Fazendo o diabo II


Esse foi praticamente o título do artigo que publiquei neste espaço em 12 de outubro de 2014, entre o primeiro e o segundo turno das eleições daquele ano. A expressão havia sido usada em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff: “Nós podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. No caso, busca por reeleição, no exercício do cargo. Como é sabido, seu marqueteiro a reelegeu fazendo o diabo a quatro.

 

O artigo concluía com observação sobre a herança que “(…) a presidente Dilma vem construindo em seus discursos e debates de campanha, em especial nos últimos dois meses, criando para si própria armadilhas adicionais às que construiu com as políticas que implementou ao longo de seus quatro anos. São estas que estão sob o escrutínio agora, quando a presidente pede ao eleitorado mais quatro anos do mesmo, já que não reconhece problemas e, portanto, não vê necessidade de mudanças para enfrentá-los”.

 

Deu no que deu, uma vitória de Pirro. A conta não tardou a chegar, mas quando isso ocorreu a recessão já havia começado (para só terminar em dezembro de 2016), a renda per capita caíra quase 9% e a taxa de investimento, cerca de 30%, e o número de desempregados já superava 13 milhões. Em parte, legado do “fazendo o diabo, custe o que custar”.

 

O comunicado divulgado ao final da reunião de cúpula dos chefes de Estado da Europa de junho de 2012 dizia: “Nós reafirmamos nosso compromisso de fazer o que for necessário para assegurar a estabilidade financeira na Eurozona”. Menos de um mês depois, o presidente do Banco Central Europeu (Mario Draghi), referindo-se aos custos políticos que alguns países pagavam para refinanciar suas dívidas, afirmou: “O BCE está pronto a fazer o que for necessário (wathever it takes) para preservar o euro”. E emendou: “Acreditem em mim, isso será suficiente”. Esse recurso retórico, que permitia antever a superação das conhecidas resistências alemãs, foi o que moveu corações, mentes e nervos nos mercados. Mais recentemente, já sob a covid-19, os países europeus acordaram a criação de um fundo de € 750 bilhões para programas de investimentos nas economias da região. Algo que dificilmente ocorreria, não fosse a pandemia, a exigir o espírito do “whatever it takes” – expressão da qual o fazendo o diabo, custe o que custar vem a ser versão mais rústica.

 

Nos EUA, o mesmo espírito presidiu o enfrentamento da grande depressão, nos anos 30 do século passado. Bem como da crise financeira global sistêmica ao final de 2008, após a falência de Lehman Brothers, quando foi adotado pacote de US$ 700 bilhões. É também esse espírito que pode ser encontrado por trás dos ambiciosos programas de gastos públicos do governo Biden, ainda em difícil negociação no Congresso daquele país: mais de US$ 1 trilhão em infraestrutura, mais US$ 3 trilhões na área social.

 

Permito-me apontar característica central do sistema orçamentário dos EUA que mereceria ser mais conhecida no Brasil. Lá, os dois grandes grupos de despesas do governo são aquelas discricionárias e as mandatórias. Estas últimas são determinadas por lei e seguem, ano após ano, em piloto automático, a menos que o Congresso altere as leis em questão. Em 2019, representavam 61,6% do total de gastos (os juros, 8,4%). As despesas discricionárias (30% do total) exigem, a cada ano, aprovação pelo Congresso, sem a qual devem ser encerradas. No Brasil, as despesas obrigatórias representam atualmente cerca de 93% do total dos gastos primários. Em razão de sua extraordinária rigidez e tamanho, não temos por aqui espaço fiscal sequer comparável àquele existente nos EUA.

 

Em junho deste ano, três respeitados economistas – Olivier Blanchard, Josh Felman e Arvind Subramanian – publicaram artigo sob o título-pergunta O novo consenso fiscal nas economias avançadas viaja para os mercados emergentes? Propunham-se a responder a três perguntas: a situação macroeconômica é a mesma? Existe mais incerteza sobre os resultados fiscais? Existe mais incerteza sobre o diferencial entre taxa de juros e a taxa de crescimento da economia? As respostas foram não, sim e sim, após análise de dados relevantes de Índia, Brasil, Indonésia, África do Sul e Turquia. Vale dizer, as situações não são as mesmas, e as duas incertezas são muito maiores em mercados emergentes que em países mais avançados. Estes podem se permitir um “whatever it takes” que mercados emergentes dificilmente poderiam manter, exceto em situações de extraordinária e temporária emergência.

 

O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, afirmou no mês passado que o BC faria “o que for necessário” em termos de elevação da taxa básica de juros, para trazer a inflação (que chegara a cerca de 10% no acumulado de 12 meses) para uma trajetória de convergência para a meta. Esse enorme desafio será ainda maior se não houver apoio do lado fiscal; se tiver de lidar com outros “whatever it takes” da parte do resto do governo, do chefe do Executivo e do Congresso – operando na outra direção, “fazendo o diabo”, excessivamente preocupados desde agora com o resultado das urnas em outubro de 2022.

 

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ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC

 

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