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Filho e neto de médicos, o economista e ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, 67, tem se dedicado a estudar os setores público e privado de saúde e as saídas diante de um cenário de subfinanciamento e de crescentes demandas em saúde.
Segundo ele, o país precisa discutir questões espinhosas como rever o atual modelo do SUS (Sistema Único de Saúde), que foi inspirado no sistema público britânico. “Não acredito que seja possível voltar ao modelo original do SUS. Acho que seria mais fácil caminhar para um modelo que seja mais um híbrido de alguns modelos europeus.”
Em muitos países europeus, todos os moradores devem ter um seguro saúde. Caso alguém não tenha condições de bancar um plano, o governo cobre os custos por meio do seguro desemprego ou auxílio social. A gestão dos serviços costuma ser privada. “Uma coisa é o Estado bancar certos custos, outra é o Estado fazer a gestão. Então, onde é possível terceirizar, delegar, vale a pena explorar”, diz ele.
Atualmente, o Brasil gasta cerca de 4% do PIB para financiar o SUS, que atende 75% da população, enquanto 6% vão para a saúde privada, que cobre os 25% restantes. Na opinião de Fraga, os setores público e privado da saúde precisam se falar e pensar em problemas comuns, o que poderia incluir uma governança única.
“Como, em última instância, é o Estado que tem o poder de fazer essa articulação, isso poderia ser tentado”, afirmou na última quinta (10), após lançamento de um relatório sobre as relações público-privadas, produzido pelo Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), do qual é fundador, e a Umane (associação civil sem fins lucrativos que apoia iniciativas no âmbito da saúde pública).
No contexto do subfinanciamento do SUS, o sr. diz que o discurso de austeridade fiscal já não cola mais. Qual é a saída? – Falar só de austeridade omite um aspecto talvez mais importante. O gasto público no Brasil foi de um quarto do PIB para um terço do PIB em 30, 35 anos, aproximadamente. Cerca de 80% do gasto público vai para Previdência e para a folha [de pagamentos].
Eu me arrisco a dizer que o ajuste de prioridades é maior do que o ajuste fiscal necessário para a gente ter um pouco de paz em uma taxa de juros menor. Eu sou um novato na área da saúde, mas me parece bastante claro que falta dinheiro para o SUS, faltam outras coisas também. Mas uma comparação internacional também sugere que um sistema que se pretende universal, gratuito, tem dificuldade em cumprir minimamente a sua missão.
Também é claro que a renda per capita do Brasil deve ser um terço da renda per capita do Reino Unido [cujo sistema de saúde inspirou o SUS brasileiro]. A gente não pode achar que o nosso sistema de saúde vai ser igual ao deles. Não vai, mas tem muito espaço para melhorar.
De que forma? – Há frentes que poderiam trazer mais recursos para o SUS. Os estados e municípios já são obrigados a gastar uma fração das suas receitas em saúde. Então se for possível gerar mais eficiência. Já existem exemplos, como em Minas e no Espirito Santo, em que foi possível economizar um terço do gasto. E o dinheiro [economizado] foi gasto na saúde mesmo.
E como isso é feito? – Com gestão, com regionalização da saúde. Fizeram um trabalho minucioso de cruzar as informações no mundo dos negócios. Então foi possível entender por que em uma determinada área do estado um certo procedimento custa X e em outra custa 2X. E aí? Por que o custo é tão maior em uma área do que em outra? Aí você vai olhar e, normalmente, você procura e acha [a resposta].
A regionalização da saúde é sempre citada como um caminho para tornar o SUS mais eficiente. Por que é tão difícil avançar? – Eu acho que tem um aspecto político que é natural, mas tem que ser coibido, de cada prefeito querer construir o seu hospital e dentro do seu hospital querer ter todos os equipamentos conhecidos. Há falta de coordenação aliada a um certo incentivo político a mostrar resultados.
Em vários aspectos, as questões políticas se sobrepõem às reais necessidades do SUS. Um exemplo são as emendas parlamentares, que não levam em conta critérios técnicos para a alocação dos recursos. É possível equacionar isso? – As emendas em si são muito pulverizadas, é da natureza da coisa, e pouco transparentes. Então dali não vai sair nada [de mudanças]. Pode até sair localmente. Tem várias emendas que eu não tenho dúvida que vão para a área da saúde e tal.
Se o dinheiro é bem aplicado ou não também ninguém sabe. Não vejo muita saída assim, não. Na área mais local [municípios], eu vejo espaço. No Brasil, acho um pouco mais complicado. O país tem muitos partidos, está vivendo essa polarização. E também as relações entre os poderes foram muito estressadas por várias razões.
O estudo do Ieps/Umane levanta a necessidade de o país ter uma governança única dos setores público e privado da saúde. O Ministério da Saúde teria musculatura para isso? – A governança eu não sei. Para vários setores, vejo a saída de uma agência [reguladora] independente, com um mandato e uma missão clara como sendo boa, bastante boa. Mas os sistemas [público e privado] precisam se falar e pensar em problemas comuns. Como, em última instância, é o Estado que tem o poder de fazer essa articulação, isso poderia ser tentado. Não sei se é o ideal, mas estou motivado a estudar um pouco o assunto.
O senhor disse que não acredita mais no modelo original do SUS. Qual seria o modelo adequado para a atualidade? Não foi bem isso que eu falei. Eu falei que não acredito que seja possível voltar ao modelo original do SUS. Existem modelos em outros países que não são o modelo inglês. Então acho que seria mais fácil caminhar para um modelo que seja mais um híbrido de alguns modelos europeus.
Tem um exemplo? Vários. A Espanha tem um sistema que funciona muito bem, a França também. Estão vivendo crise e por quê? Porque todos estão vendo a mesma demanda crescente [de necessidades em saúde] e isso é universal. Cada um tem um diferente, são nuances, mas existem sistemas. Aqui no Brasil nós temos um ponto que é imensamente diferente, que é uma colossal informalidade.
Muitos desses modelos europeus funcionam na linha bismarckiana [toda população precisa estar cadastrada em uma das seguradoras que são pessoas jurídicas público-privadas] lá de trás, que é fazer as coisas através das empresas. Aqui não dá. Então, aqui um pedaço do sistema ser mais inglês é desejável e inevitável. Isso conversa com outros aspectos da nossa economia que são relevantes também. Em especial, a monumental desigualdade.
Uma coisa é o Estado bancar certos custos, outra é o Estado fazer a gestão. Então, onde é possível terceirizar, delegar, vale a pena explorar. Alguns setores são mais fáceis do que outros. Por exemplo, o saneamento, que está agora no início, que eu acho que vai ser um caminho maravilhoso e tem tudo a ver com saúde também, os contratos são triviais. A saúde é mais difícil, mas eu acho que é um bom espaço para se tentar também. Você vê aqui a experiência em São Paulo com as OSSs [Organizações Sociais de Saúde], que tem sido muito boa. Em outros estados, nem tanto. Tem muita coisa que daria para experimentar. Agora a gente está entrando em um período de muito maior uso de tecnologia.
A Constituição diz que é dever do Estado assegurar o direito à saúde. Mas é possível assegurar tudo para todos? – Não, não é. E eu penso que vai além. Hoje a judicialização da saúde está acontecendo num ambiente em que o judiciário tem sido muito favorável e obriga um certo tratamento a acontecer, mesmo em casos em que são tratamentos que sequer estão incluídos no rol. O que dá para fazer do jeito que as coisas estão, para não ter fila, para ter uma alocação melhor dos gastos que existem? Eu acho que é preciso pensar em alguma coisa que poderia ser chamada de um plano básico, que seria um tijolo fundamental do sistema, que não ia incluir muita coisa.
Isso é muito difícil, porque tem o preço político disso e eu acho até, um certo preço de alma, sabe? Você fala assim, a pessoa está doente, tem um tratamento e você não vai oferecer? É, mas não vai oferecer porque se eu oferecer aqui para essa pessoa, eu vou prejudicar cem pessoas do outro lado, na prevenção talvez. Mas é um exercício que eu acho que teria que ser feito. A gente precisa saber quanto que a gente consegue economizar e quanto mais pode ser possível também incluir no orçamento nacional ou estadual.
A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) está discutindo mudanças para abrir caminho para os planos sem internação. O senhor mencionou que tende a não concordar com eles. Por quê? Eu estou estudando muito o assunto, mas acho que, primeiro, tem uma questão básica de defesa do consumidor, não comprar gato por lebre. É uma área onde isso realmente é relevante, porque a complexidade é enorme. O que exatamente o plano cobre ou não cobre? Isso é uma guerra, né? E aí você faz um plano muito limitado. No mínimo, é necessário que as pessoas saibam o que estão comprando e o que não está incluído. Não é fácil, essa é uma discussão que tem que acontecer. Mas não sou contra, não, imagina.
O mercado privado de saúde vem mudando muito, com aquisições, fusões e uma tendência de verticalização. Qual é a sua avaliação sobre isso? A minha avaliação é positiva. Porque ela internaliza esse conflito. Os planos não querem pagar. E os médicos e outros profissionais querem gastar. E gastam até demais. Eu acho que tem uma postura até defensiva. E a verticalização internaliza isso. É uma forma, inclusive, de desonerar um pouco a medicina. Trabalhar de maneira preventiva e integrada. O que preocupa qualquer economista de meia tigela é a eventual falta de concorrência. Se o sistema ficar muito concentrado, aí complica. Mas a verticalização eu acho boa, é uma boa resposta.
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