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Trazida à baila no Brasil por André Lara Resende (no Valor de 13/1), a “teoria neofisheriana” suscitou enorme perplexidade: primeiro, pela alegação de que apertos monetários elevam ao invés de reduzir a inflação; além disso, por serem proponentes dessa tese economistas que, no ferramental, são estritamente ortodoxos. Em que bifurcação terão neofisherianismo e ortodoxia divergido, para chegar a conclusões opostas? Voltando os olhos das conclusões para suas hipóteses originárias, o que, na raiz, distingue o neofisheriano do ortodoxo?
Sem entender isso direito, fica difícil avaliar os méritos de cada lado no debate. É um esforço extra nesse sentido, enfrentando as tecnicalidades indispensáveis, que propomos fazer aqui. Não é exatamente trivial percebêlo, porém, faz parte da mensagem.
Aporética monetária
A apresentação usual do neofisherianismo parte da equação de Fisher (eq/F), que relaciona o juro nominal (R) ao juro real (r) e à inflação ( π ): R = r + π . Sem mais, ela não passa de um reordenamento algébrico da definição do juro real, a distância entre juro nominal e inflação. Não poderia nascer de discordâncias sobre a validade da fórmula, inequívoca como é, o cisma entre neofisherianismo e ortodoxia.
A eq/F começa a virar teoria ao incorporar os preceitos de que o juro real de equilíbrio depende de traços comportamentais e tecnológicos da economia e de que a política monetária tem sobre ele influência apenas passageira. Mas o neofisherianismo e a ortodoxia monetária também compartilham esses postulados. Modelos monetários modernos partem justamente da relação entre juro nominal e inflação (e, nos mais complexos, outras variáveis) imposta pelos fundamentos do juro real. Em versões simples, essa relação é a eq/F em pessoa, talvez ornada pela explicitação dos fatores que determinam o juro real de equilíbrio. Tanto na ortodoxia quanto no neofisherianismo são comuns as margens para que o juro real seja transitoriamente afetado pela política monetária, mas não para que o seja de forma duradoura.
Sendo pacíficos esses pontos, parece trivial tirar da eq/F a conclusão iconoclasta de que juro nominal R mais alto levará, cedo ou tarde, a inflação π mais alta. Daí quem preza a familiaridade da ortodoxia instintivamente acorrer às duas escapatórias mais imediatas de que dispõe alguém que caia num enrosco assim, intuindo estar nelas a distinção primordial entre as cadeias dedutivas ortodoxa e neofisheriana, e a chave para compatibilizar com a eq/F a crença em apertos monetários serem desinflacionários.
A primeira escapatória é a variabilidade do juro real, mesmo de curta duração, ao sabor dos ciclos monetários. Ela de fato existe e é essencial para o impacto da política monetária na atividade econômica; este, por sua vez, é crucial em retratos realistas da transmissão da política monetária para a inflação: juro nominal mais alto torna o juro real temporariamente mais alto, que deprime o nível de atividade, que pressiona para baixo a inflação. E juro real maior, por um tempo, abre espaço na eq/F para que juro nominal maior possa vir acompanhado de inflação menor.
Por esse argumento, contudo, o neofisherianismo não terá desmentida sua alegação de que, passado o impacto transitório do aperto monetário sobre o juro real, juro nominal mais alto causa inflação mais alta. Seria muito pouco consolo para a ortodoxia que apertos monetários reduzissem a inflação por um breve período inicial, mas que, mantidos, acabassem se tornando contraproducentes. Ou que apertos monetários temporários resultassem inócuos para o patamar em que a inflação afinal se acomodará. Continuariam aparentando ser essas as previsões contraintuitivas da eq/F.
A segunda escapatória instintiva lembra que correlação não é causalidade: juro nominal alto pode andar junto com inflação alta, como manda a eq/F, mas isso não quer dizer que o juro determine a inflação. Dito nesses termos, fica parecendo que o juro nominal é, pelo contrário, o polo passivo na eq/F, equação que só entraria em campo com a inflação já fixada em algum outro plano, para estipular o juro nominal condizente com ela e com o juro real demandado por investidores. Mas essa visão é incongruente com a premissa, que permeia toda a ortodoxia moderna, de que o juro nominal é o “instrumento” de política monetária, discricionariamente calibrado pelo BC a cada momento (só não podendo cair muito abaixo de zero), calibragem esta cuja finalidade precípua não é outra senão manipular a trajetória da inflação.
Como fica a ortodoxia se essas escapatórias à conclusão neofisheriana de que juro nominal alto causa inflação alta são insatisfatórias à luz da própria teoria convencional? A discussão aqui nem é se a teoria ortodoxa se coaduna ou não com a realidade, mas sobre um passo prévio, que é tirar da teoria, a partir de suas próprias hipóteses, conclusões logicamente válidas. Pode a profissão ter insistido todo esse tempo no autoengano de que em teoria pelo menos aperto monetário reduz a inflação, tendo debaixo do nariz uma equação que dita o contrário?
Princípio de Taylor
A pergunta retórica já deixa antever que a resposta é não.
O primeiro aspecto a considerar é que a ortodoxia monetária, embora entendendo que o BC controla ao seu bel prazer o juro nominal curto a cada momento, não admite que o faça sistematicamente à revelia dos dados econômicos em particular, da inflação. Em economês, os BCs não podem se dar ao luxo de manipular o juro curto de forma totalmente “exógena”: precisam seguir, exceto por desvios ocasionais, certos padrões de reação à inflação. Em particular, é preciso que sua reação a um aumento da inflação seja em regra um aumento ainda maior do juro nominal (e, viceversa, que uma queda da inflação leve a uma queda ainda maior do juro nominal). Esse é o chamado “princípio de Taylor” (pr/T).
A pena por desrespeitar o pr/T, segundo a teoria convencional, não é inflação somente mais alta ou volátil, mas sim completamente fora do controle da política monetária. Nessas circunstâncias, por razões cuja tecnicalidade me dissuade de explorar aqui, a inflação resulta completamente indeterminada: pode ser qualquer coisa, a qualquer momento, dependendo apenas de que tipo de expectativas os agentes econômicos formam a respeito. Fica aberto o caminho para “profecias autorrealizáveis”, em que a inflação pode ser ora muito alta só por se esperar que seja assim, ora baixa apenas porque essa é a crença, e nenhum desses resultados está ancorado pela política monetária.
Por outro lado, respeitar o pr/T, prossegue o raciocínio ortodoxo, elimina essa indeterminação. O argumento é de novo mais técnico do que convém explorar aqui, mas envolve a constatação de que, respeitado o pr/T, só há a cada momento uma taxa de inflação condizente com a expectativa de que a economia não embarque a partir daí num tipo particular de profecia autorrealizável, que é uma espiral inflacionária ou desinflacionária sem fim. Considerandose implausível que se esperem tais “bolhas” de inflação, descartamse taxas de inflação que só seriam justificadas, num dado momento, por expectativas como essas a respeito do futuro. Sobra, assim, apenas um nível possível para a inflação.
Suponha então que o juro nominal seja fixado pelo BC em reação à inflação, obedecendo ao pr/T. Um retrato estilizado disso é uma “função de reação” como R = k π + z, onde k é um número maior que 1 (de modo a satisfazer ao pr/T) e z é um termo que o BC controla de forma arbitrária e independentemente da inflação. Variações de z podem representar desde perturbações ocasionais na calibragem de R, até algo perene como uma mudança da meta de inflação (fazendo z = k π *, por exemplo, o BC estaria reagindo a desvios da inflação em relação à meta π *).
Nesse contexto, um aperto de política monetária é medido não pelo aumento de R, mas sim pelo aumento de z. Em palavras, não se trata de saber o quanto o juro sobe, mas de saber quanto sobe o juro praticado pelo BC diante de cada taxa de inflação. Esse critério de medição, atentando que a política monetária ao mesmo tempo afeta de alguma maneira a inflação, mas, em contrapartida, é afetada por ela de acordo com a função de reação do BC, cuida de separar o componente do movimento do juro que é uma genuína mudança de atitude da autoridade monetária, do que é o efeito indireto adicional que essa mudança de atitude tem sobre o juro como reflexo automático de seu efeito sobre a inflação.
Um aumento de z eleva o juro nominal que vigoraria se a inflação não se mexesse, de acordo com a função de reação do BC. Porém, se a inflação não se mexesse, não poderia mudar (dado r) o juro nominal consistente com a eq/F. Para realinhar o juro nominal até aqui inalterado da eq/F com o juro agora mais alto da função de reação não há outro remédio a não ser uma mudança do nível da inflação. E é para baixo que ela tem que se mover, pois, com k > 1, essa queda reduz k π mais do que reduz π , reduzindo o juro da função de reação mais do que o juro da eq/F, e permitindo que, nessa queda de ambos, quem partiu de um nível mais alto alcance quem largou mais de baixo. É justamente na medida necessária para restabelecer esse alinhamento que a teoria propõe que a inflação cairá.
Em suma, a correlação positiva que a eq/F impõe entre inflação e juro nominal se reconcilia com o efeito desinflacionário canonicamente atribuído a apertos monetários mediante duas considerações: primeiro, na abordagem ortodoxa, a política monetária só é funcional se o BC satisfizer ao pr/T; segundo, estando presente um padrão sistemático de reação do juro à inflação, aperto monetário não deve ser identificado com elevação pura e simples do juro nominal, mas sim com elevação do juro que seria praticado diante de cada nível hipotético da inflação. Esse aperto de política monetária, no fim do dia, conduz a inflação mais baixa (como se espera), e a juro nominal igualmente mais baixo (como, dada a inflação menor, requer a eq/F). Mas o juro nominal só terá caído porque a inflação também terá caído, graças à postura monetária mais rigorosa que o BC passou a adotar.
A cozinha do neofisherianismo
É contra o critério convencional de “seleção de equilíbrio” baseado no descarte das profecias autorrealizáveis explosivas para a inflação, essencialmente, que o núcleo da literatura neofisheriana se insurge. Questiona a viabilidade de sequer se respeitar sistematicamente o pr/T, em particular quando o juro nominal se aproxima do zero, mas antes de tudo critica a própria lógica de descartar trajetórias que requeiram a expectativa de bolhas de inflação. Contempla então diferentes critérios alternativos de seleção de equilíbrio, ou de sua própria lavra, ou tomando emprestado de formulações teóricas preexistentes. Um deles vem da chamada Teoria Fiscal do Nível de Preços, desenvolvida nos anos 90, cujo uso elimina a novidade do rótulo “neofisheriano” aplicado ao modelo resultante; outros critérios podem ser mais originais e nada ter a ver com variáveis fiscais.
Esses critérios alternativos de seleção de equilíbrio envolvem considerações complicadas, que diferem nos resultados e na interpretação dos mecanismos que regerão o comportamento da economia, mas todos têm uma consequência em comum: estando operativo qualquer um deles e, ao mesmo tempo, sendo observado o pr/T, a economia enveredará numa daquelas espirais inflacionárias ou desinflacionárias que a teoria convencional liminarmente descarta. Por isso, não surpreende que o neofisherianismo se interesse mais por circunstâncias em que possa presumir que o pr/T (seja ele, em geral, plausível ou não) é desrespeitado, de modo a conciliar seus critérios alternativos de seleção de equilíbrio com a razoável estabilidade da inflação observada mundo afora.
Se a função de reação do BC tiver a mesma forma que consideramos acima, mas, violando o pr/T, k < 1, então a inflação poderá partir do patamar inicial ditado por qualquer critério de seleção de equilíbrio ao gosto neofisheriano e convergirá sempre para o nível ao qual, na função de reação do BC e na eq/F, correspondam valores iguais do juro nominal.
Nessa economia, se a política monetária aperta (no mesmo sentido de antes: aumenta z), a inflação realmente sobe, assim como o juro nominal. Talvez não suba de imediato, veredito que é sensível ao critério de seleção de equilíbrio empregado, mas convergirá para um patamar mais alto. Isso porque o aumento de z, tudo mais constante, novamente torna o juro da função de reação maior do que o juro da eq/F; mas, para que o empate entre os dois se restabeleça, agora que k < 1 não há remédio a não ser p aumentar, fazendoo mais intensamente do que kp e possibilitando que o valor de R da eq/F alcance o da função de reação. Eis o “paradoxo do aperto monetário” que distingue o neofisherianismo desta vez, não como mera correlação positiva entre juro nominal e inflação (correlação que se verifica também no arcabouço ortodoxo), mas na forma de verdadeira causalidade da política de juros para a inflação.
E daí?
O leitor (se é que chegou até aqui) deve estar extenuado pelas tecnicalidades. Mas não há outra forma de mostrar que são questões de altíssima indagação teórica como essas que estão no âmago da heresia neofisheriana: a razoabilidade ou não do princípio de Taylor em diferentes circunstâncias e, em modelagens que se caracterizam por múltiplos equilíbrios associados a profecias autorrealizáveis, controvérsias tão herméticas (mesmo para economistas profissionais) quanto as que cercam a inevitável adoção de um “critério de seleção de equilíbrio”. Não se trata, ao contrário do que fazem crer algumas explicações enganosamente acessíveis, da aplicação direta de algo tão simples quanto a equação de Fisher.
Essa equação, aliás, é dogma comum ao neofisheriano e ao ortodoxo. A despeito das primeiras aparências, ela não impõe a conclusão inusual de que apertos monetários, adequadamente definidos como juros nominais mais altos para cada patamar de inflação, são inflacionários. A equação é, inclusive, pressuposto central na estrutura da qual a teoria moderna extrai o resultado paradigmático, referendado por metodologias de sucessivas gerações, de que apertos monetários a não ser em circunstâncias muito, muito especiais reduzem a inflação.
Por mais engenhoso e intelectualmente estimulante que possa ser enquanto linha de pesquisa acadêmica, por mais precoce que seja sua popularidade em certas regiões da blogosfera, e por mais tentadora que soe, no Brasil de hoje, sua promessa de obter da redução rápida dos juros impulso de curto prazo à atividade econômica e ajuda na convergência da inflação, o neofisherianismo ainda é exploratório e marginal demais no corpo da ciência econômica para avalizar o mergulho numa política monetária experimental, norteada pela total contraversão do senso comum.
Eduardo Loyo é economista-chefe do Banco BTG Pactual e diretor do Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP)
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