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Aprendi há alguns anos, lendo a então coluna do jornalista José Roberto Guzzo na última página da revista Veja, que a origem da palavra otário está na letra de um tango de Carlos Gardel, naquele espanhol dos habitantes de Buenos Aires, o portenho. Sempre achei que esse termo tivesse surgido no Rio de Janeiro, nas ruas da Lapa, o antigo bairro boêmio da cidade, uma vez que não há ofensa pior a um carioca “da gema” do que ser assim chamado por quem quer que seja, principalmente por seus pares. Tudo menos ter tal alcunha! Um ledo engano.
Pois bem, e fazendo jus à sua origem etimológica, o incauto, o ingênuo que age como um verdadeiro otário, foi aquele que, ao longo do tempo, manteve toda a sua poupança na moeda nacional argentina. Qualquer uma delas, uma vez que foram várias, todas maltratadas pela inflação fora de controle, pela contínua política de repressão financeira, por moratórias diversas e por malsucedidos planos econômicos.
No fim do ano passado, o Senado daquele país aprovou uma lei que taxa o estoque de riqueza dos contribuintes mais abastados a uma alíquota quase que confiscatória. Não há quem resista a tal tratamento.
O primo ou o irmão celebrado no almoço dominical da família portenha é aquele que deixou o país ou que, por não confiar nos governantes, sempre que pôde enviou seus recursos financeiros para o exterior e lá os manteve. Já o familiar verdadeiramente otário, chacota de todos, é o que insiste em ter toda a sua poupança no banco da nação.
Com isso não há crédito na economia, nem a capacidade de o Banco Central praticar qualquer política monetária. Não há financiamento imobiliário, mercado de hipotecas, tampouco crédito ao consumidor, com ou sem garantias, e o investimento e o capital de giro têm de ser quase que exclusivamente financiados com lucros retidos. A economia segue, assim, estagnada, ao sabor dos choques externos. E as diferentes administrações não conseguem fazer nenhuma política anticíclica, atenuando as recessões.
Felizmente, não ocorreu entre nós, como no país vizinho, a destruição quase que completa do sistema financeiro nacional. Em grande parte, isto se deveu ao simples fato de que aqui não se praticou uma política de repressão financeira sistemática, com recorrentes tabelamentos de juros. Ao contrário, remuneraram-se adequadamente os investidores pelo risco que corriam, riscos esses que não foram de pequena monta.
Hoje temos um mercado de crédito amplo e funcional, em que os preços de bens e serviços e os ativos financeiros e não financeiros são cotados na moeda nacional. E a poupança das famílias permanece em solo pátrio, não houve o fenômeno da fuga de capitais. Ou seja, fomos capazes, apesar dos períodos de superinflação, de manter a demanda por ativos denominados em reais, preservando, com isso, a capacidade de fazer política monetária, mantendo intacto o mecanismo de transmissão da taxa de juros interna às variáveis reais e nominais da economia.
É fácil dizer agora que se pagaram juros demasiadamente elevados. Isso pode ter acontecido – ainda que todas as tentativas passadas de reduzir os juros à força indiquem o contrário –, mas tal comentário soa aos meus ouvidos como o novo médico que critica o anterior pelo emprego de um medicamento em dose excessiva, medicamento esse que, de fato, salvou a vida do paciente que ali está. Quão perspicazes são os engenheiros de obras feitas…
Mais controverso, ou mesmo equivocado, é afirmar que o País que se endivida na própria moeda pode fugir das suas restrições orçamentárias intertemporais, principalmente se usar os recursos para financiar o investimento público, e não gastos correntes, ainda que a diferença entre ambos seja mais sutil do que se possa imaginar e o diabo esteja nos detalhes. Tal prática talvez seja possível, durante algum tempo, nos países com amplo acesso a financiamento barato, alguns até mesmo conseguindo captar a taxas negativas. Já onde o crédito é parco e caro, por se ter amiúde maltratado o poupador, como no tango de Gardel, a aventura tende a desembocar rapidamente na Argentina de hoje, uma economia que persiste estagnada, sem crédito, com poucas perspectivas de crescimento e onde é no passado, e não no futuro, que se depositam as esperanças.
Dizer que não existe mais distinção entre papel-moeda, reservas bancárias e títulos públicos não ajuda muito. Em todos os casos haverá sempre a necessidade de ter fidúcia no emissor, a confiança de que impostos poderão ser pagos com o ativo, que este continuará sendo aceito em toda e qualquer transação, numa relação de trocas previsível. E no caso dos títulos com rendimento, confiar que não haverá calotes, expropriações e períodos prolongados e sistemáticos de repressão financeira.
Há que tratar os detentores desses ativos não como no tango de Gardel, mas como no samba de Noel Rosa Nem com uma Flor. Isto é, não se dá no poupador nem mesmo com uma flor…!
ECONOMISTA, PH.D. EM ECONOMIA PELO MASSACHUSETTS INSTITUTE OF TECHNOLOGY (MIT)
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