Lula e Santo Agostinho


Pouco se sabe sobre o novo governo, passados os primeiros dias do resultado do segundo turno das eleições.

A principal razão é simples: não foi uma campanha sobre a economia, portanto, não há programas nem documentos que antecipem muita coisa concreta, além das ideias gerais que se conhece. Restam apenas as falas do candidato, nas quais algumas promessas foram tomando corpo.

O principal dado positivo da transição é que nada muda no Banco Central, ponto para a independência do BCB, ou para a Lei Complementar 179, mais uma vez. Ao menos por ora. Com o tempo será preciso observar a convivência entre os dirigentes do BCB e os novos ocupantes dos cargos no ministério da Economia, ou ministérios que o sucederem.

No capítulo das dúvidas, sempre observando os temas do ângulo da economia, é possível separar os assuntos em três tipos: os vagos, os cosméticos e os impossíveis.

Deliberadamente vaga é a alusão à “reindustrialização do Brasil”, assunto que permite diferentes leituras, mas que não tem necessariamente nenhuma expressão concreta. Nos casos de assuntos de interesse em que o novo governo nada tem a dizer, sobra apenas a criação de um ministério para tratar do assunto, conforme a velha anedota sobre grupos de trabalho.

Parece certo que será recriado o ministério da Indústria, bem como outro, dos Povos Originários, mas não há clareza sobre o que muda no BNDES. Fala-se em papéis ampliados, mas a nova fórmula da TLP, antiga TJLP, reduziu drasticamente o subsídio nos financiamentos da instituição. Fica dificultado o retorno do BNDES aos velhos papéis.

Os assuntos cosméticos têm a ver com o “rebranding” de políticas existentes (“ Auxílio Brasil ” se torna “Bolsa Família”, “Casa Verde Amarela” se torna “Minha Casa Minha Vida”), o “logo” do novo governo, com mais cores, as campanhas publicitárias, assim como novas fórmulas marqueteiras de estressar a mudança de ênfase (social e/ou woke ) dessa administração relativamente à anterior. A ênfase na agenda ambiental (sobretudo nos eventos), bem como nos temas referentes ao apoio à cultura, é fácil de se antecipar. Programas ou iniciativas específicas para o Farmácia Popular e para as universidades públicas também são esperados na primeira hora, com o objetivo claro de assinalar uma mudança de filosofia e prioridade nessas áreas.

No terreno mais direto da economia, a primeira consideração deverá ser o desmanche do super-ministério da Economia que hoje congrega cinco pastas da época em que Lula foi presidente pela última vez (Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio, Trabalho e Previdência). Com tantos aliados a atender, e com a dificuldade “estrutural” em trabalhar com o conceito de “Posto Ipiranga”, será natural que o novo presidente retroaja ao desenho anterior, que lhe dá mais vagas para acomodar amigos e aliados e lhe evita o incômodo de um primeiro-ministro.

Concluído esse redesenho, que poderá consumir algum tempo, espera-se que o governo tenha organizado suas energias para atacar as questões impossíveis, quase todas tendo que ver com falta de dinheiro. Por isso mesmo, o centro de gravidade de todas é o orçamento.

Não é má notícia que as promessas de campanha tenham que se ajustar às realidades do orçamento público e à responsabilidade fiscal. Entretanto, não há como mudar o processo orçamentário nesse momento de aterrissagem. Não agora. A reforma do processo orçamentário deve ficar para depois, sempre se imaginando que nesse “depois” não existem as urgências do “hoje”, o que costuma não ser o caso.

Com isso, a conversa começa com o presidente da Comissão de Orçamento, e um assunto obrigatório será o das emendas do relator: a ideia de carimbar as emendas do relator de “orçamento secreto” deu muito certo para encurralar o governo Bolsonaro , mas e agora? Como desenhar emendas parlamentares obrigatórias não secretas e do relator com o intuito de arregimentar parlamentares para a base do governo sem parecer que é mais do mesmo?

No mérito, existem ao menos três bombas para incorporar no Orçamento: uma nova política de salário-mínimo, o novo bolsa família permanente e aumentado e o aumento da faixa de isenção na tabela do IR. Foram promessas muito claras do novo presidente, sobre as quais deve haver, agora, alguma deliberação sobre as fontes dos recursos.

O orçamento já parecia meio impossível antes dessas promessas. O único atenuante para isso é a observação segundo a qual o orçamento no próximo ano sempre parece irreal logo antes do início do exercício fiscal, quando algum milagre sempre acontece, às vezes mais de um. Já se dá um nome para esse milagre – uma PEC de “Reconstrução Nacional” – mas nada se sabe sobre como seria.

No assunto do imposto de renda, parece claro que a conversa vai começar onde parou a negociação anterior sobre mudanças no IR conforme proposta de Paulo Guedes. No texto resultante dessas conversas, o reajuste da tabela foi tímido, e o maior “avanço” (ou retrocesso?) se deu no assunto da tributação de dividendos. Será difícil o novo governo não retomar essa conversa abraçando a tributação de dividendos e mais alguma coisa que eleve a progressividade do sistema. É preciso lembrar que Bolsonaro também queria reajustar a tabela progressiva e, ao final, não conseguiu. Soluções cosméticas são sempre bem-vindas, tendo em vista a resistência ao aumento de carga.

No assunto do salário-mínimo, o presidente criou um problema para si, mas resolveu ele mesmo, rapidamente, e o fez de forma reveladora, através do ex-governador Wellington Dias. Outras fórmulas de política social se desenvolveram no intervalo, incluindo aí o próprio crescimento de estatura dos programas de transferência direta, que se pretende amplificar, e cujo financiamento não será simples. Melhor não acordar um assunto difícil, para o qual não há solução boa. A política de salário-mínimo é sempre assunto contencioso pelos seus impactos sobre a Previdência Social e sobre as finanças de entes subnacionais, e qualquer que seja o aumento, é sempre pouco.

De fato, o salário mínimo não tem tido aumentos “reais” nos últimos anos, mas não é claro se o que foi feito não estaria de acordo com a regra fixada na Lei 12.382/2011, e estendida pela Lei 13.152/2017 de Dilma Rousseff, pela qual o reajuste seria dado por dois componentes: a variação do INPC nos 12 meses anteriores ao reajuste e “a título de aumento real”, ou algo como o aumento de produtividade, dada pela taxa de crescimento real do PIB no ano retrasado ao da competência do reajuste. Porém, a regra desconsidera a ocorrência de taxas negativas de crescimento para o PIB, como verificado em 2015 (-3,55%), 2016 (-3,28%), mercê da Nova Matriz e 2020 (-3,88%) em razão da pandemia.

Não é irrazoável que não tenha havido aumento real do salário-mínimo nos últimos anos porque a produtividade não cresceu. O que dizem outros indicadores mais elaborados de produtividade?

O fato é que o presidente recuou, e fez com desembaraço, tão rápido que não deu para ver que era um erro sendo corrigido.

Tudo considerado, seria ótimo que o novo governo tivesse uma folga para uns 150 ou 200 bilhões de gasto adicional no ano que vem. Durante a campanha era, inclusive, uma fala dos representantes do PT que visitavam influenciadores do mercado financeiro: o presidente é favor da responsabilidade fiscal, mas queria uma dotação inicial para cumprir suas promessas de campanha.

É como na imortal frase de Santo Agostinho: “Deus, dai-me a castidade, mas não agora” [1].

O orçamento de 2023 será o grande teste inicial para o novo governo na área econômica, o primeiro movimento de um novo contrato social para esta nova administração.

Por fim, resta observar que os assuntos referentes às privatizações e às reformas esfriam. Não se fala em desfazer operações feitas na administração que vai terminando, seria muito esforço para pouco ou nenhum ganho. No assunto referente a preços de combustíveis, e tarifas públicas em geral, o próprio mercado se encarregou de dar seu prognóstico, rebaixando drasticamente as ações da Petrobras.

[1] G. H. B. Franco e F. Giambiagi “Antologia da maldade: um dicionário de citações, associações ilícitas e ligações perigosas”. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 2015, pág.19.

*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de outubro relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.