não a uma outra alternativa. O problema é esse engessamento. Certamente é difícil visualizar solução para a questão fiscal brasileira sem desengessar as despesas de forma substancial. O caminho ideal seria, paradoxalmente, indexar à inflação prevista, para não trazer de volta inércia inflacionária com a qual tivemos que lidar no Plano Real. 

 

Valor: Qual é o ambiente para a alta do investimento no primeiro trimestre ser sustentada?

 

Bacha: Teremos que ver se o primeiro trimestre foi exceção à regra, porque a trajetória da taxa de investimento era declinante até então. Foi muito bem-vindo ter um trimestre positivo, mas o que significa? Especialmente porque há muita incerteza fiscal, o que cria certa turbulência do ponto de vista dos investidores. E, ademais, as taxas de juros estão muito altas e o ambiente externo está negativo, por causa do excesso de demanda nos Estados Unidos, que força o Fed [Federal Reserve, o banco central americano] a não reduzir juros, como tinha antecipado.

 

Valor: O senhor já disse que “Papai do Céu não perdoa economista que faz projeção de câmbio”. Sem citar estimativa, qual é o cenário?

 

Bacha: Em geral, quando o dólar sobe, a gente acha que vai continuar subindo. Mas, se olhar estruturalmente, a situação da balança comercial brasileira é extremamente favorável. Seja em termos da agropecuária, seja em termos da mineração e especialmente do petróleo. Teremos bonança petrolífera nos próximos cinco anos. A conta capital do balanço de pagamento está deteriorada, no momento, por causa do aumento de juros lá fora e da desconfiança em relação à situação fiscal. Mas, se de alguma maneira pudesse lidar com esse problema, de estabilizar lá fora e ter política fiscal mais consistente, a médio prazo, eu diria, que a tendência do dólar não é se valorizar.

 

Valor: E quanto às expectativas inflacionárias? O mercado está desconfiado?

 

Bacha: A rigidez da inflação é fato conhecido, uma vez que [a inflação] se estabelece num patamar elevado por muito tempo. As pessoas se acostumam com aquela taxa e por isso é que o custo de controlar a inflação mais elevada é mais alto. Pode-se falar como inércia inflacionária, mas também pode chamar de rigidez das expectativas. Nesse sentido, é por isso que o Banco Central tem que agir na frente. Como agiu em 2021 e fez muito bem. O Fed [banco central americano] não tinha ainda se dado conta da gravidade da situação pós-covid. E o Roberto Campos [presidente do BC] já aumentava os juros aqui. 

 

Valor: Mas um aumento de juros hoje pode criar mais atrito em termos de articulação política…

 

Bacha: Aumentar juros, obviamente, em lugar nenhum no mundo, tem muita popularidade a nível político nem a nível da população.

 

Valor: É necessário?

 

Bacha: Bom, essa é a função do nosso regime de política econômica, que é baseado no tripé: superávit primário, que não está sendo produzido; câmbio flutuante, que está flutuando; e política monetária e regulação dos juros para atingir determinada meta.

 

Valor: O BC já reduziu ritmo de cortes do juro. O senhor acha que tem que interromper esse processo [de cortes na Selic]?

 

Bacha: Não vou entrar nessa questão. O Banco Central tem que acompanhar essa questão com lupa, que está ainda muito confusa. 

 

Valor: Atualmente, o BC e o governo não estão na mesma página sobre os juros?

 

Bacha: Não, certamente que não. E eu sou totalmente a favor da articulação entre políticas monetária e fiscal. A gente fez isso [durante implementação do Plano Real]. Mas sobre a questão do que o BC deve fazer, eu sempre me lembro de uma frase do saudoso Dionísio Dias Carneiro [economista falecido em 2010]. Ele sempre dizia que o BC tem que ser o primeiro dos pessimistas, e o último dos otimistas. Quer dizer, o Banco Central é o zelador da moeda. E tem que estar em eterna vigilância. Por natureza, o Banco Central tem que ser conservador. Porque é a ele que cabe preservar o poder de compra da moeda.

 

Valor: O BC está na linha certa?

 

Bacha: Pelo que entendo, o BC está fazendo o necessário diante da desancoragem das expectativas. E há muita desconfiança. Por ser um governo do PT, por ser o Lula quem é, por o Lula estar sempre atacando o Banco Central, é muito perigosa essa situação. Por exemplo, pode-se discutir se a meta [inflacionária] de 3% é adequada ou não, mas vai fazer isso agora nessas circunstâncias? Qualquer ideia de flexibilização bate com essa percepção que existe no mercado, de que o governo Lula não está interessado tanto assim na manutenção da estabilidade da moeda.

 

Valor: Qual é a diferença entre a estabilidade da moeda e o dia a dia da inflação? 

 

Bacha: Hoje a sociedade não permite que os políticos usem o “inflacionismo” como maneira de se elegerem, porque eles [a população] não elegem quem inflaciona. Outra questão é, com esse quadro, como criar ambiente institucional que valide essa percepção? Banco Central independente. Foi finalmente o que conseguimos mais recentemente. E vamos ver quem o Lula vai nomear no Banco Central adiante [mandato atual do presidente vai até dezembro]. Na gestão de Dilma Rousseff, houve total de descolamento de expectativas [entre mercado e Banco Central] e levou dois anos para o Ilan [Goldfajn, que presidiu o BC entre 2016 e 2019] conseguir trazer de volta. Até que veio Bolsonaro. 

 

Valor: Apesar desses ruídos, o BC não deve se render ao que o governo quer em relação a juros? 

 

Bacha: Espero que não. Não sei se acompanham as finais da NBA [campeonato de basquete norte-americano]. Nos jogos de basquete americanos, como são muitos pontos, quando o outro time está atacando, o que a audiência grita o tempo todo? “Defense, defense, defense [Defesa, defesa, defesa]”. Atualmente, então, nós temos que jogar na defesa para impedir que o pior aconteça.

 

Valor: No cenário atual, o que mais prejudica o crescimento?

 

Bacha: Há questões de curto prazo, como a questão fiscal e a situação externa, e suas consequências para a manutenção dos juros elevados, que são danosas ao crescimento. Diante dessas condições, há uma política de contenção monetária prejudicial ao crescimento. Não há investimento que consiga bater essa taxa de juros. 

 

Valor: É possível crescer em torno de 2% neste ano?

 

Bacha: Acho que estamos entre 2% e 3% [de previsão de crescimento]. O Brasil tem situação muito favorável. O Brasil está pronto para decolar, é o Lula que não deixa. Se o Lula parasse de brigar com o Banco Central, se o Lula se entendesse positivamente com o Centrão, se dispusesse a dividir poder, efetivamente, em vez de seguir com essa política maluca de emendas parlamentares obrigatórias, se pudesse criar um clima mais ameno na relação entre o Executivo e o Legislativo… o país está pronto para crescer. Mas há também questões estruturais.

 

Valor: Não há então a articulação que aponta como importante para o sucesso do Plano Real? 

 

Bacha: Não há [articulação]. O Lula e o PT não se dispõem a dividir o governo. Eles colocaram lá algumas pessoas mágicas, uma alquimia, como a [Simone] Tebet, o [Geraldo] Alckmin e a Marina [Silva]. Mas nenhum dos três tem poder. E os ministérios-chave estão todos na mão do PT. O governo quer negociar no varejo sem dar nada no atacado. E isso é possível de fazer, o Fernando Henrique [Cardoso] mostrou que é possível. Dava o ministério, mas não de porta fechada: secretários-executivos eram alguém de confiança do presidente. E isso permitiu que o Fernando Henrique tivesse, durante muito tempo, maioria parlamentar para executar as inúmeras reformas. 

 

Valor: Haddad poderia ter esse papel de articulação política?

 

Bacha: Pergunta para a presidente do PT [Gleisi Hoffmann]. O Haddad está sob ataque, sob fogo amigo.

 

Valor: No livro “30 anos do Real – Crônicas no Calor do Momento”, o senhor reforça uma defesa antiga, sobre a necessidade de abertura comercial do Brasil. Como fazer isso agora, quando o mundo está se torna mais protecionista?

 

Bacha: Nosso objetivo deveria ser o de aumentar substancialmente nossa parcela no comércio internacional. Sabe quanto são as exportações brasileiras em relação às exportações mundiais? 1%. Do ponto de vista do Brasil, se o mundo está fechando ou abrindo, é basicamente irrelevante. Diria que precisaríamos pelo menos dobrar [a participação do Brasil nas exportações mundiais]. Em termos de Produto Interno Bruto (PIB), temos entre 2,5% e 3% do PIB mundial. Então é uma questão de normalização. Na margem, o mundo está se fechando, mas essa margem não afeta o Brasil. Na realidade, fundamentalmente, o que ocorre é que os Estados Unidos e a Europa, de maneira mais moderada, estão se fechando em relação à China. […] Essa situação de guerra fria é peculiar. Mas a guerra fria entre União Soviética e Estados Unidos não impediu que, entre 1945 e até 1990, o comércio internacional se expandisse de maneira extraordinária. Essa ameaça chinesa não existe para o Brasil, do ponto de vista de avanços tecnológicos. 

 

Valor: O livro mostra as diferentes leituras sobre o Real nas últimas décadas. O que mudou?

 

Bacha: Trinta anos é um número meio mágico. Porque a gente comemorou os dez anos, comemorou os 20 anos, comemorou os 25 anos. Mas nunca teve esse impacto, na imprensa, que os 30 anos estão tendo. Isso porque as pessoas, por meio da imprensa, estão se dando conta que a estabilidade veio para ficar. Trinta anos de estabilidade. Fernando Henrique foi embora. Veio Lula, veio Dilma, veio Temer, veio Bolsonaro, volta Lula. Mas a inflação parou. A inflação não volta mais.