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O Brasil viveu sob a estagnação econômica no século XIX, com escravidão, dependência de produtos primários e o viés contra os negócios da monarquia. Depois, cresceu fortemente no século XX, graças à substituição de exportações e o “Milagre Econômico”.
Nas comemorações dos 200 anos da independência, essa visão dominante da história está sendo questionada pelos economistas Edmar Bacha, Guilherme Tombolo e Flávio Versiani, em dois textos acadêmicos. Eles acham que, em parte, foi apenas uma ilusão estatística.
“Do começo ao fim do século XIX, são dois Brasis totalmente diferentes, culturalmente, em termos de tamanho da população”, argumenta Bacha, um dos pais do Plano Real. “No entanto, a historiografia econômica diz que houve estagnação, zero de crescimento econômico.”
Ele vai apresentar as primeiras conclusões dessas pesquisas nesta quinta, 29, na Academia Brasileira de Letras (ABL), dentro de uma série de seminários organizados pelo historiador e cientista político José Murilo de Carvalho sobre os 200 anos da independência.
Para confrontar o consenso de que a economia brasileira andou de lado no século XIX, os três autores tiveram que rever, primeiro, as estimativas para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) no século XX. Como esse foi um período de forte expansão, quem faz as contas da frente para trás acaba chegando à conclusão de que, no começo do século XX, a economia estava basicamente em estado de subsistência
Isso cria um problema prático: se o século XX começa com a economia produzindo o mínimo para a subsistência, não há lugar para nada além da estagnação no século XIX. Se houvesse crescimento no século XIX, o desdobramento natural seria de que o século XVIII tivesse terminado abaixo do nível de subsistência – em termos práticos, a população brasileira estaria morrendo de fome naquele período.
Bacha, Tombolo e Versiani refizeram as contas e chegaram à conclusão de que, de 1900 a 1980, a média anual de crescimento foi de 4,9%, e não 5,7%, como atualmente aceito. Concluíram que o crescimento do Brasil no período de substituição de exportações e no “Milagre Econômico” foi alto para os padrões internacionais, mas com um pouco menos de brilho do que se presumia. As contas para o período de 1947 a 1980 apontavam expansão de 7,4%, e caíram para 6,2% na revisão feita no estudo.
Esses cálculos fazem parte do estudo “Reestimating Brazil’s GDP Growth from 1900 to 1980” (numa tradução livre, “Reestimando o crescimento do PIB brasileiro de 1900 a 1980”), que os autores estão circulando entre os especialistas para receber críticas. Há um segundo texto em elaboração sobre o século XIX.
Não é fácil estimar o PIB para passado tão distante, já que a própria noção de macroeconomia, e portanto de contas nacionais, é relativamente recente – surgiu com o economista inglês John Maynard Keynes.
O diagnóstico sobre o crescimento do século XIX, portanto, foi feito com os olhos do século seguinte. A monarquia, por exemplo, é vista como adversária dos negócios, baseado na crença de que o imperador Dom Pedro II teria perseguido o barão de Mauá, o mais conhecido empreendedor do período. “Por mais méritos que tenha, o Mauá quebrou porque expandiu além da conta e ficou devendo para os banqueiros”, diz Bacha. “Dom Pedro II não tinha nada com isso.”
A visão cepalina do século XX é que o desenvolvimento só ocorre com a industrialização, e que, portanto, a economia baseada na exportação de produtos primários não gerava crescimento do PIB. A tudo isso, junta-se o esquema de trabalho escravocrata, um fator que limitava a expansão do mercado consumidor.
Um economista americano, Simon Kuznets, criou a metodologia básica para calcular o PIB, no período da Grande Depressão. Por aqui no Brasil, toda essa contabilidade da produção nacional começou depois da Segunda Guerra Mundial, com a Fundação Getulio Vargas (FGV), em 1947.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que hoje divulga dados do PIB trimestrais e anuais, só assumiu a tarefa a partir de 1986 e fez as contas retroativamente para o período a partir de 1980.
Para os períodos anteriores à Segunda Guerra, há duas fontes consagradas. Um estudo do economista Cláudio Haddad, de 1978, estima o crescimento do PIB de 1900 a 1947. E a principal referência para o século XIX é do Maddison Project, nascido do trabalho seminal do economista britânico Angus Maddison, que dedicou a vida a calcular o PIB para as principais economias a partir do Império Romano.
Os dados eram escassos e incompletos, e estimar o PIB para o período é como adivinhar o tamanho de um vaso quebrado apenas com parte dos cacos. No seu trabalho, Bacha, Tombolo e Versiani questionam uma alteração na metodologia usada pela FGV em 1969 para estimar os serviços – que, de uma hora para outra, fez o vaso parecer maior.
De 1947 a 1967, a FGV calculava o PIB supondo que os serviços cresciam de acordo com o número de trabalhadores empregados no setor. Em 1969, a fundação reviu a metodologia e as contas feitas para o período e passou a considerar que o serviço se expandia de acordo com a renda dos trabalhadores do setor, tirando a inflação. Em termos práticos, o crescimento do PIB para o período passou de 5,3% na série antiga para 6,1% na nova.
Já a partir de 1968 o PIB passou a incluir apenas os setores mais dinâmicos da economia: indústria, agricultura, comércio e transportes. É como se alguém escolhesse apenas os cacos grandes para dizer que o vaso era um pouco maior. O IBGE, a partir de 1980, volta ao método antigo e passa a calcular os serviços de acordo com o número de trabalhadores empregados.
Será que a FGV, que tinha muitos integrantes na equipe econômica da ditadura militar, como Octavio Gouvêa de Bulhões e Mario Henrique Simonsen, mudou a metodologia para o ministro Delfim Netto proclamar o Milagre Econômico? Bacha conta que vasculhou a documentação da época, que é muito pequena, por isso não se arrisca a apontar possíveis motivações.
Os três economistas refizeram as contas, considerando a metodologia do IBGE, e chegaram à conclusão que a expansão de 1947 a 1980 foi grande, de 6,2%, mas não tanto como dizia a história que foi recontada pela nova metodologia da FGV, que apontava 7,4%.
Eles empregaram mais ou menos o mesmo princípio para recalcular o PIB antes da Segunda Guerra, que também exclui serviços, nos cálculos feitos por Haddad. Isso faz com que a taxa de expansão da economia fique em 4%, em vez dos 4,4% calculados por Haddad.
Todos esses resultados vão na mesma direção – a economia brasileira cresceu um pouco menos do que se supunha no século XX, portanto não é impossível que tenha havido crescimento no século anterior.
O consenso, muito influenciado pela obra do economista Celso Furtado, é que houve algum crescimento na segunda metade do século XIX, com a economia cafeeira, a construção das ferrovias e a forte expansão de São Paulo. O economista Raymond Goldsmith, da Universidade Yale, estimou o crescimento no período em 0,4%
Bacha acha que a taxa de expansão pode ser o dobro disso, embora afirme que essa é, por enquanto, uma intuição que ainda precisa ser confirmada pela numeralha. Um dos pontos de partida é a tese de Guilherme Tombolo, da Universidade Federal do Paraná, que é coautor do texto. O terceiro deles é Flavio Versiani, um historiador econômico da Universidade de Brasília. Mas há também uma discussão sobre quanto a economia cresceu na primeira metade do século XIX. A historiografia mais recente, afirma Bacha, revela que as exportações teriam sido maiores do que se acreditava. O período também foi forte no setor público, primeiro com a transferência da família real para o Brasil e depois com a o estabelecimento do governo local e a organização de aparato militar para combater as várias rebeliões do período. Os dados relativos à expansão monetária também podem ser indícios de uma expansão econômica mais forte.
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