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O ex-governador Paulo Hartung deixou o Palácio Anchieta em 1º de janeiro de 2019. Desde então, está fora da política partidária, não está filiado a partido algum. Por outro lado, segue ativo no debate público, fundamentalmente o nacional. Ele é um dos 29 entrevistados no livro “A Arte da Política Econômica”, produzido pelo Instituto de Estudos de Política Econômica (Iepe) da Casa das Garças. Contribuíram com o trabalho nomes como Pedro Malan, Edmar Bacha, Mailson da Nóbrega, Persio Arida e Elena Landau. A intenção é contar histórias, não apenas as vencedoras, da economia e, consequentemente, da política brasileira da redemocratização para cá.
“O livro é muito importante porque ele congrega depoimentos sobre mudanças que foram produzindo resultados no país. Se você ler o livro, verá a vitória que foi o Plano Real. Como é que vencemos a inflação no Brasil. Foi uma grande vitória”.
Hartung, em mais de uma hora de entrevista, fala também, é claro, dos desafios atuais do país. “Se eu tivesse que fazer um Plano Real, seria no campo educacional. Dar uma casa para uma pessoa que não tem teto é importante. Conseguir um emprego para uma pessoa que está desempregada é importante. Mas nada se compara a dar acesso ao conhecimento. Com conhecimento essa pessoa terá emprego, vai ter uma casa e vai ajudar o país a desenvolver seu enorme potencial”.
O ex-governador preside, desde março de 2019, a Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), associação que reúne toda a cadeia produtiva do setor de árvores plantadas. “Toda vez que estou aí no Estado muita gente vem me perguntar onde estou, o que estou fazendo. Estou na atividade privada, moro em São Paulo desde que saí do governo do Espírito Santo. Importante falar isso, muita gente não sabe e ainda me pergunta”.
Quase sempre falamos muito dos problemas e damos menos atenção ao que deu certo. Da redemocratização para cá, sob os aspectos econômicos e sociais, quais foram nossas grandes conquistas?
O livro é muito importante porque ele congrega depoimentos sobre mudanças que foram produzindo resultados no país. Vou dar um exemplo: lá atrás, anos 80, quando acabaram com a conta-movimento do Banco do Brasil (o BC era obrigado a compensar diariamente os passivos do Banco do Brasil, que continuava ofertando crédito, na prática, a moeda era emitida sem a autorização do BC). Outro exemplo: a Secretaria do Tesouro Nacional não existia. Me coube fazer um depoimento sobre a questão subnacional, como organizar governos estaduais e prefeituras. Se você ler o livro, verá a vitória que foi o Plano Real. Como é que vencemos a inflação no Brasil. Foi uma grande vitória. A inflação penaliza toda a sociedade, atrapalha o desenvolvimento econômico do país, mas quem paga o maior preço na inflação são os pobres. Quando você estabiliza a moeda, o maior ganho foi na família. Se você quer um exemplo robusto do que está no livro, este, a vitória em cima da hiperinflação, é um belo exemplo. O outro exemplo é em cima do podcast que foi feito comigo, contando a nossa história capixaba. Um Estado que passou mais de uma década desarrumado, com as contas desorganizadas, não pagava os seus funcionários públicos, não pagava os seus fornecedores, com uma teia criminosa por dentro da máquina pública… Como é que esse Estado levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima? Tudo isso está lá. O líder é essencial, mas a participação da sociedade civil é decisiva.
Apesar dos avanços, não conseguimos crescer de maneira satisfatória e sustentada desde o início dos anos 80 e a desigualdade social segue muito profunda. Onde erramos?
A sua pergunta é muito ampla. Nós estamos melhor do que estivemos no passado recente. Isso é importante registrar. Tem coisas que andaram para frente e tem coisas que ainda vão andar. Há 50 anos, éramos importadores de alimentos. Hoje, nós produzimos alimentos para 10% da população planetária. Não é uma história simples, é uma vitória espetacular. Fruto de um trabalho que tem elementos muito positivos. Você tem ciência aplicada no desenvolvimento das terras do Cerrado. É todo um trabalho de ciência e tecnologia. Pesquisa pública, com Embrapa, e muita pesquisa privada. Isso possibilitou nosso desenvolvimento e evoluímos de maneira espetacular. Além disso, o que o agro fez? Pegou avião para arranjar proteção para o negócio deles em Brasília? Não. Pegou avião para conquistar mercados no mundo e continua fazendo isso. O agronegócio brasileiro se abriu para o mundo. Montou uma plataforma e compete na Ásia, compete na Europa, compete no Canadá, nos Estados Unidos… É uma história de sucesso construída nos últimos 50 anos. Vamos olhar o outro lado: a indústria. O que aconteceu nesses últimos anos com a indústria? Estamos vivendo um processo de desindustrialização precoce e acelerado no país. Para onde a indústria pegou avião? Para ir a Brasília pedir proteção, subsídios e assim por diante. Nós fizemos a reforma da previdência, a França tentou fazer e não conseguiu. Conseguimos fazer, recentemente, uma reforma trabalhista, mas ainda não avançamos no nosso sistema tributário. É uma bola de ferro amarrada no pé da economia brasileira. Outra coisa é o custo da máquina pública no Brasil, 30% de tudo o que nós produzimos vai para financiar o setor público. O setor público brasileiro está organizado como era há 40 anos. O mundo mudou, a vida mudou e a estrutura pública está parada no tempo. Queria falar de uma outra questão que atrapalha o nosso desenvolvimento: a educação básica do país. Aumentamos o dinheiro para a educação básica do país nos últimos anos, mas a qualidade de aprendizagem não melhorou. É um outro desafio. Aí você fala: “e a infraestrutura do país? Como é que faz com isso?”. Nós já aprendemos e sabemos que não vai ser resolvido com o orçamento da União. Virá com atração de dinheiro privado, nacional e internacional. Para isso precisamos de boas agências reguladoras, regras bem definidas, segurança jurídica… Se a gente tiver isso, a gente atrai capital e resolve os problemas dos nossos aeroportos, da nossa energia, do nosso 5G e assim por diante. Eu acho que falta, muitas vezes, atitude de liderança responsável para levar o país para o caminho certo, para superarmos o que tanto nos incomoda: um país com essa riqueza tendo uma distribuição de renda vergonhosa, exportando alimento e vendo irmãos passando fome.
O agro e a indústria
O senhor falou de uma reforma do setor público, mas isso não está na agenda do governo Lula, ao contrário da tributária. O senhor já foi prefeito, parlamentar e governador, sabe que trata-se de uma reforma que toca em muitos interesses, incentivos fiscais, por exemplo. Estamos no caminho certo?
A primeira coisa é a implantação do Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA). Temos dois projetos no Congresso Nacional já com ideias bem trabalhadas. Começaria migrando os impostos sobre o consumo para um imposto sobre valor adicionado. Se olharmos para os países que deram certo no mundo, todos implantaram o IVA. Não vamos inventar a roda, vamos pegar a roda que já existe e botar para rodar aqui. O ICMS (o principal tributo dos estados) teve um papel importante lá atrás, ainda no regime militar, na organização do país. Foi um avanço naquele momento, mas já cumpriu a sua missão e já perdeu a sua força. Qualquer administrador que conheça realmente onde está sentado, muitos não conhecem, sabe que o ICMS perdeu força, está pendurado em combustíveis, lubrificantes e energia elétrica. Tem que substituir. Tem oposição? Claro. Estados e municípios normalmente se opõem, mas não estão corretos. O setor de serviços, que paga menos que o industrial, também. O agro também, porque tem uma preocupação de taxação de exportação, como fizeram agora com o óleo cru, o que considero um baita erro. Como é que faz para remover a oposição? Regra de transição. Não precisa transitar da realidade atual para a nova do dia para a noite. Pode usar dois anos, três anos, quatro anos. Sobre a reforma administrativa, como você disse, o governo atual dificilmente vai abraçar uma reforma do RH do setor público. Pelos seus laços com as corporações do serviço público. As corporações normalmente não falam aquilo que pensam os bons os funcionários públicos, mas é um outro capítulo, não vou entrar nessa polêmica. Eu acho que o governo atual pode liderar uma reforma tributária. Temos condições e há um acúmulo de discussão. Terá um impacto muito grande, um impacto econômico espetacular porque moderniza o nosso país.
Aqui no Espírito Santo existe uma preocupação com algumas propostas dentro da reforma tributária, entre elas a cobrança do imposto no destino. Somos um Estado que não tem um grande mercado consumidor, poderíamos perder arrecadação, além disso, alguns incentivos perderiam potência. Como o senhor vê essa situação?
É um assunto resolvido. Havia muito debate sobre incentivos fiscais e guerra fiscal. Isso foi parar lá no Supremo Tribunal Federal, mobilizou governadores, secretários de Fazenda, eu participei intensamente de todo esse debate. Nós conseguimos criar uma regra de transição dos incentivos fiscais. Está em lei, convalidamos os incentivos fiscais. Vejo, de vez em quando, algumas pessoas debatendo isso, mas tudo está convalidado por norma. Norma do Congresso Nacional, sancionada pelo presidente da República e aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Já temos a regra de transição estabelecida, o acordo sobre os incentivos fiscais já foi feito no Brasil. Não tem um fato novo, tem um fato consolidado. Quando acertar as regras de transição do IVA, haverá um encaixe. Com essa realidade eu acho que o dinamismo da economia capixaba é enorme. Tivemos a sorte, Deus nos deu esse ciclo de petróleo e gás. Precisamos alocar esse recurso na nossa base econômica para estarmos bem quando o ciclo acabar. Temos um potencial logístico espetacular. O Espírito Santo tem muita coisa já andando e muito ainda para desenvolver. Agora, se a gente ficar pendurado em um modelo fracassado de ICMS… Isso não dá camisa a ninguém. Isso tira a camisa do próprio Brasil e nós somos um país, né?
O
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vai apresentar, nos próximos dias, uma proposta para reformar as regras fiscais do país. A esperança é de que o projeto ancore as expectativas e a economia ande. O senhor é um defensor da regra atual, que é o teto de gastos…
Com o teto dos gastos conseguimos duas coisas importantes: inflação baixa e juros baixos. Estamos falando do interesse de todos, mas principalmente dos brasileiros pobres. Volto a dizer, a inflação penaliza, principalmente, os pobres. O teto dos gastos controlou a inflação. Com a inflação controlada, conseguimos chegar a uma Selic de 2% (ao ano). Tem muita gente que questiona esses 2%, teria descido demais. Não vou entrar no mérito, mas o fato é que nunca convivemos, na nossa história econômica, com juros tão baixos. O teto é um mecanismo de controle dos gastos públicos. Segunda coisa importante que nós não falamos aqui, mas entra na sua pergunta: o mundo tá meio virado. Estados Unidos e China estão vivendo um conflito, isso afeta a economia internacional; ainda estamos convivendo com alguma desorganização no fluxo de suprimentos provocada pela pandemia; e temos uma guerra dentro da Europa. Além disso tudo, estamos vivendo uma emergência climática, é o principal desafio da humanidade. É um ambiente hostil, mas com muitas oportunidades em cima da mesa dos brasileiros. A descarbonização da economia é uma baita oportunidade para um país que tem a maior floresta tropical, que tem a maior biodiversidade e que mais tem água doce. Para um país que tem vento com constância, que tem sol e que tem uma experiência com biomassa notável. É muita oportunidade, mas é evidente que temos de estar internamente organizados para segurá-las. Se estivermos desorganizados, elas vão passar. Organizar é uma oportunidade que está em cima da mesa. O mundo tem necessidade de fornecedores amigáveis, próximos de Estados Unidos e China. O México está tentando ser esse fornecedor, temos de fazer o mesmo. Temos graves problemas de infraestrutura, que tiram a nossa competitividade, e o capital privado internacional buscando boas oportunidades de investimento… As oportunidades estão aí, temos que encarar e superar nossos desafios. Um desses desafios, você usou a expressão, é ancorar as expectativas econômicas do país, não se faz isso com um fiscal (contas do governo) desorganizado. Organizar o fiscal não é arranjar uma solução para semana que vem, para o mês que vem… Os agentes precisam olhar o futuro e terem, em perspectiva, que a dívida pública estará controlada como proporção daquilo que a gente produz. Os juros voltarão a cair dessa maneira, não na marreta, como a (ex-presidente) Dilma (Rousseff) fez num passado bastante recente e deu errado.
O senhor foi governador do Estado enquanto Lula era presidente. Existem mais semelhanças ou mais diferenças entre Lula 1 e 2 como este início de Lula 3?
Você sabe que não sou precipitado nos meus julgamentos. Posso te dizer que vejo coisas boas nesse início de governo. Por exemplo, buscar experiência do Ceará para o ensino básico (o ministro da Educação, Camilo Santana, foi governador do Ceará). Buscar a doutora Nísia Trindade para cuidar do Ministério da Saúde também é uma coisa boa. Vejo coisas equivocadas principalmente na área econômica. Sou brasileiro, não tenho esse negócio de facção, de torcida apaixonada por grupo A ou B. Torço pelo meu país. Estou torcendo para que o governo acerte o rumo, encontre uma regra fiscal efetiva que possa baixar o juro sem artisticialismo, mas porque criou condições para isso. Para que consigamos acessar as oportunidades que o mundo está oferecendo, para dar mais e melhores empregos, para que o brasileiro possa ter uma vida melhor, uma vida compatível com o potencial que nós temos. Sou otimista, não de braços cruzados, mas militando, colocando essas ideias que eu considero boas no debate nacional. “Ah, você largou a política, Paulo?”. Eu não larguei a política, eu simplesmente coloquei um ponto final no meu ciclo de mandatos eletivos. As pessoas vão me ver velhinho, de bengalinha dando ideias, participando, porque eu acho que esse é o nosso papel para melhorar a vida no Brasil.
O senhor colocou um ponto final no seu ciclo de mandatos eletivos ou foi um ponto e vírgula?
(Risos)
Fora da
Começamos a entrevista falando do Plano Real, um plano de sucesso que acabou com a hiperinflação brasileira. Olhando para o cenário atual, em que área o Brasil precisa de um Plano Real?
Educação, sem dúvida. Educação, ciência e tecnologia, fazendo aquilo que os países que cresceram no mundo, se desenvolveram e melhoraram a condição de vida do seu povo fizeram. Ciência aplicada, ciência para melhorar a produção de diferentes serviços, até a contraprestação de serviço público. Se eu tivesse que fazer um Plano Real, seria no campo educacional. Dar uma casa para uma pessoa que não tem teto é importante. Conseguir um emprego para uma pessoa que está desempregada é importante. Mas nada se compara a dar acesso ao conhecimento. Com conhecimento essa pessoa terá emprego, vai ter uma casa e vai ajudar o país a desenvolver seu enorme potencial. Quando você vê uma árvore que produzia 10 m³, em 1970, hoje está produzindo 40 m³. O que é isso? É solo? Não. É clima? Não. É laboratório, é viveiro, é ciência aplicada. Se tivesse que fazer um Plano Real agora, era um Plano Real para a gente estruturar melhor a educação. Colocamos dinheiro, mas o ponteiro não mexeu lá na nossa avaliação. Temos experiências boas no Brasil, com pouco dinheiro, produzindo bons resultados na aprendizagem dos nossos jovens em Português, Matemática, História, Geografia, Ciência Política…
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