Casa das Garças

Brasileiro não aceita mais que hiperinflação volte, afirma Pedro Malan

Data: 

24/06/2024

Autor: 

Pedro S. Malan

Veículo: 

Valor Econômico

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Prestes a completar 30 anos no próximo dia 1º, a estabilização de preços proporcionada pelo Plano Real foi apenas um primeiro passo de um projeto de transformação da economia brasileira, disse ao Valor o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, que comandou a área econômica do governo nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). 

 

Após domar a inflação, havia toda uma agenda de reformas econômicas a ser implementada. Muitas delas ainda estão sobre a mesa. É o caso do debate sobre a estrutura das despesas obrigatórias do governo, tema que foi levado na semana passada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento).

 

Documentos elaborados antes do lançamento do Real continuam atuais nesse debate, ressaltou o ex-ministro, que nesta terça-feira (25) lança em São Paulo, o livro “30 Anos do Real – Crônicas no Calor do Momento”, pela editora Intrínseca.

 

A publicação reúne artigos publicados por Malan e outros dois “pais” do plano de estabilização, Edmar Bacha e Gustavo Franco (organizador), além de um artigo escrito por Fernando Henrique Cardoso em 2019. O livro é dedicado ao expresidente, cuja liderança política é apontada como peça fundamental do sucesso do plano de estabilização. 

 

O propósito do livro não é trazer bastidores sobre a elaboração do plano, e sim discutir a tentativa de consolidação do projeto do Real ao longo dos últimos 30 anos, além de contribuir para o debate atual, explicou o ex-ministro. 

 

Organizado em seis partes – primeiros anos, dez anos, 15 anos, 20 anos, 25 anos e 30 anos -, mostra a batalha da construção do tripé macroeconômico que persiste até hoje e como o projeto resistiu à alternância do poder, com a eleição de Lula em 2002. 

 

O Real completou 20 anos em meio ao experimento da Nova Matriz Macroeconômica e, na definição de Franco à época, o momento “mais cercado de dúvidas sobre a coisa conquistada”. 

Também hoje há o debate em torno da adoção de uma política keynesiana, apesar dos resultados da tentativa anterior. Ao mesmo tempo, outros integrantes do governo se esforçam para colocar em debate a estrutura do orçamento, algo que deve ser intensificado, na visão do ex-ministro. 

 

“Acredito que a história é um diálogo infindável entre o passado e o futuro”, afirmou ele, a respeito do livro. “O objetivo é mostrar como essas coisas estão ligadas: o passado estabelece certas restrições, mas também certas oportunidades e possibilidades que o futuro sempre encerra.” A seguir, os principais trechos da entrevista.

 

O pré-Real – não foi só o “Larida” 

 

Havia um debate acadêmico uma década antes do lançamento do Real. Para muitos, o ponto de partida é o trabalho do André Lara Resende e Persio Arida [Larida], mas houve várias outras contribuições. Em 1977 começou a ser conversada a criação do programa de mestrado e de ensino e pesquisa do Departamento de Economia da PUC [do Rio]. O Dionísio Dias Carneiro organizou um livro e tem um excelente artigo chamado “Brasil, Dilemas de Política Econômica”, que vale a pena ser lido hoje. Meu artigo é sobre o setor externo, o do Francisco Lopes, sobre problemas da inflação no Brasil, o do Rogério Werneck, sobre crescimento rápido e equidade distributiva.

 

O pré-Real – planos fracassados 

 

Teve um aprendizado com a experiência de seis tentativas de estabilização: Cruzado I, Cruzado II, de 1986, o Plano Bresser, de 1987, Plano Verão, na virada de 1988 para 1989, Plano Collor I, em 1990, Collor II, em 1991. Foi uma tentativa de, na prática, lidar com a marcha da insensatez que era a inflação brasileira: estava em 20% no início dos anos 1970, mais de 40% em meados dos anos 1970, 100% em 1980, 240% em 1985, 1.000% em 1988, 1989, 2.300% em 1993. 

 

Origem da força do Real – aprendizados 

Houve um aprendizado derivado da discussão acadêmica de uma década. E as tentativas de estabilização, que, se não deram certo, têm aprendizados e envolvidos. O Edmar Bacha, o André Lara e o Persio, por exemplo, se envolveram muito no Cruzado e descobriram a força enorme do efeito do congelamento de preços sobre o sistema político e sobre o eleitorado. Era para durar pouco tempo, mas durou até as eleições. [Nas eleições daquele ano, o PMDB elegeu 22 dos então 23 governadores.]

 

Origem da força do Real – o time 

A força do Real vem de uma da combinação única. Primeiro, a ida de Fernando Henrique Cardoso do Ministério das Relações Exteriores para o da Fazenda, na terceira semana de maio de 1993. E da capacidade de um político experimentado como o Fernando Henrique. Ele conseguiu juntar em torno de si um grupo de pessoas: Clóvis Carvalho como secretário-executivo; Winston Fritsch e Gustavo Franco para a Secretaria de Política Econômica; Edmar Bacha, que não pôde assumir uma posição lá. E, em agosto de 1993, ele conseguiu atrair para o governo a mim, ao André Lara e ao Persio. E foi ali, em agosto de 1993, que formou-se a massa crítica que permitiu um ataque à inflação. 

 

Origem da força do Real – o povo e as urnas 

A força do Real foi o seu sucesso e a aceitação que teve por parte da população. Vem do fato que a esmagadora maioria da população brasileira hoje percebe que a preservação da inflação sob controle é a preservação do poder de compra do salário do trabalhador brasileiro. E antes – para usar uma expressão do Millôr Fernandes – sobrava cada vez mais mês no fim do salário do trabalhador. É a preservação do poder de compra das transferências diretas de renda, que hoje assumiram uma dimensão extraordinariamente significativa no Brasil. Para ter uma ideia: dos 26 Estados brasileiros mais Distrito Federal, em 15 a população que recebe essas transferências diretas de renda é superior àquela que tem carteira assinada. Então, eu acho que criou raízes entre nós a ideia de que qualquer governante que tenha uma atitude excessivamente leniente, complacente, descuidado com a inflação será punido nas urnas. É uma característica da democracia que é importante preservar. Isso não aparecia com clareza durante a vigência do regime militar, mas numa democracia é muito importante essa consideração. 

 

Sem risco de retrocesso no Real 

Acho que não voltaremos, em hipótese alguma, àquele tipo de hiperinflação que nós tivemos. Porque o governo no qual essa aceleração começa certamente é é substituído nas urnas pelo eleitorado, que percebeu a importância da preservação da inflação sob controle.

 

Ajuste fiscal, velho desafio 

Há alguns marcos importantes. Eu mencionei aqui que o Fernando Henrique foi nomeado ministro da Fazenda em maio de 1993. Três semanas depois, o governo lançou um Programa de Ação Imediata (PAI). Ele merece ser lido hoje. São 13 ou 14 páginas, que começam lembrando que só havia quatro países no mundo que tinham inflação de mais de 1.000%. Eram a Rússia – o império soviético havia colapsado dois anos antes -, a Ucrânia, associada a isso, e o Congo, em guerra civil. E o Brasil era o quarto desses países. As outras eram economias totalmente desarticuladas, mas o Brasil não. A economia, bem ou mal, com a indexação, ela vinha funcionando, mas a hiperinflação era o grande desafio. Esse Programa de Ação Imediata, ele fala abertamente, no começo, da desordem das contas públicas.

 

Dívida externa 

Outro marco importante foi que em 29 de novembro de 1993 nós encerramos o processo de renegociação da dívida externa brasileira. Assinamos nosso acordo com 700 e tantos credores privados do Brasil. O acordo com os credores oficiais já havia sido alcançado em janeiro de 1992. 

 

Real sem susto 

E teve um documento que eu acho fundamental. No dia 7 de dezembro de 1993, o Ministério da Fazenda encaminhou ao presidente Itamar Franco uma exposição de motivos – 395, se não me engano. O primeiro pilar ali era a parte fiscal. O equilíbrio tinha que ser obtido para o biênio 1994-95, e exigia ações no Congresso. O segundo era uma lista grande das propostas de emendas constitucionais. E o terceiro era a reforma monetária. Foi dito que nós estaríamos lançando uma unidade de conta, uma referência para contratos [a Unidade Real de Valor, URV]. Ela não teria propriedade de meios de pagamento de início, mas circularia, estaria em vigência junto com o Cruzeiro Real, que era a moeda, até que a economia se recontratasse em URVs. Quando aquela recontratação tivesse assumido um certo ponto, ela seria convertida no Real, como foi.

 

Consolidação do Real – reformas 

Nós estamos comemorando agora os 30 anos do lançamento do Real, mas também os 25 anos e meio do regime de taxa de câmbio flutuante, os 25 anos agora em junho do regime de metas de inflação, os 24 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal. E fizemos inúmeras reformas ao longo desse período, ainda nos anos 1990. Reduzimos o número de bancos estaduais de mais de 30 para pouco mais de meia dúzia. Vários deles estavam insolventes, não podiam sobreviver após perder a receita inflacionária. Fizemos capitalização do Banco do Brasil e da Caixa, interviemos nos bancos privados – houve processo de consolidação, vários foram liquidados. Fizemos privatização de siderúrgica, do setor elétrico, das telecomunicações. 

 

Além da inflação, social 

As transferências diretas de renda começaram ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Entre 3,5 milhões e 4 milhões já recebiam transferências diretas de renda sob várias denominações. O Lula, depois de tentar o Fome Zero, juntou todos os programas do governo Fernando Henrique Cardoso.

 

Vai mudar? 

Essa é a discussão do momento, não é? Acho que o segundo governo Lula, assim como o primeiro, foi ajudado enormemente por um ciclo [de crescimento da economia global] que foi o mais longo, o mais profundo e o mais amplamente disseminado da história. Aquilo se expressou no apoio que ele recebeu nas urnas, a eleição para Lula 2, e depois fazer a sua sucessora em 2010. O que eu acho é que a ideia de que é possível fazer uma aceleração do crescimento através de uma política keynesiana de caráter permanente, é aquilo que o André Lara Resende chamou de armadilha macroeconômica brasileira. Quando a demanda cresce de maneira significativa, na expectativa de que a oferta doméstica responda em prazo hábil [mas isso não ocorre], o país enfrenta pressões inflacionárias ou então desequilíbrio em balanço de pagamentos, porque passa a depender de importações. Então, não bastam as intenções. 

 

Revisão de gastos 

Isso é algo que vem sendo cobrado há muito tempo. Não é simples, não é trivial. Escrevi em 14 de abril deste ano um artigo que se chama “Em Busca da Eficiência no Gasto Público”. E eu faço menção a uma entrevista coletiva da presidente Dilma Rousseff no fim de outubro de 2014, logo após a eleição. Eu vou citar textualmente: “Ao longo do governo, você descobre várias contas que podem ser reduzidas. O que vamos tentar é um processo de ajuste em todas as contas do governo. Vamos revisitar cada uma e olhar com lupa o que dá para reduzir, o que dá para tirar, o que dá para modificar”. E eu escrevi: “Surpreendentes palavras. Tardias, sem dúvida, para quem passara cinco anos e meio como ministra-chefe da Casa Civil e mais quatro na Presidência da República”. E não deixei de notar que os jornais registraram também o recado complementar da presidente Dilma: “Mas estou dizendo que vou manter o emprego e a renda, ponham na cabeça isso”. Os brasileiros de boa informação e memória sabem o que aconteceu com essas duas variáveis em 2015 e 2016. No segundo mandato de Dilma, nós tivemos uma recessão seriíssima, derivadas das dificuldades de fazer isso que ela intuiu muito tardiamente: que é preciso tentar um processo de ajuste. Não é trivial, mas governar é fazer escolhas, definir prioridades.

 

Indústria naval 

É perfeitamente razoável que se queira expandir os gastos em uma determinada coisa considerada prioritária pelo governo. Mas a boa prática sugere identificar qual é a fonte de financiamento e, segundo, qual é o outro gasto que será reduzido ou modificado. Não basta a intenção de construir uma indústria naval que vai competir com as melhores do mundo porque é desejável o objetivo. Nossa experiência mostra que nem sempre tudo que é desejável é factível. Exige discussão, e o locus dessa discussão deve ser o Orçamento, assim nos outros países do mundo.

 

Nova reforma da Previdência 

No nosso Orçamento sobram menos de 10% para decisões discricionárias de gasto. A tendência é que esse espaço, que já é muito reduzido hoje, vá se reduzindo a ponto de – se nada for feito até lá – praticamente desaparecer. É uma questão de longo prazo, mas tem que ter consciência dela. Decisões difíceis têm que ser tomadas. Eu espero que isso tenha lugar ao longo dos próximos três anos, e nos próximos quatro que se seguirão depois, pelo menos. Tem questões de longuíssimo prazo: a área de demografia e previdência. Nós vamos ter uma nova reforma da Previdência Social, em algum momento, logo no começo dos anos 2030 – se não antes. Porque as pessoas precisam fazer conta. 

 

Luz no fim do túnel

Mas não significa que não haja solução. Eu acho que tem solução para isso, mas o grau de percepção da natureza do problema tem que ser maior do que tem sido até o momento. Tem aumentado. Eu acho que tem gente no governo que está fazendo um esforço sério para tentar fazer com que essa questão assuma uma importância crescente no debate público. 

 

O livro 

Não é um livro que procura contar uma história de bastidores. E não é que alguém agora, neste ano de 2024, com o benefício de sabedor de tudo o que aconteceu, fala sobre o que aconteceu. Foram textos escritos no calor da hora. Mostram a nossa preocupação com o processo de consolidação do Real. Para nós, era uma agenda pós-Real, e ela se confundia, era parte integrante, da própria agenda do desenvolvimento econômico, social e político-institucional do Brasil. Acredito que a história é um diálogo infindável entre o passado e o futuro. O objetivo é mostrar não só o que aconteceu, para revolver a memória, mas para mostrar como essas coisas estão ligadas: o passado estabelece certas restrições, mas também certas oportunidades e possibilidades que o futuro sempre encerra

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