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“O câmbio foi feito por Deus para humilhar os economistas. Ninguém sabe onde vai dar.” O economista e escritor Edmar Lisboa Bacha é frequentemente citado como autor dessa frase. Embora a tenha utilizado diversas vezes e nunca encontrado outra pessoa que reivindique a autoria, afirma duvidar da sua originalidade.
A explicação para isso vem de um episódio envolvendo o escritor Millôr Fernandes, narrado em uma das passagens que compõe “No país dos contrastes: memórias da infância ao Plano Real”, livro autobiográfico escrito durante a pandemia e lançado em outubro deste ano.
Em conversa com a Folha, Bacha afirma que a obra surgiu a partir do convite da ABL (Academia Brasileira de Letras), da qual o vencedor de dois prêmios Jabuti faz parte desde 2017, para que escrevesse um texto em homenagem ao centenário de nascimento de Celso Furtado. Os dois conviveram durante a passagem de ambos pela Universidade de Yale (EUA) em 1964.
A partir da leitura das cartas que escreveu para sua mãe na época, surgiu a ideia de elaborar outras crônicas sobre o período. Juntas, formam o maior capítulo do livro, “Crônicas de Yale”.
Para elaborar um livro que fosse além dessas quase 70 páginas, o autor decidiu reconstituir as memórias familiares e da infância, apresentadas de maneira resumida no início do livro.
Para o final, guardou o que chama de aquilo “que realmente interessa para o público em geral”, as duas passagens pelo governo. A primeira, no comando do IBGE durante o Plano Cruzado. A segunda, como assessor do Ministério da Fazenda e presidente do BNDES na elaboração do Plano Real e no governo FHC. O ex-presidente assina a apresentação do livro.
Entre os capítulos sobre Yale e o Cruzado, Bacha narra ainda a aproximação com as alas do MDB que fundariam o PSDB após a redemocratização. E também sobre como a relação com a oposição ao governo lhe renderia alguns problemas com a ditadura. Entre eles, uma visita ao então presidente da Arena, Filinto Müller.
Foi nessa época que elaborou a fábula sobre o rei da Belíndia, crítica à política econômica da ditadura, tema que já foi explorado em outros livros do autor —”O Economista e o Rei da Belíndia: Uma Fábula para Tecnocratas”, publicada em 1974. Com sua desigualdade, o Brasil seria uma combinação de Bélgica com Índia.
Há espaço também para um pouco de teoria econômica. Conforme relata no livro, chegou a ser classificado pelo serviço de informações da ditadura militar como “linha auxiliar” do Partido Comunista Brasileiro. Porém, se define como um neokeynesiano, que nas décadas de 1960 e 1970 manteve um flerte com o neoestruturalismo.
Na época, acreditava que empresas estatais e protecionismo seriam os caminhos para o desenvolvimento do país. Mudaria drasticamente de opinião após as duas passagens pelo governo.
“Nos anos 1990, emerge esse novo keynesianismo, a partir de uma constatação de que, obviamente, esse libertarianismo da Escola de Chicago não estava dando respostas pertinentes às crises do capitalismo contemporâneo”, diz Bacha à Folha.
“Tanto a experiência prática quanto essa evolução teórica internacional me trouxeram ao que sou hoje. Fiquei muito mais liberal do ponto de vista da análise econômica, embora sempre mantendo uma perspectiva muito forte nessa questão social. Nunca abandonei a ideia da Belíndia.”
Sobre a primeira experiência no governo, fala de uma época em que os opositores chegavam ao poder, após o fim dos regimes de exceção na América Latina. No governo José Sarney, é convidado para chefiar o IBGE.
Seria responsável por desenvolver a metodologia de cálculo para que fosse possível separar a inflação em cruzeiros da inflação na nova moeda. Isso em meio a pressões que via como tentativas de maquiar os índices de preços, que o levaram a deixar o cargo e lhe renderam o apelido de “a freirinha do IBGE”.
Da época também guardaria uma planilha de indicações políticas, algumas citadas no livro.
Convocado pelo PSDB, partido ao qual aderiu logo na sua fundação, a integrar a equipe do Plano Real, Bacha retorna ao governo. O capítulo sobre sua participação traz logo no início o relator da reunião que poderia resultar no desembarque de FHC e sua equipe do governo Itamar Franco.
É nesse dia que surge o famoso “papelzinho azul”, primeiro rascunho do plano de estabilização, inspirado nas ideias de diversos integrantes do governo, com os quais o autor faz questão de dividir a autoria do Real.
O final feliz para o plano, no entanto, se mostra incompleto, pois o governo rejeita enviar ao Congresso um pacote de reformas econômicas. Eram 63 emendas que poderiam ser mais facilmente aprovadas na revisão constitucional de 1993. Entre elas, reformas que estão em debate até os dias de hoje, como a tributária e a administrativa.
O livro tem espaço ainda para polêmicas com os ex-ministros Roberto Campos e Delfim Netto e duas passagens sobre a relação com a economista Maria da Conceição Tavares, durante a ditadura e no governo Itamar. Além do relato da experiência política, desde a época de faculdade até as negociações sobre o Real, quando elaborou uma coleção de frases que chama de “manual de negociação parlamentar”.
Questionado sobre os riscos atuais ao legado do Plano Real, afirma que os políticos aprenderam que quem não controla a inflação perde eleição ou é impedido. E que hoje há um Banco Central capaz de fazer esse trabalho, mas que o custo será maior que o necessário.
“Com essas duas condições adversas, sem o componente fiscal e com essa perturbação permanente que Bolsonaro faz, essa crise institucional, o efeito de uma política dura necessária para controlar a inflação é recessivo”, afirma.
“Não era esse o nosso legado. Nossa proposta era controlar a inflação com crescimento.”
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