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Ataques de Bolsonaro à democracia atrapalham o acesso do país a juros mundiais baixos
O economista Pérsio Arida diz que o recuo do presidente Jair Bolsonaro nos ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), que deu um alívio ao mercado no fim da semana passada, foi apenas “tático”. Certamente o comportamento hostil será retomado. “Quem agora vai acreditar numa carta escrita pelo Temer que ele sequer chegou a ler?”, questiona Arida, um dos formuladores do Plano Real e ex-presidente do Banco Central e do BNDES.
Para ele, o comportamento do presidente afeta negativamente os investimentos. “Estamos com um mundo com taxas de juros baixíssimas, com excesso de capitais, com um volume enorme de recursos destináveis a infraestrutura e a políticas ambientais adequadas”, afirma. “[Esse fluxo de investimentos] não se materializa no Brasil porque o Brasil é visto como um pária.”
Arida afirma que, nas eleições presidenciais, é normal haver um aumento das incertezas, mas desta vez elas ocorrem de forma antecipada, agravadas pela crise institucional. “É um risco extra, de manifestações armadas, de insubordinação de policiais, de bloqueio de caminhoneiros.”
Ex-coordenador econômico da candidatura de Geraldo Alckmin nas eleições de 2018, ele diz que a prometida agenda liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, pouco avançou. “Onde o governo deveria estar à frente, dando um impulso ao desenvolvimento, como é o caso claramente da abertura, nada aconteceu”, afirma “É uma pena. No conjunto da obra, incluindo os retrocessos nos direitos e na preservação ambiental, esse governo está caminhando para ser o pior da história republicana.”
Arida avalia que o BC está fazendo um ótimo trabalho para segurar as expectativas de inflação, mas pondera que deverá tomar a decisão de parar de subir os juros “quando ficar claro que a precificação de mercado sobre a taxa futura deixa de ter qualquer conexão com a realidade”.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O mercado financeiro deu uma recuperada depois que o presidente Bolsonaro recuou nos ataques aos ministros do Supremo. A crise está superada?
Persio Arida: Há uma característica muito forte de líderes populistas de direita, autoritários: eles são políticos autênticos, falam o que pensam. Se olharmos o histórico do Bolsonaro, o pensamento autoritário golpista está presente desde antes da eleição. O que houve, na verdade, foi um recuo tático. Ele certamente percebeu que corria um risco concreto de sofrer um impeachment. Percebeu que as manifestações de caminhoneiros iriam diminuir o seu capital político, com o desabastecimento e a desordem causada por ele mesmo. Bolsonaro atacou inúmeras vezes os dois ministros do Supremo. Quem agora vai acreditar numa carta escrita pelo Temer que ele sequer chegou a ler? Ele já fez esse recuo tático outra vezes, agora vai escolher o melhor momento para avançar de novo.
Valor: Existem riscos à democracia? O ministro Paulo Guedes costumar dizer que há exageros nessas acusações, que manchariam a imagem do país no exterior.
Arida: O que aconteceu no 7 de setembro é eloquente. Não há como negar. E a percepção não é brasileira, é internacional. Existe um risco para as instituições democráticas, sim, para todo o sistema de “check and balances” de poderes. O objetivo de Bolsonaro com o voto impresso é claramente criar um tumulto no processo eleitoral. Já preparar o argumento de que teve uma fraude. Evidentemente, ninguém é ingênuo, dentro e fora do Brasil. Há também a sistemática intervenção nos órgãos que fazem políticas contrárias às suas, como é o caso do desmonte do Ibama.
O que houve foi um recuo tático. Quem agora vai acreditar numa carta escrita pelo Temer que ele sequer chegou a ler?”
Valor: Como a crise institucional afeta a economia?
Arida: A regra de bom senso é que empresário tem que enfrentar os riscos de seus negócios. Faz parte ter riscos, mas os riscos do negócio. Não os riscos institucionais, riscos legais não antecipados. Qualquer turbulência institucional ou legal afeta os investimentos. Cria, digamos assim, um risco a mais para os negócios, totalmente desnecessário. Outro aspecto importante é que a consciência social no mundo empresarial avançou muito. É claro que você tem sempre o estereótipo do empresário depredador, absolutamente egoísta. Mas você tem um número crescente de empresários que se preocupam que os investimentos das empresas tenham impactos sociais e ambientais positivos, sejam feitos num ambiente democrático. Essa agenda autoritária e o desrespeito ao meio ambiente tem um custo muito maior do que as pessoas imaginam. As pessoas veem as fábricas que estão mudando para fora do Brasil. O aspecto não visível do problema é o quanto a gente poderia estar tendo de investimentos. Estamos com um mundo com taxas de juros baixíssimas, com excesso de capitais, com um volume enorme de recursos destináveis a infraestrutura e a políticas ambientais adequadas – que não se materializa no Brasil porque o Brasil é visto como um pária. Um país que está na contramão da história do mundo. Isso, de um lado, é obviamente muito grave, por outro lado sempre nos dá uma esperança. Se tivermos em 2023 um governo, não digo iluminista, seria muito, mas um governo minimamente iluminado do ponto de vista do entendimento dos problemas do país, será possível captar um volume de recursos no exterior enorme que faria muita diferença no crescimento econômico.
Valor: O que mais afeta os mercados, o risco às instituições ou a antecipação das eleições de 2022, que promete ser polarizada?
Arida: Há um pouco de tudo. Tem uma preocupação muito grande com relação às ameaças institucionais, que nada têm a ver com jogo político eleitoral. O jogo político eleitoral pode criar turbulências. Você lembra o que aconteceu em 2002, quando o mercado satanizou o Lula e achava que o Lula ia fazer uma expropriação de ativos. Gerou uma turbulência enorme na economia pré-eleição. O risco institucional é outra coisa. É um risco extra. O risco de crise, de manifestações armadas, de insubordinação de policiais, de bloqueio de caminhoneiros.
Valor: Você vê alguma alternativa fora da polarização na eleição do ano que vem?
Arida: Você entrou fora da minha seara de especialidade. Estou longe de ser um bom analista político e não tenho qualquer pretensão nesse sentido.
Valor: O poder econômico ficou com o Bolsonaro nas últimas eleições. Seria diferente em 2022?
Arida: O que aconteceu em 2018 foi o resultado de vários fatores. De um lado, um escândalo que houve com o Aécio Neves, a percepção de que o PSDB, na verdade, fazia parte do bolo da política heterodoxa. Havia uma demanda por alguém que representasse a antipolítica. O Bolsonaro, apesar de ser político por 30 anos, com uma atuação pífia, apresentou-se como a antipolítica, dizendo que jamais iria fazer uma aliança com o centrão. O lavajatismo teve o seu peso, a noção de que o PT não deveria voltar nunca mais. E havia uma retórica que o Paulo Guedes fez, a retórica de que era tudo igual, PSDB e PT, era tudo social-democracia, e o Brasil precisava de um choque de liberalismo. Paulo Guedes, como pregador do liberalismo, foi efetivo, as pessoas compraram essa retórica. Na verdade, hoje fica claro que o governo que fez privatizações foi, na verdade, a social-democracia do Fernando Henrique. É falsa essa narrativa de que é tudo igual, PT e PSDB, de que o Brasil precisa uma coisa liberal radical. Não é tudo igual, e o Brasil precisa de uma combinação. O Brasil precisa certamente do liberalismo econômico no sentido da abertura da economia, do respeito à propriedade, do respeito à norma jurídica, da noção de que é o investimento privado que desenvolve o país, da necessidade de uma privatização radical. Mas há o elemento na social democracia de olhar para o social, ter uma rede de proteção efetiva para os mais pobres, aumentar a igualdade no país, seja de caráter distributivo ou tributária. O que acontece, infelizmente, com o governo Bolsonaro, é que não teve nem uma nem outra. Poderíamos estar gastando em programas sociais de forma muito mais efetiva para atender de fato os mais pobres. É chocante que nada tenha avançado na abertura, na privatização. Quando digo privatização, não é a privatização das subsidiárias das estatais, em que o dinheiro obtido vai para a própria estatal. E quando você vende a estatal mãe e o dinheiro chega ao Tesouro Nacional. A privatização da Eletrobras é como o peixe do Hemingway. Parecia um grande evento, e vai chegar o esqueleto na praia. O dinheiro não chega ao Tesouro. Vai sendo apropriado pelos vários lobbies ao longo do caminho.
Valor: Mas a reforma da Previdência não superou as expectativas, não temos o novo marco do saneamento, lei de falências, independência do Banco Central?
Arida: A gente tem que medir o avanço em relação ao que poderia acontecer. Você está falando de um governo eleito, que tinha a promessa de uma enorme revolução liberal no Brasil e que fez avanços pontuais. Se for olhar o que foi feito no governo Temer, num espaço muito curto de tempo, é muito impressionante. O Temer não foi um governo eleito. Temos hoje um Congresso muito mais reformista. Na época do Fernando Henrique Cardoso, era um Congresso muito menos reformista, muito mais à esquerda. A reforma da Previdência se deve ao empenho do [ex-presidente da Câmara] Rodrigo Maia. O marco do saneamento teve o empenho substantivo do senador Tasso Jereissati. E, na verdade, todas essas discussões são discussões que já vinham de antes. O país tem um amadurecimento lento. A independência do Banco Central é um bom exemplo. É um avanço importantíssimo, não tem a menor dúvida. Mas o resultado é um amadurecimento na discussão pública. Onde o governo deveria estar à frente, dando um impulso ao desenvolvimento, como é o caso claramente da abertura, nada aconteceu. É uma pena. No conjunto da obra, incluindo os retrocessos nos direitos e na preservação ambiental, esse governo está caminhando para ser o pior da história republicana.
Qualquer turbulência institucional afeta os investimentos. Cria um risco a mais para os negócios”
Valor: O presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem destacado que a dívida bruta projetada para o fim deste ano é a mesma que se previa antes da pandemia, apesar da expansão de gastos emergenciais. Não há boas noticias no fiscal?
Arida: Boa parte do segredo para diminuir a dívida bruta veio da aceleração da inflação. É o velho truque. Quantas vezes isso não houve na história brasileira? Toda vez que a inflação se acelera, as contas públicas aparentemente melhoram, porque a arrecadação sobe, e o gasto não. É uma ilusão, porque depois o gasto sobe de novo. Você está hoje com salários congelados no setor público. Você vai ver a demanda para a reposição de salários mais à frente. Essas soluções temporárias são apenas temporárias, a verdade volta depois. Diminuir a dívida pública quando a taxa de juros está muito baixa e a inflação acelera, é uma coisa. Mas, quando a taxa de juros sobe para controlar a inflação, evidentemente a dinâmica da dívida piora.
Valor: O teto de gasto é uma boa âncora fiscal, já que muda sempre para acomodar novas despesas?
Arida: As regras fiscais sempre podem ser regras simples, e, portanto, criticáveis, ou regras fiscais muito sofisticadas. Qualquer bom economista pode criar regras fiscais muito sofisticadas, que acomodem a flutuação cíclica, que reflitam o PIB potencial brasileiro, e assim por diante. Mas tem que ter clareza como o impulso para gastar é enorme. Gastar, politicamente, é sempre bom. O gasto se traduz em votos e em poder. Quanto mais simples a regra, melhor. Funcionam melhor do que regras sofisticadas, com mais margem de liberdade para a interpretação. Regras fiscais no Brasil, enquanto não fizermos uma reforma do Estado efetiva, funcionam por um tempo, depois deixam de funcionar. Olha o que aconteceu com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Existia um teto, um limite, nos gastos com salários. Vigorou por um tempo, teve eficácia. Ao longo do tempo, os vários tribunais de contas encontraram maneiras criativas de escapar do teto. A regra precisa de uma atualização para brecar essas interpretações criativas da lei. O teto de gastos, da mesma forma. Mas tem um papel fundamental, que é evitar o aumento descontrolado de gastos. Embora tenha furos, ele breca o processo, introduz fricção. Ele nesse sentido é positivo. O “xis” do problema não está na dívida, não está no gasto em si.
Valor: Onde está o problema?
Arida: Está na economia política do gasto. Está nos vários ismos: patrimonialismo, populismo e corporativismo. É o que impede o Estado brasileiro de ser eficiente. O verdadeiro grande desafio do Brasil não é o desafio da macroeconomia. É o desafio de fazer uma reforma do Estado efetiva. É muito fácil falar o que o Estado deve fazer ou não deve fazer. Mas, se você olhar na prática, os bons projetos, na execução, viram péssimos projetos, porque não tem avaliação, não tem controle, não tem “accountability”, assim por diante. Quando você está falando de uma reforma do Estado, você está falando de algo que depende das leis, da Constituição, depende de criar órgãos de controle – não burocráticos, mas de avaliação. Enfim, tenho muitas ideias sobre isso, mas o importante é que o desafio não está na dívida, ou, por incrível que pareça, na inflação.
Valor: A inflação chegou a 9,7% nos 12 meses até agosto, com um alto desemprego. Isso preocupa?
Arida: Preocupa porque está afetando as expectativas. Se não afetasse as expectativas, não preocuparia tanto. A taxa de juros real negativa é o que você gostaria de poder implementar para diminuir o desemprego. Mas preocupa, porque desancora as expectativas, e nesse sentido obriga uma resposta do Banco Central. O Banco Central, que está fazendo um ótimo trabalho tanto no front regulatório quanto na política monetária, terá que enfrentar o difícil problema de quando parar de subir a taxa de juros. Está ainda no processo de subida, mas em algum momento vai ficar claro que a precificação de mercado sobre a taxa futura deixa de ter qualquer conexão com a realidade.
Valor: A situação fiscal frágil poderia estar atrapalhando o Banco Central? Estaríamos caminhando para a dominância fiscal?
Arida: Dominância fiscal é um termo que na literatura tem um significado mais sofisticado e mais cheio de nuances do que aparece no debate normal. Dominância fiscal, em linguagem simples, é uma situação em que as expectativas estão desancoradas e que, quando você sobe a taxa de juros, o real se desvaloriza. Tornaria o custo da dívida pública mais alto e, portanto, maior a probabilidade de default. Se usar esse teste simples de dominância fiscal, nada indica que o Brasil esteja ou que passou por algum momento de dominância fiscal. A parte fiscal é sempre uma preocupação, mas o Brasil sempre pode controlar a inflação subindo a taxa de juros, se não tiver indexação presente no sistema.
Valor: O mercado está revendo as perspectivas de crescimento pera 2022. O que está acontecendo que a economia não engata?
Arida: O cenário internacional, com a desaceleração da China e o início da normalização das políticas monetárias do Fed e do ECB [bancos centrais dos Estados Unidos e da Europa], vai afetar negativamente o crescimento em 2022. Dentro do Brasil, estamos indo na direção de um aperto monetário. As pessoas, no Brasil, com frequência olham a taxa real de juros, mas tem um efeito nominal muito importante. Uma inflação de 1% e uma taxa de juros de 1% é diferente de uma inflação de 10% com uma taxa de juro de 10%. O efeito contracionista é maior quando a taxa de juros nominal sobe. Boa parte do resultado positivo da economia deste ano tem uma baixa comparação com o ano passado. A trajetória de crescimento estrutural brasileira hoje é entre 1,5% e 2% ao ano. Se cai muito, volta muito no ano seguinte e retoma a trajetória estrutural brasileira. Pode ser que seja pior do que esses 1,5% ou 2%, dependendo dos riscos institucionais.
Valor: De novo, estamos com uma crise hídrica. O que está dando errado de forma repetida?
Arida: Longe, também, de ser um especialista em crise hídrica, há um aspecto aqui que me impressiona. Estamos com mudança do padrão climático. Sempre se pode interpretar um momento ruim de chuvas como temporário. Só que, quando o padrão climático está mudando, você tem que lembrar que o temporário, na verdade, não é algo que prenuncia a volta à média. É o que prenuncia que a média está mais baixa adiante. O Brasil fez um esforço grande para complementar a matriz hídrica com outras fontes de energia. Se comparar como Brasil estava em 2001, está muito menos dependente. Mas o esforço foi infelizmente insuficiente. Mais um exemplo de que o Brasil foi na direção correta, mas não o suficiente.
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