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É sabido que a existência de governos capazes, confiáveis e efetivos operacionalmente é uma das mais importantes características das experiências bem-sucedidas de crescimento econômico sustentado no longo prazo. O papel das lideranças políticas responsáveis é o de contribuir para reduzir – e não aumentar – os graus de incerteza sobre o futuro. Não através de promessas e discursos contra inimigos do país e do povo, internos ou externos, mas através de exercícios consistentes em diálogos com base em moderação, serenidade, postura e compostura que possam inspirar um mínimo de confiança e cooperação na busca de compartilhados objetivos maiores.
À diferença do poeta de Fernando Pessoa, que chegava a fingir que era dor a dor que deveras sentia, o presidente Lula está convencido de que não são gastos certos gastos que deveras realiza. Não só está convencido, como pretende convencer o público em geral de que muitos dos seus gastos são, na verdade, investimentos no País e no seu futuro. Todos com alta taxa de retorno social, ou compromissos de campanha que devem ser honrados.
A expressão “gasto é vida” é sempre associada a uma frase que Dilma Rousseff deveras pronunciou em famosa entrevista concedida a este jornal no final de 2005, torpedeando como “rudimentar” uma discussão então em andamento na área econômica do governo sobre a tentativa de controle da velocidade de crescimento do gasto público total. Mas fazia apenas cinco meses que Dilma havia chegado a ministra-chefe na Casa Civil da Presidência da República; expressava ali, é preciso supor, opinião não em seu próprio nome apenas, mas em nome do presidente Lula, por ele devidamente autorizada.
Nesse sentido, Lula está sendo coerente com sua postura de que gasto é vida. O fato é que a velocidade do crescimento do gasto público levou a despesa primária do governo central de 11% do PIB, em 1991/1992, para 20% do PIB em 2016; e que o País exibe déficit primário há uma década desde 2014. (Ao que tudo indica, poderá tê-lo também em 2024 e, talvez, 2025/2026.)
Em declaração recente, Lula afirmou: “É necessário saber se precisa efetivamente conter gastos ou se precisa aumentar a arrecadação. Temos de fazer essa discussão”. E acrescentou que seu governo está fazendo uma análise sobre se está havendo gasto exagerado, mas que essa análise está sendo feita (há mais de 20 meses) sem levar em conta “nervosismos do mercado”.
Em artigo de 10 de novembro de 2022 (Folha), o jornalista Bruno Boghossian listou quatro declarações de Lula: “Colocar pobre na universidade não é gasto, é investimento” (9/2019); “A quem interessa o teto de gastos, aos banqueiros?” (6/2021); “Vamos gastar o que for preciso” (3/2022); “Nós precisamos, primeiro, pagar a dívida que temos com o povo pobre” (4/2022). Buscou, então, para elas explicações de cinco pessoas do “entorno” do presidente recém-eleito. Entre as explicações convergentes que ouviu: “Um aperto de despesas, na contramão do discurso de campanha, é um caminho curto para perder sustentação política”; “Lula escolheu um vice de centro-direita e admitiu a possibilidade de ouvir economistas com visões diferentes, mas nunca prometeu uma agenda ‘liberal’”. Um dos aliados assim resumiu o tema: “Não importa o ministro, Lula tomará as decisões na Economia”.
Com efeito, não parece haver dúvida sobre a base fundamental das decisões presidenciais nessa área. Na primeira reunião de sua equipe de governo, Lula pediu que a equipe aposentasse do vocabulário a palavra “gasto”. Afirmou que o governo não deixaria de enfrentar a questão fiscal, mas insistiu em que o gasto social devia ser encarado como investimento, e não como despesa. E acrescentou que “o papel da equipe econômica é dizer que não tem dinheiro; o dos demais ministros é pedir recursos; e o (dele) é o de arbitrar o impasse, descobrindo brechas para arrumar verba”. O que não deixa de estar acontecendo, apesar dos esforços do ministro Fernando Haddad e de sua equipe.
Enquanto uma sociedade dinâmica, complexa, heterogênea e desigual, acreditando pouco em si própria, achar que só é possível realizar “grandes coisas” – como, por exemplo, o desenvolvimento econômico e social – fundamentalmente a partir do gasto público e do aparelhamento do Estado, permanecerão vivos entre nós traços de três fenômenos nefastos de nosso passado: o messianismo salvacionista, o voluntarismo exacerbado e o autoritarismo exercido em nome do povo. Os três incompatíveis com um republicano Estado Democrático de Direito.
Se conseguirmos, como parte de um processo de melhoria da qualidade do debate público informado, reduzir em favor do conteúdo da discussão o peso relativo dos insultos digitais, valorizar mais a serenidade e a prudência-com-propósito como virtudes políticas e aprofundar a discussão sobre sonhar sonhos errados e sobre sua realização “a partir do Estado” ou “a partir do dinamismo da sociedade” (um falso dilema), estaremos contribuindo para continuar mudando, para melhor, um país complexo e difícil como o nosso. Ou, pelo menos, sonhando sonhos certos, o que deveria incluir, seguramente, não ter ilusões sobre as dificuldades em realizá-los.
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