Casa das Garças

BC não é sádico e precisa de ajuda

Data: 

23/05/2023

Autor: 

Arminio Fraga

Veículo: 

Valor Econômico

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Para economista, cabe ao governo ajustar o fiscal para juro começar a cair

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Gávea Investimentos, diz que pode estar chegando o momento de cortar os juros no Brasil, mas frisa que o Banco Central depende de apoio fiscal. “O Banco Central em geral faz um belo trabalho nessa área, ninguém lá é sádico. Tem gente que acha que o BC está a serviço dos rentistas. Eu acho que quem está serviço dos rentistas é o governo, que é o maior tomador de empréstimos e assim pressiona os juros.”

Para Arminio, “estamos sem margem de segurança” e por isso é preciso arrumar as contas e reduzir as incertezas. Ele diz que a meta de inflação é adequada, mas um prazo maior para que se cumpra o estabelecido poderia fazer o presidente do BC “se sentir protegido” no manejo da política monetária.

O economista defende uma nova reforma da Previdência, apenas quatro anos após a difícil aprovação da primeira, além da administrativa e da tributária. “Há uma absurda falta de prioridade e qualidade nos gastos”, afirma. Ele critica as tentativas de desfazer medidas da gestão Bolsonaro, como a revisão da privatização da Eletrobras e do marco do saneamento, além da mudança na política de preços da Petrobras: “Um jeito meio bolivariano, que faz parte de um desenho de país fracassado”.

Embora faça questão de reconhecer o esforço dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, por darem sinais claros da intenção de recuperar a credibilidade fiscal, Arminio diz que está decepcionado. “Imaginava que as lições do PT no poder tivessem sido razoavelmente absorvidas.” Mas responde com firmeza quando perguntado sobre seu apoio público a Luiz Inácio Lula da Silva na campanha eleitoral, em decisão que atribuiu à defesa da democracia: “Não me arrependo do meu voto. Foi uma ótima decisão, e foi por um triz”.

Nos Estados Unidos em uma pequena pausa para estar com a família, Arminio conta que trabalha em um livro. “Estou sempre aprontando coisa para fazer, mais do que eu deveria”, diz. ”E ainda trabalho bastante como motorista dos meus netos”, brinca. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Como o senhor avalia o novo governo até agora?

Arminio Fraga: Olhando para o lado econômico, confesso que esperava mais. Imaginava que as lições do PT no poder, tanto as positivas quanto as negativas, tivessem sido razoavelmente absorvidas. Do lado macroeconômico, desde as eleições as falas do partido em geral, inclusive do próprio presidente, sobre temas como a responsabilidade fiscal e a atuação do Banco Central, foram preocupantes, até raivosas. Do lado micro, tem havido muito ruído em torno de assuntos onde houve progresso nos últimos anos, sempre na direção contrária ao que seria desejável. Exemplos importantes, como Previdência e regras trabalhistas, foram descartados, mas o sinal do atraso foi dado. O marco do saneamento foi mutilado, mas, felizmente, o Congresso achou por bem defender sua própria obra. Agora a Petrobras aparece com um jeito meio bolivariano, que faz parte de um desenho de país fracassado e despreocupado com o meio ambiente, posto que se trata de subsidiar combustíveis fósseis. Há ainda incerteza quanto ao BNDES e aos bancos públicos em geral. A área econômica vai mal.

Valor: E qual é o impacto de todo esse discurso desencontrado?

Arminio: Os ministérios da Fazenda e do Planejamento deram um sinal correto na questão fiscal, na direção de recuperação da credibilidade do Brasil. É um pilar fundamental do tripé macroeconômico. Com as taxas de juros que temos, o Banco Central está precisando é de ajuda. Nossa política macroeconômica está desequilibrada, impondo muito peso ao monetário e pouco ao fiscal. Aí está a principal causa do alto nível de juros no Brasil. A questão é o que fazer a respeito. Para mim, o número 1 da lista é recuperar a responsabilidade fiscal perdida. Dou crédito à área fiscal por se posicionar quando, claramente, o presidente da República vem se mostrando contra, num falso dilema com a responsabilidade social. Espero que ele esteja mudando de ideia. Ele parece acreditar que um país que tem a sua própria moeda pode se endividar à vontade. A verdade é que nenhum país recebe como um presente divino uma moeda forte. Uma moeda forte é construída todo dia. E forte a nossa, infelizmente, não é. Está alicerçada em um juro colossal, e ninguém pode achar isso bom e sustentável. Pelo menos a discussão está agora com sinal certo, que é trabalhar para construir saldo primário. Falta o lado do gasto.

Valor: Quando vamos conseguir sair dessa discussão para resolver o conflito distributivo, enfrentar temas relevantes para o desenvolvimento e melhorias para a população, como saúde e educação?

Arminio: O conflito distributivo é antiquíssimo e existe em função de demandas legítimas e enormes, que todo mundo quer satisfazer. A questão é como. O gasto público no Brasil nos últimos 30 anos subiu de algo em torno de um quarto do PIB para um terço. Ao longo do tempo não houve, portanto, austeridade. O que houve foi uma colossal falta de prioridade. E não é possível convencer a maioria das pessoas de que essa situação para em pé. A reforma administrativa, por exemplo, é um tema importantíssimo, mas é rejeitada pelo governo. Sofre o investimento público, que de fato está muito baixo há tempo, vítima de escolhas míopes. O que dá pra fazer a curto prazo? Quais são as prioridades? Se o governo brasileiro estivesse tomando dinheiro emprestado a 2% em termos reais, talvez até valesse a pena arriscar um pouco. Como chegar lá? Há uma absurda falta de prioridade e de qualidade nos gastos. O que fazer? Avaliar tudo o que se faz e eliminar o que não está funcionando direito ou que não represente uma prioridade adequada.

Valor: O sr. defende frequentemente a reforma administrativa, já que os gastos com a máquina pública tomam muito do Orçamento. Mas é uma mudança mais demorada, e o país precisa de uma solução urgente. Quais são os riscos de as contas públicas entrarem em descontrole?

Arminio: Os riscos são elevados. O que poderia ser feito seria combinar o que dá pra fazer agora com providências concretas que vão ter impacto a médio prazo, mas que melhoram hoje as expectativas. Por exemplo, iniciar uma discussão sobre mais uma reforma da Previdência. Um relatório do Ipea de novembro do ano passado mostra com clareza que, mesmo em cenários otimistas, os números da Previdência tendem a piorar bastante. Idem para uma reforma administrativa, que, além do impacto fiscal a médio prazo, aumentaria a eficiência do Estado. Não estou nem falando aprovada. Mas não está sendo sequer cogitada. E dá para aprovar por lei complementar, não precisa nem mexer na Constituição. Outro exemplo é o da revisão das benesses tributárias, mas recentemente, por exemplo, foi aprovada a renovação dos benefícios para a Zona Franca por décadas. E aí, como é que se faz? O cobertor é curto, mas é preciso abrir todas as frentes de trabalho para sinalizar um futuro menos incerto e ajudar o país para crescer.

Valor: Dá para repetir o crescimento de 7% ao ano do período de 1950 a 1980?

Arminio: Em termos per capita, o crescimento foi de cerca de 4%. Visto dessa forma, parece menos difícil. Quando se leva em conta que aquela estratégia de desenvolvimento explodiu e desembocou na década perdida, e se inclui esse período na conta, se chega a algo como 3% per capita. Se sustentado, seria um enorme sucesso. Não é impossível, mas eu hoje vejo o governo caminhando na direção oposta ao desejável. A realidade é que, das últimas quatro décadas, em duas o Brasil teve queda no PIB per capita. Para um país que deveria estar encurtando a distância para as economias mais avançadas, perder 20 anos é triste.

Valor: Como sair desse nível de juros, com inflação ainda tão resistente? É uma equação difícil.

Arminio: Reformas fiscais estruturais e menos incerteza em geral. De fato, o juro é muito alto, e não só a Selic. Brasil está pagando 6% reais em um prazo de 30 anos. Não sei como alguém pode achar que a nossa dívida é pequena, sobretudo com esse juro. Nesse momento, o que dá pra fazer é começar a arrumar as contas públicas e tentar fazer a economia funcionar da forma mais justa e mais eficiente. Estamos sem margem de segurança.

Valor: Já é o momento de baixar os juros?

Arminio: Pode ser, mas a política monetária deve seguir apertada. Faz muita falta o apoio fiscal. Se confirmando um cenário de condições de crédito restritas o quadro para algum corte seria mais sólido. O Banco Central em geral faz um belo trabalho nessa área, ninguém lá é sádico. Tem gente que acha que o BC está a serviço dos rentistas. Eu acho que quem está serviço dos rentistas é o governo, que é o maior tomador de empréstimos e assim pressiona os juros. Há uma maneira fácil de se avaliar o BC: a inflação ficou abaixo da meta? Não. Então o problema é outro, é de diagnóstico.

Valor: E a meta de inflação deve ser rediscutida?

Arminio: A meta é adequada, deveria ser de longo prazo. Eu apenas daria mais prazo para ela ser cumprida, mais um ano. Essa alternativa merece reflexão do CMN, que deveria dar esse mandato ao Campos Neto, para ele se sentir protegido. Vejo muitos países no mundo implicitamente fazendo algo nessa linha. O sistema de metas é de longe a melhor maneira de coordenar o que o BC e a área fiscal fazem: governo define a meta, BC persegue e presta contas.

Valor: O sr. declarou voto no atual presidente, em defesa da democracia. Como vê a decisão hoje?

Arminio: Eu não me arrependo do meu voto. Foi uma ótima decisão, e foi por um triz. Quando Pedro Malan, Edmar Bacha e eu escrevemos carta aberta a Lula em novembro, tínhamos a expectativa de que a política econômica fosse razoável. Nas discussões da redação daquele texto curtinho, queríamos dar o sentido de esperança, e não de crença de que aquilo fosse acontecer.

Valor: E o senhor ainda vê a nossa democracia em risco?

Arminio: Tem muita literatura recente defendendo que a democracia vai sendo comida pelas beiradas. Para nós, que passamos tanto tempo sem, não dá para brincar. É preciso um estado permanente de alerta. O Brasil está radicalizado, o mundo também. Há também um nível elevado de tensão entre os poderes. Mas me parece que as defesas da democracia estão funcionando. Quais são? A imprensa livre, o terceiro setor, atuando em várias áreas de maneira absolutamente crucial, a academia, a cultura, que dá vida aos temas de uma maneira mais lúdica, que inspira. Essas defesas estão ativadas no Brasil, e é bom que continuem.

Valor: O governo já mencionou o desejo de rever a privatização da Eletrobras. Isso pode acontecer?

Arminio: No caso da Eletrobras, na capitalização recente, um governo eleito legitimamente tomou a decisão criar um limite de voto para cada acionista, inclusive para si próprio, e assim na prática vendeu o controle. Agora o novo governo quer voltar a atrás, um inaceitável calote. Acho que não vai acontecer, porque o governo deve saber que perderia no Judiciário.

Valor: Nesse cenário de forte crescimento do crédito privado nos últimos anos, com alongamento de prazos e redução de custos, qual deve ser o novo papel do BNDES?

Arminio: O BNDES tem que justificar com rigor tudo o que faz. A despeito de eu ter a maior admiração pelos quadros do banco, que são dos melhores que esse país tem, eles frequentemente trabalharam com um modelo meio arcaico de desenvolvimento, sem justificativa e avaliação de ações. E isso foi levado ao extremo na gestão Dilma Rousseff. Depois houve uma correção de rumo. Nunca achei que devesse ser definido um tamanho para o BNDES, mas acho que se deveria limitar a partir de princípios de atuação e da existência de espaço orçamentário. No passado, quando eu ouvia a frase “esse setor é estratégico”, já começava a me coçar. Raramente era. Essa discussão é saudável, não sou contra tudo, mas é importante justificar e avaliar.

Valor: O sr. tem se envolvido em áreas fora do seu habitat tradicional de economia e finanças. Por que resolveu percorrer esse caminho?

Arminio: De uns anos para cá, tenho me dedicado mais ao tema da desigualdade e da falta de oportunidades. Estou envolvido em três novas frentes. Duas por meio de institutos sem fins lucrativos, voltados para a política pública: o IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) e o IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social). Os dois estão de vento em popa. A terceira reflete o meu lado verde. Sempre fui um verde. Adoraria que existisse um partido social, liberal, verde, ao qual algum dia eu pudesse até me filiar. Sempre achei que o Brasil tinha que se atirar nessa área para ajudar na questão da mudança climática, cuidar da biodiversidade do planeta e também para zelar pela nossa qualidade de vida. Isto precisaria ficar claro para as pessoas. Estou falando de ar, rios e praias limpas. Temos hoje exemplos extraordinários da Costa Rica e da Nova Zelândia. Sou acionista da empresa Re.green, um projeto maravilhoso, de reflorestamento com biodiversidade de áreas degradadas, viabilizado pela venda de carbono. Tem grande potencial.  É um projeto de execução muito difícil, arriscado, mas você não vai encontrar uma pessoa na nossa empresa que não esteja vibrando, mesmo diante de todos os desafios.

 

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