‘Candidato deverá encarnar o ‘liberalismo social’’


RIO – Em busca por alternativa à disputa entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais de 2022, o economista Edmar Bacha, integrante da equipe que desenvolveu o Plano Real e do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), não vê a possibilidade, no quadro atual, de uma política pública, como a estabilização da hiperinflação, catapultar um candidato. Em 1993 e 1994, descreve Bacha em No País dos Contrastes, livro de memórias que está lançando (selo História Real, ed. Intrínseca), Fernando Henrique liderou a estabilização, como ministro, e acabou eleito presidente em 1994. Agora, o foco tende a ser na “personalidade” política dos candidatos capazes de “encarnar” um projeto de “liberalismo social”.

O quadro de hoje se compara ao de 1993, quando o Plano Real foi gestado a um ano das eleições de 1994?

É difícil. Primeiro, não estamos no governo para fazer um Plano Real. Segundo, não tem um Plano Real à vista. O que podemos fazer é evocar na população a imagem do Plano Real, para dizer que toda aquela experiência mostra que o Brasil tem melhores alternativas que Lula e Bolsonaro. Não vamos fazer uma volta para aquele passado negativo que foi o “lulopetismo”, nem essa desgraça que é o Bolsonaro. O Brasil merece o melhor. Nas últimas pesquisas, o grau de rejeição do Lula, quando associado ao PT, é, na verdade, tão grande quanto o do Bolsonaro. Então tem espaço para uma proposta nova, modernizante, de “liberalismo social”, que responde a essa preocupação com a questão do desemprego, da fome, da distribuição de renda.

Por que os candidatos mais importantes que estiverem ainda na mira da Presidência em dezembro, logo depois da conclusão das primárias do PSDB, não entram num acordo para fazer uma série de debates entre eles, promovidos por veículos de imprensa? E com um acordo com os institutos de pesquisa, que iriam acompanhando o sentido da população em relação a esses candidatos, para ver se convergimos para um candidato único?

Acho que vai depender muito de personalidades. O que vai atrair mais a população? Um governador que promoveu a vacina (João Dória, de São Paulo, do PSDB)? Aquele outro governador jovem com ideias novas de modernidade e diversidade que vem lá do Sul (Eduardo Leite, também do PSDB)? Será um ex-ministro da Saúde que tentou fazer o que era certo no governo Bolsonaro (Henrique Mandetta, do DEM)? Será uma mulher que vem lá do Mato Grosso do Sul (a senadora Simone Tebet, do MDB)? Será um ex-ministro que se notabilizou pela Lava Jato (o ex-juiz Sérgio Moro, que foi ministro da Justiça de Bolsonaro)? Não está claro ainda quem vai ser. Por isso acho importante fazer esses debates, para que haja uma exposição maior de cada um deles.

Se candidatos alternativos não se viabilizarem, a volta de Lula é melhor do que a reeleição de Bolsonaro?

Não acho, não. Temos que batalhar por uma terceira alternativa. Ambos, Lula e Bolsonaro, seriam uma coisa desastrosa para o País. Vamos até o último minuto.

No livro, o sr. escreve que outra lição de sua participação no Plano Cruzado foi a convicção de que só voltaria ao governo como parte de um movimento político, e não como um tecnocrata subordinado a necessidades eleitorais. Se aplica ao caso do ministro da Economia, Paulo Guedes?

Totalmente. De liberal, Bolsonaro não tem nada. Ele se abraçou ao (ministro Paulo) Guedes por pura conveniência, como se abraçou ao (ex-ministro Sérgio) Moro. E ao (ex-ministro da Saúde Henrique) Mandetta, inicialmente. Mandetta e Moro pediram o chapéu. Guedes está aí, mas totalmente subordinado aos objetivos políticos e eleitorais do Bolsonaro e do Centrão. Ele se desintegrou intelectualmente.

O sr. também escreve que uma lição da participação nas equipes que criaram o Plano Cruzado e o Plano Real é de que uma inflação baixa dependeria de política monetária ativa e ajustes nas contas do governo. A atual aceleração da inflação confirma essa lição?

Há diversos componentes novos. No ano passado, já havia dito que o pós-covid poderia trazer mudanças estruturais muito importantes na economia. Não é que eu já estava prevendo toda essa problemática com as cadeias internacionais de valor, a dificuldade com a entrega de chips, mais a crise energética e essa questão do problema da realocação da mão de obra. O que não esperávamos, apesar da perspectiva de mudança estrutural, é que esses pontos de estrangulamento fossem se manifestar com tanta força tão imediatamente. E ainda teve essa questão da seca, que forçou a produção (de eletricidade) via (usinas) térmicas. Dado o nível de desemprego e da capacidade ociosa, em tempos normais, diríamos que tem espaço para a demanda crescer, mas, face esses pontos de estrangulamento, a demanda tem que ir devagar, enquanto esses pontos são dissolvidos.

É, mas aí tem o nosso componente interno. Primeiro, a administração tanto econômica quanto da pandemia. Especialistas do ramo estão dizendo há tempos que teríamos que ter cuidado melhor da reposição das bacias hídricas (que alimentam os reservatórios das usinas hidrelétricas, principal fonte de eletricidade do País). Levamos muito tempo para conservar água nos reservatórios, face a perspectiva de seca. O governo demorou muito para reagir. Além disso, tem a questão do câmbio. Países semelhantes ao Brasil também tiveram uma desvalorização, mas nada parecido. O Brasil é um ponto fora da curva em termos de desvalorização cambial. E isso só pode ser explicado por conta dessa confusão política que o (presidente Jair) Bolsonaro armou, com ameaça institucional, com desrespeito às regras do jogo. Tudo isso faz os investidores se afastarem. Como o câmbio, agora, felizmente, é flutuante, na hora que quer sair, o investidor sai. O que acontece é que o câmbio se desvaloriza. No fim do ano passado, o pessoal do mercado financeiro estava prevendo câmbio de R$ 4,80 este ano, mas estamos aí com R$ 5,60. Isso se reflete diretamente nos preços de todos os produtos do comércio internacional, tanto pelo lado da importação quanto pelo lado da exportação, fundamentalmente, a comida.

A gestão da pandemia custou do ponto de vista econômico também, além da questão muito mais fundamental do número de mortes desnecessárias. Sem vacinação, a menos que estivéssemos dispostos a matar as pessoas, e as pessoas não estão dispostas a morrer, houve restrição da oferta. E, face ao aumento da demanda, por causa dos estímulos (fiscais, com transferência de renda para famílias e empresas), houve um impacto inflacionário interno.

Falhou a tentativa do governo federal de incentivar as pessoas a saírem às ruas para trabalhar?

Com certeza. Existem estudos empíricos sobre esse assunto, nos Estados Unidos, mostrando que, em Estados onde houve restrições (ao contato social), comparados com Estados vizinhos onde não houve restrições, as pessoas ficaram em casa na mesma proporção. Ninguém foi trabalhar, porque ninguém quer morrer. Só a vacina resolve (a abertura da economia). Estamos acostumados a nos vacinar e temos o SUS (Sistema Único de Saúde). Com todas essas vantagens, a mortandade que o Brasil experimentou só se explica por duas palavras: Jair Bolsonaro.

Com a decisão do Banco Central (BC) de acelerar a alta da taxa básica de juros, a política monetária está está ativa, mas qual será a consequência?

Na hora em que dependemos tão integralmente da política monetária, com pouca ajuda da política fiscal, do ponto de vista de ajustar as expectativas, e também de ajustar o câmbio, a política monetária tem que ser muito mais apertada do que seria de outra forma. Nesse sentido, sabemos já, a inflação cai, as expectativas caem, mas o custo disso é recessivo. Não creio que ano que vem teremos grande crescimento, não. A equipe do Itaú, que é muito boa, já está prevendo retração de 0,5% para o ano que vem.

Acho que 80% do governo. Os outros 20% são desses estrangulamentos, dessas restrições de oferta, que estão dificultando, por exemplo, a indústria automobilística a responder ao aumento da demanda. Fora isso, é uma questão de falta de cuidado com a questão fiscal, que deteriora as expectativas, desvaloriza o câmbio e enfraquece a potência da política monetária.