Modelo social-liberal ainda me parece o melhor caminho


BRASÍLIA – Ex-presidente do Banco Central, o economista Arminio Fraga prevê que a reeleição do presidente Jair Bolsonaro é pouco provável, pelo “conjunto da obra ou da ‘não obra’” . Ele avalia que a economia será decisiva nas eleições, pelas dificuldades que o País passa, e alerta que o debate econômico na campanha eleitoral de 2022 terá de ser realista, ao invés de um festival de promessas não cumpridas. “Quem sabe o eleitorado melhor informado não entenda que alguma coisa está errada, que não há receita fácil, e que é preciso buscar uma proposta que tenha reais condições de dar certo”.

Na semana passada, Armínio disse que aceitaria o cargo de ministro da Fazenda em um novo governo, desde que encontre a possibilidade concreta de colocar em prática suas ideias. Mas não deixou claro se tem simpatia por alguma candidatura e afirmou que não pretende se engajar em nenhuma campanha. Na entrevista abaixo, ele faz críticas às elites brasileiras: “Têm sido chapa-branca, curto-prazistas, oportunistas e um obstáculo ao desenvolvimento do País”.

O sr. disse que não pretende entrar numa campanha eleitoral em 2022, mas aceitaria ser ministro da Fazenda. Como é isso?

De certo, digo que não pretendo me engajar em nenhuma campanha. Tenho tido a chance de conversar com muita gente e consideraria dar uma colaboração num governo onde haja chance de as ideias nas quais eu acredito serem postas em prática com algum sucesso.

Qual a sua avaliação dos cenários políticos dos presidenciáveis que já se apresentaram, do ponto de vista do debate econômico?

Está cedo ainda. Eles terão de se posicionar com mais clareza. No momento, estão dando sinais mais gerais. Alguns não dão sinal algum. Só saberemos a partir de março, abril.

Hoje, a reeleição parece pouco provável. Não só por causa da economia. Pelo conjunto da obra ou da ‘não obra’.

Sim, o PT fez muita coisa, Fernando Henrique também, houve continuidade. Mas, ao mesmo tempo, houve com o PT uma política de dar enormes subsídios, vantagens para os mais ricos, a chamada bolsa empresário. Sempre ouvi Pedro Malan (ex-ministro da Fazenda durante o governo FHC) repetir que a raiva da pobreza e da má distribuição de renda não é monopólio de ninguém. O modelo social-liberal, que foi o do Fernando Henrique, ainda me parece o melhor caminho. Precisamos de um pêndulo político mais curto, e não de uma bola de demolição.

Essa é uma pergunta chave para nortear o debate. Politicamente tem sido difícil o País construir esse caminho. Nos prejudica a frequência com que o Brasil anda para trás. Parece que vai engrenar, mas logo vem uma guinada para trás, tipicamente consequência de ideias erradas e populistas. Essa instabilidade inibe muito o consumo e o investimento. Quem sabe o eleitorado melhor informado não entenda que alguma coisa está errada, que não há receita fácil, e que é preciso buscar uma proposta que tenha reais condições de dar certo.

Com o PIB em recessão técnica, alta da inflação e a volta da estagflação, qual a perspectiva para 2022?

O BC corretamente está apertando os juros. Pode-se discutir a calibragem, mas evito essa discussão conjuntural. Nessa hora, é bom que o presidente do BC tenha mandato e deixe claro que vai ficar até o fim, o que ele tem feito. A política monetária mais apertada e o enorme grau de incerteza que domina hoje a cena são fatores que deprimem a economia. Não é à toa que as estimativas de crescimento para 2022 estejam sendo revisadas para baixo. Um País com a nossa história chegar a uma inflação de dois dígitos, se começar a indexar, aí é o diabo.

Não, mas é grave. Os maiores problemas são a falta de crescimento e a desigualdade. Faz falta uma agenda com esse foco. Mas com inflação não há progresso. O Brasil vive uma situação extrema de fragilidade fiscal, desemprego e subemprego. Parte da inflação vem de choques de custos. Nesse contexto faz sentido retornar à meta apenas em 2023, desde que em 2022 haja uma clara reversão na tendência de alta da inflação. Não combater a inflação seria pior, já vimos esse filme.

Falar do crescimento agora é falar da incerteza de uma economia toda engatilhada, amarrada, fechada. É preciso tomar certo cuidado para não confundir o comportamento cíclico do ano que vem com a tendência de crescimento. Eu gosto de usar a palavra crescimento para a tendência de médio e longo prazo. Quando falamos do ano que vem, estamos falando de recuperação. E a recuperação vem fraca e o crescimento, a essa altura do jogo, está com uma cara ruim.

Debate sempre há. No entanto, é preciso mais: o debate tem de ser construtivo e realista, capaz de oferecer as bases para uma política econômica melhor, ao invés de um festival de promessas que raramente são cumpridas. Vai depender do conjunto de participantes atores de um grande debate nacional, a imprensa, a academia e, sobretudo, os próprios políticos.

O sr. compartilha da avaliação de que na campanha de 2022, ao contrário do que correu em 2018, a economia será decisiva na eleição?

Suspeito que sim. Em função do sofrimento e das dificuldades que o País vem enfrentando desde 2014. A economia sempre é uma prioridade das pessoas, porque ela está conectada com temas como: emprego, inflação, desigualdade, saúde, educação, transporte e segurança. Todos temas que afetam diretamente a qualidade de vida. Essas questões têm espaço natural de discussão no orçamento, que conecta a economia e a política. Não será o único assunto, as questões identitárias ganharão cada vez mais espaço. Mas tem muito assunto que depende de dinheiro.

Sempre tive essa preocupação, mas nunca foi o objeto da minha pesquisa no dia a dia como investidor e mesmo como alguém que trabalhou duas vezes no Banco Central. Deu para fazer alguma coisa no BC, mas não era o foco principal. Uma das medidas que mais deram prazer foi a autorização aos correspondentes bancários. Foi uma ferramenta sensacional para todos os programas sociais que dependiam de cartão, pois quadruplicou o número de postos bancários. Mas, sim, venho já há algum tempo me debruçando sobre o tema. Inclusive fundei os Institutos de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Me fazia falta também a conexão com a política, com as ciências sociais em geral. Um aspecto fulcral, que tem tudo a ver com a qualidade do debate, é para onde vai o dinheiro público e de onde ele vem, ou seja, a composição do gasto e da receita. São questões de grande impacto distributivo.

Por ora, os sinais não são bons, o que parece ser consequência de um foco exagerado no varejo e nas eleições. A grande vítima desse jogo foi a responsabilidade fiscal. Aumentou muito o risco de uma crise maior. Mas o Congresso tem instinto de sobrevivência, espero que acordem.

Inflação, mais pressão no dólar (que lembra 2002), uma recuperação econômica relativamente tímida e que poderá ser abortada. A partir dessa avaliação, pode-se imaginar uma dinâmica entre política e economia bem complicada. Quando os candidatos estiverem em plena campanha, o mercado vai oscilar com base nas opiniões que são ventiladas e nas probabilidades de essas posições se tornarem realidade. Essa probabilidade se extrai das pesquisas, sobretudo. Vamos ver muita volatilidade.

A conclusão inescapável é que as elites, com exceções, têm sido chapa-branca, curto-prazistas, oportunistas, na verdade um obstáculo ao desenvolvimento do País. Parte dessa “elite” abraçou a Dilma e o Bolsonaro. Ambos tiveram, até um determinado momento, apoio substancial das elites empresariais. E isso casa com o que parece ser uma obsessão suicida de voltar a um modelo de economia fechada, com subsídios abundantes, pouco respeito à previsibilidade, ao equilíbrio macroeconômico e à desigualdade. É como se a gente não aprendesse. Nas décadas de crescimento acelerado, o Brasil estava se industrializando e urbanizando. Mas o modelo se esgotou e houve um colapso na produtividade visível já na década de 70. Em todos esses momentos, tivemos uma elite defendendo o seu pedaço de uma maneira míope e que foi responsável por uma parte relevante do nosso desempenho medíocre desde a década de 80.

Não é que o Brasil tenha ficado parado. Não ficou. Mas a impressão que eu tenho é que falta mais. Duas grandes reformas ainda não foram abordadas: as reformas tributária – a indireta e a do Imposto de Renda – e uma do Estado com foco na área administrativa, no RH. Falta uma certa paz. Quando passamos dois anos e meio no Brasil preocupados com nossa democracia, a economia se assusta.

O que vivemos agora é a continuidade do que começou em 2014: a destruição do arcabouço de responsabilidade fiscal do País. Isso é gravíssimo, um fator de incerteza e de risco altamente relevante. Começou lá atrás, quando houve um colapso do saldo primário das contas públicas, que era a principal âncora fiscal. Sabíamos que o gasto público não poderia crescer mais do que o PIB indefinidamente. Tínhamos um arcabouço fiscal bem razoável, com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Entretanto, por alguma razão ainda não totalmente documentada, ela não conseguiu defender o que se tinha. Não está muito claro quanto desse fracasso foi brecha na lei ou crime mesmo.

Vamos ter de repensar o regime fiscal brasileiro. Isso precisa ser feito. O atual já era. Esses remendos, como a PEC, fazem crescer as dúvidas quanto à solidez fiscal do País. Mas, com o passar dos anos, ficou claro que o quadro geral das finanças públicas (com o teto) não era sustentável. Não se pode eliminar quase que totalmente a capacidade de investimento do Estado. O ajuste fiscal necessário não é só aquele suficiente para o Brasil voltar a ter superávit primário. É maior para permitir uma reprogramação das prioridades do gasto público. Estamos falando de um desafio enorme. A constatação de que 80% dos gastos vão para a folha e Previdência é um prato cheio para a reforma.

Estamos diante de uma pesada agenda de reformas na área econômica. A resposta terá de vir, em última instância, da política, que terá de encarar os desafios definindo prioridades de forma transparente e responsável.