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A maior garantia para uma democracia é o sucesso dela, avalia Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central durante o governo Fernando Henrique Cardoso e que, ao lado de economistas que formularam o Plano Real, declarou voto em Lula durante a corrida eleitoral. Agora, Arminio alerta para o que enxerga como um risco de descontrole nas contas públicas e à estabilidade econômica na PEC da Transição, ecoado também nas declarações recentes do presidente eleito.
Arminio afirma que o mercado financeiro não é um cassino, que a Bolsa é um canal importante de capital para a economia crescer e que a falta de horizonte fiscal pune principalmente os mais pobres. E propõe nova âncora fiscal que leve em conta não só os gastos do governo, como também a dívida pública.
O presidente eleito Lula deu declarações que causaram preocupação no meio econômico. Ele ironizou “a tal responsabilidade fiscal” e, na quinta-feira, disse que “vai aumentar o dólar, vai cair a Bolsa, paciência”. Por que é importante ter estabilidade financeira? Em sua opinião, Lula minimiza isso?
Não existe um único caso de uma economia que tenha se desenvolvido plenamente sem ser através do mercado. Mesmo a China evoluiu nessa direção. O mercado é um mecanismo de coordenação, sinalização, alocação de capital e também um ambiente pra poupar. Pressupõe bom ambiente regulatório e que inspire confiança. Isso coloca na berlinda essas declarações recentes (do Lula).
Isso (o mercado) não é um cassino, onde as pessoas entram e umas ficam ganhando das outras. Não é o que os economistas chamam de um jogo de soma zero. É um jogo muito produtivo. Se for bem estruturado, gera ganhos sociais importantes e é a única forma de se fazer uma economia funcionar bem. Um exemplo: a Bolsa traz capital para a economia real de uma maneira disciplinada. Não se conhece um mecanismo melhor.
Tome-se um caso brasileiro recente: o balanço do BNDES encolheu muito nesses últimos anos, mas foi mais do que compensado pelo mercado de capitais. No caso do câmbio, é a mesma coisa: se conecta direto com a economia real. O Brasil sofreu muito quando tinha o câmbio fixo ou administrado. Volta e meia havia uma crise de balanço de pagamentos (nas trocas do país com o exterior).
O câmbio flutuante ajudou bastante nesse sentido. Por fim, outra questão é a taxa de juros. O Brasil já fez várias experiências voluntaristas nessa área, sempre com resultados desastrosos, e precisa construir um espaço de confiança para ter um juro mais normal. Isso conversa como a responsabilidade fiscal.
Em carta endereçada a Lula na última quinta-feira, escrita pelo senhor, Pedro Malan (ex-ministro da Fazenda) e Edmar Bacha, o impacto nos juros é mencionado.
Na maioria dos países, os maiores devedores são os governos. E, se os governos estiverem com a casa em ordem, em geral as taxas de juros são mais baixas. O Brasil precisa arrumar a casa de uma maneira convincente e sustentável. Mas, no momento, tudo indica que essa ideia está sendo ignorada. Infelizmente, acho que estamos trilhando um caminho perigoso. O Brasil é um país muito endividado.
Para um país que paga 6% na sua dívida, isso é um enorme problema. É um elemento de um potencial círculo vicioso que precisa ser interrompido com certo sangue frio, muita disciplina, apostando no futuro.
Olhando agora essa discussão no Congresso (sobre a PEC da Transição), tenho a impressão de que o governo está querendo ganhar uma eleição daqui a seis meses, que não existe, quando é preciso pensar que a eleição que tem que ser ganha é daqui a quatro anos. Não dá para ganhar de maneira errada, com ações populistas.
O senhor declarou voto em Lula, assim como Edmar Bacha (ex-presidente do BNDES), Pedro Malan (ex-ministro da Fazenda) e Pérsio Arida (um dos pais do Plano Real e hoje na equipe de transição do futuro governo). Na ocasião, afirmou que esperava responsabilidade fiscal do presidente eleito. Como vê a situação agora?
Na realidade, o sentido daquela frase curta, quando falamos que esperávamos responsabilidade fiscal, era de expectativa no sentido de esperança. Tínhamos esperança de que as lições do período em que o PT esteve no poder tivessem sido incorporadas, mas hoje em dia temo que não tenham sido. Naquele momento em que divulgamos nosso voto, nos preocupava era a nossa democracia. Foi essa a razão do nosso voto.
Essa é a questão. E segue sendo uma questão na medida em que a maior garantia para a democracia é o sucesso dela. Todas as grandes nações onde se tem qualidade de vida, não só material, mas institucional, são democracias. As outras não chegaram lá. A União Soviética quebrou, a China ainda é muito cedo para dizer, mas eles já estão começando a enfrentar problemas. Para nós, é algo da maior importância.
Inclusive, falo em nome dos colegas, como o Pérsio, que no momento não está podendo falar, pois está na equipe de transição. Nossa crítica, nossos alertas, são construtivos. Queremos ver as coisas darem certo. As nações funcionam em um contexto democrático. Por exemplo: você gostaria de ter um parente seu preso arbitrariamente, sem ter direito a um julgamento isento? Você gostaria de morar em um país assim? É muita coisa que está em jogo.
A solidez de uma democracia também depende do sucesso que ela entrega em termos de qualidade de vida pra sua população? É importante uma economia estável para que a democracia siga fortalecida?
Uma economia tem sucesso quando consegue, ao longo do tempo, ir melhorando a qualidade de vida das pessoas, de forma percebida como sendo razoável e justa, onde as pessoas têm oportunidades e não importa tanto o código postal onde você apareceu no mundo. Esse grande tema está colocado para nós e é uma via de mão dupla.
Assim como o mercado tem defeitos, a democracia também tem os seus. Mas, nos dois casos, não existe sistema melhor. E que têm que ser permanentemente aperfeiçoados. É preciso que haja, portanto, mecanismos de reflexão e de correção de rumos. Esses assuntos interagem. Há literatura sobre o tema. Não estou inventando nada.
O aumento de impostos pode ser uma forma de o governo evitar que o país fique ainda mais endividado?
Mesmo sem essa expansão fiscal, já não é de hoje que se faz necessário um ajuste. E tenho defendido que o ajuste fiscal vai além do necessário para começar a reduzir o endividamento público. É uma janela para um repensar das prioridades. Isso está embutido no discurso que o presidente eleito fez lá no Egito agora, só que ele fez de um jeito, a meu ver, equivocado. Ele disse que estamos tirando dinheiro da saúde, da educação, da cultura, da ciência para pagar juros.
Por trás do que ele disse, havia uma crítica explícita à responsabilidade fiscal. A pergunta maior é, se o Brasil já tem uma carga tributária tão alta para um país de renda média, por que é que essas áreas não estão atendidas?
Aí fica essa história que a gente conhece bem há décadas: o gasto e a carga tributária vão aumentando e chega um ponto em que o sistema começa a falhar, existe uma exaustão. A carga tributária elevada, mal desenhada, tem um impacto enormemente negativo na produtividade, dos maiores.
Há espaço para aumentar impostos?
Sim. Existem aspectos do Imposto de Renda que precisam ser corrigidos, não apenas por razões fiscais, mas porque eles são injustos. São bem conhecidos, como os regimes especiais. E eu me refiro aqui ao Simples e ao lucro presumido. Há benesses enormes que deveriam ser questionadas.
Uma delas, que é um tema polêmico e aparece sempre na discussão, é a Zona Franca; outra é a tributação da renda do capital. Há brechas para aumentar imposto, mas esse tipo de proposta, em geral, sofre muita resistência. Há grupos poderosos, como o setor de serviços, que representa cerca de 70% do PIB, e se opõe.
Mas não dá para esse setor, o maior, ser de longe o menos tributado. São questões que vão ter que ser encaradas. Há espaço, mas não muito, mas casa com uma visão mais progressista que ganhou as eleições.
E como conciliar a responsabilidade fiscal com a urgência de lidar com a questão social no Brasil?
É uma questão que precisa ser discutida dentro do Orçamento e com transparência. Os mais pobres, na verdade, não são tão bem representados no Congresso, mesmo com governos de centro, ou de centro-esquerda. O resultado que se manifesta, por exemplo, no desenho do sistema tributário, é muito regressivo.
Pensando do lado da despesa, temos dois grandes blocos: a folha de pagamentos federal, onde já se vão dois anos de congelamento, não tem muito espaço para economias. O gasto com a Previdência é muito grande e será preciso outra reforma, pois muita coisa ficou de fora da última reforma, mas não é claro que isso vá ser feito a curto prazo.
Há que se comparar a chegada de Lula em 2003 e hoje. Em 2002, Lula chegou com um superávit primário (receitas menos despesas do governo, sem contar o pagamento de juros) de 3,5% do PIB, e achou por bem fazer mais algum ajuste. As coisas deram certo e só bem depois descarrilharam. Agora, ele vai pegar um déficit primário em torno de 2% do PIB, com uma dívida maior e continuará com os juros altos, como era lá atrás.
O mercado financeiro reagiu mal às declarações de Lula, aos R$ 200 bilhões fora do teto de gastos na PEC da Transição, mas o governo Bolsonaro fez a PEC dos Precatórios, furou o teto no período eleitoral de maneira explícita, e não vimos essa reação na Bolsa e no dólar. Há preconceito ideológico por parte do mercado?
Pode haver, sim, algum preconceito ideológico, mas não é o caso. Sobre a PEC dos Precatórios (que adiou o pagamento de dívidas judiciais da União), me surpreendeu o mercado ter tido essa reação, porque aquilo ali foi um calote. Só porque veio de uma decisão judicial, não quer dizer que não seja dívida.
Em outros casos, os números fiscais vinham melhorando. Pode ser que haja algum preconceito, mas é bom tomar cuidado para não ser injusto com o mercado. Quando se escuta discurso após discurso explicitamente questionando a ideia de responsabilidade fiscal, e quando na equipe de transição se escala uma seleção nacional da heterodoxia e do fracasso, com uma exceção (na equipe), eu não acusaria tanto o mercado.
Na proposta para uma nova âncora fiscal que o senhor formulou com o economista Marcos Mendes (um dos pais do teto de gastos), mira-se uma meta de dez anos para reduzir a dívida pública a 65% do PIB. Como seria isso?
Esse percentual é arbitrário. Foi uma forma de demonstrar a preocupação que temos com o tamanho da dívida e a importância de se inverter a tendência. Graças à inflação e à alta das commodities, a dívida caiu, mas isso não é recorrente. A dívida vai voltar a crescer e é preciso colocá-la em uma trajetória de queda.
Estamos propondo trazer de volta as duas âncoras que nós já tivemos, uma voltada para o controle da dívida, pois exigia geração de superávits primários; e a mais recente, que é o teto de gastos, ou seja, um limite ao tamanho do Estado. Ou seja, não dá para ficar crescendo em aberto nem a dívida, nem o gasto.
Não defendo o Estado mínimo de jeito nenhum, mas nosso Estado não é pequeno. E como vamos fazer para o Estado crescer mais, sem estourar a dívida e sem entrar em crise macroeconômica? Uma outra novidade seria a adoção dos chamados estabilizadores automáticos.
O que esperar das novas âncoras?
Trariam mais segurança, um fator de redução de incerteza enorme. O Brasil se mostrou useiro e vezeiro na arte de desrespeitar a regras fiscais. Elas tinham seus defeitos? Tinham. Essas duas juntas seriam muito poderosas, mas é preciso deixá-las funcionando por um tempo, pois em minha opinião dariam muito certo e aí tenderiam a se perenizar.
Por quê?
É como aconteceu com a população com a queda da inflação. O povo gostou, porque sabia que se dava muito mal, certamente os mais pobres. Nosso país é um país de renda média, mas muito desigual. Tem muita gente com uma renda bem baixa. E são os que mais sofrem em momentos de instabilidade e de falta de horizonte fiscal. Sofrem com a inflação e com o desemprego.
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