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Edmar Bacha está feliz. No dia em que conversou com a Inteligência Financeira, recebeu a notícia de que o paper que escreveu, estudando o Século IX, foi aceito e será publicado pelo Journal of Iberian and Latin American Economic History. Essa empolgação talvez seja o exemplo mais claro, e certamente o mais recente, de como é a vida de uma das figuras centrais por trás da criação do Plano Real, trinta anos antes. Bacha parece sempre ter andado seus caminhos pela vida com um pé na academia. E outro na prática. Às vezes os dois fincaram na academia, às vezes os dois ficaram na prática.
Quem o chamou de economista escritor foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
E não em qualquer circunstância, mas no discurso de recepção de Bacha à Academia Brasileira de Letras, para a qual foi aceito em 3 de novembro de 2016. O economista ganhou o Prêmio Jabuti para Belinda 2.0, eleito o melhor livro de economia em 2012. E tirou segundo lugar com O Futuro da Indústria no Brasil na mesma categoria.
Edmar Bacha conta ao todo 31 prêmios, honrarias e medalhas, escreveu 13 livros autorais e organizou outras 20 publicações. E no meio dessa extensa biografia, participou da concepção do Plano Real.
O economista se tornou economista após rechaçar de imediato três das duas carreiras possíveis no Brasil da década de 1960. Medicina e Direito não eram para ele. Tentou Engenharia, mas levou pau. Surgiu então Economia, carreira que não era bem carreira à época e mais ligada à contabilidade, veja você.
Na década de 1970 já era professor, dava aulas na Universidade de Brasília. Naquela época também assessorava os senadores do PMDB, o partido político da oposição consentida pelo regime militar. A oposição ‘possível’ pela ditadura.
É em 1974 que ele começa a ganhar projeção pública. Por meio de uma fábula famosa até hoje. O texto se chamava o Rei da Belinda. Bacha leva o leitor para uma ilha – entre o oriente e o ocidente – colonizada pelos belgas e com trabalhadores hindus (daí o nome).
Então à época, o rei havia sido informado que o PIB do local crescera 10%. Mas o rei, como um famoso ditador, sabia que a economia ia bem, mas o povo ia mal. Por isso, ele pede para o economista recalcular o PIB e o especialista opta para fazer o trabalho com base em uma amostra da renda de algumas pessoas do reino e não sob o ponto de vista da produção.
O economista então nota que entre os representantes da mostra apenas um era rico. Era o Antônio, ministro da Fazenda do reino. Os demais, como o Fernando, o Celso e a Conceição eram pobres. Descobre ainda, o visitante, que o PIB crescia em acordo com a bonança monetária de Antônio. O rei então demite o ministro e fábula se encerra concluindo que já não se fazem reis como antigamente.
Antônio não era somente Antônio. Era Antônio Delfim Netto, o poderoso ministro econômico dos militares. Fernando era Fernando Henrique Cardoso.
Conclusão: o semanário Opinião publicou o artigo, a ditadura não gostou, mas não fez nada. De acordo com Bacha porque ele era o primeiro PhD de Economia do país.
Então a vida andou e a academia encontrou a realidade.
Bacha assessorou Mário Covas na campanha presidencial de 1989, em que Fernando Collor de Mello se tornou presidente. Mas antes do Caçador de Marajás chegar à Brasília, Bacha se embrenhou no Plano Cruzado – uma das muitas tentativas fracassadas de domar a inflação.
Era 1986. Bacha presidia o IBGE e, portanto, era o responsável por calcular o tamanho do estrago que a alta de preços causava no dia a dia do brasileiro. Tinha outras funções. O Plano Cruzado entraria em vigor no dia 1º de março e era preciso que a inflação medida até 28 de fevereiro parasse naquela data e que se começasse a contar uma nova inflação a partir de março. Uma nova metodologia, para novos tempos.
Além de implementar um novo índice de preços, Bacha convenceu os demais institutos que mediam a inflação a fazer o mesmo.
E se ocupava, nos dias iniciais do plano, de criar um sistema de comunicação direta com o público para explicar o que acontecia: havia uma série de tabelas de conversão. De salários, de aluguel, de mensalidades escolares, de ativos financeiros…
Assim, o Plano Cruzado era isso basicamente. Uma grande decisão de congelar preços e salários.
Não deu certo. Nem o plano, nem a carreira de Bacha no governo.
“Eu me coloquei, na verdade, numa situação impossível porque era ao mesmo tempo membro da equipe econômica e o juiz do jogo porque era eu no IBGE que publicava os índices de preços que diziam se o plano estava indo bem ou não. E foi em função do conflito dessa posição impossível que eu acabei saindo do governo”.
Mas antes da saída havia um banheiro no meio do caminho. Mais precisamente em Carajás, no Pará.
José Sarney havia levado seu staff para visitar a localidade. Parou num banheiro, o mesmo em que estava Edmar Bacha e o então ministro do Planejamento João Sayad. De onde estava, o presidente dos brasileiros e brasileiras, bordão com o qual sempre iniciava seus discursos públicos, ouviu um comentário definitivo de Bacha a Sayad. O plano se estrepara.
Esfacelara-se pois não haveria plano econômico que desse certo ao combinar congelamento de preços com conversão de salários em um patamar muito favorável. Os produtos desapareceram das prateleiras com o aumento da demanda.
Era o fim do plano que tinha que dar certo.
Edmar Bacha dava aulas na PUC do Rio de Janeiro quando recebeu um telefonema.
Do outro lado da linha estava Fernando Henrique Cardoso, então ministro das Relações Exteriores que o presidente da época, Itamar Franco, acabara de transformar em ministro da Fazenda.
Assim mesmo, contra a vontade de FHC.
Então, o ex-novo ministro queria que Bacha viajasse no dia seguinte para Brasília.
Nos sete meses anteriores Itamar contratara e demitira três ministros da pasta.
Bacha foi e se integrou a uma equipe que nas suas palavras era um pequeno Exército de Brancaleone. Uma alusão à comédia italiana que retrata um grupo de cavaleiros medievais que lutam contra tudo e todos.
Bacha, como assessor do ministro, fazia parte do grupo que contava com Winston Fritsch, então secretário de política econômica. Gustavo Franco era o subsecretario. E parava por aí. Pilotando o Banco Central estava e ficou Paulo Cesar Ximenes.
A ideia do grupo era fazer um plano para arrumar a casa. Era isso. Deixar tudo em ordem para o novo presidente que seria eleito no ano seguinte assumir o leme da economia como bem desejasse. Pretendia-se terminar a renegociação da dívida externa, aproveitar também para renegociar a dívida dos estados e municípios, aumentar impostos e acertar as contas do Banco Central.
E aí o presidente do Banco Central caiu.
Assim era o plano e assim foi. Até que Itamar Franco, sem consultar seu ministro da Fazenda, demitiu Ximenes do Banco Central. Bacha achou que era o fim, afinal, diante dessa situação, não haveria clima para FHC continuar.
Então, Fernando Henrique convocou uma reunião para o dia seguinte à demissão de Ximenes, um sábado. Pela manhã. Bacha chegou cedo, sentou na sala do apartamento em Brasília.
“Peguei um papelzinho azul e rascunhei o que seria o plano sobre o qual eu estava elaborando durante esse período. Mas já que ali, agora, estávamos indo embora, eu acho que eu poderia contar para o ministro como seria o plano caso a gente tivesse a equipe e fosse ficar no governo. E lá pelas tantas, eu comuniquei o Fernando Henrique”.
Bacha triturou o papelzinho azul com medo de vazamento à imprensa.
Mas Fernando Henrique ficou entusiasmado com a ideia. Em linhas gerais, previa-se primeiro um ajuste fiscal, depois, a unificação da indexação por meio da UFIR, a Unidade de Referência Fiscal da época (qualquer semelhança com a famosa URV de tempos depois não é mera coincidência). Então, chegaria a etapa do que Bacha chamou de “ufirizar” a economia.
Com tudo “ufirizado”, se transformaria a UFIR na moeda. E a UFIR valeria um dólar. “Então ministro”, lembra Edmar, “não tem erro. Vamos fazer um ajuste fiscal na entrada, fazer a eliminação da inércia inflacionária através da unificação da indexação no meio do caminho e vamos ancorar no dólar na saída”.
Estava criada a fábula mais verdadeira da história do Brasil, a fábula do Plano Real.
É com essas informações na cabeça que Fernando Henrique vai para uma conversa com Itamar Franco. Não se sabe detalhes do encontro. Para Bacha, a conversa deveria ter sido gravada. Mas não foi. Fato é que nas palavras do economista, a partir de então, Fernando Henrique de fato assumiu a Fazenda com “características de primeiro-ministro do governo Itamar Franco”.
FHC chama então para uma conversa Pedro Malan e André Lara Resende. O primeiro, negociador da dívida externa do Brasil nos Estados Unidos, se torna presidente do Banco Central. O segundo assume seu posto. Daí a uma semana, Pérsio Arida chega à presidência do BNDES .
Agora havia uma equipe, força política e o rascunho do que se tornaria o Plano Real pouco tempo depois.
É dessa época uma segunda conversa, desta vez entre FHC, Itamar e o próprio Bacha. Convocado a explicar o Plano Real ao presidente, o economista usa outra fábula, a do reino de Lisarb, onde tudo funcionava de trás para frente.
Lá pelas tantas, a fábula conta a história de um árbitro de futebol que em vez de apitar o jogo apita para a plateia presente sentar-se durante uma partida que chamou de Inflaflunção. Quer organizar a coisa. Ele também explicou a Itamar que aquele país era tão Belindia que havia duas moedas. Uma de papel que derretia no bolso do pobre e uma em depósito que se valorizava todos os dias nas contas dos ricos.
“Nós íamos fazer uma só moeda forte e estável para o pobre e para o rico, foi isso que eu disse para o presidente Itamar Franco, que ficou muito feliz com essas alegorias”.
Volta-se, tanto tempo depois, para a cerimônia de Edmar Bacha na Academia Brasileira de Letras e o discurso de Fernando Henrique, que o chama no título de economista escritor. Será que ele concorda? “Ah sim”, responde sorrindo. “Aquilo ali foi uma gentileza dele com o fato de eu escrever todas essas fábulas além de ser economista”.
Realmente, não se fazem mais economistas como antigamente.
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