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Ex-presidente do Banco Central e do BNDES, o economista Persio Arida tem grande familiaridade com as esferas onde se decide o futuro do país. Parte do grupo que elaborou e implantou o Plano Real, responsável por domar a hiperinflação brasileira nos anos 1990, ele hoje é uma das mentes mais capacitadas a analisar os percalços que emperram o desenvolvimento nacional. É nessa condição que Arida acaba de assumir o posto de presidente do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), uma instituição sem fins lucrativos sediada em São Paulo que tem entre os associados nomes como Armínio Fraga, Affonso Celso Pastore e Pedro Malan. Não à toa, o economista costuma ter também seu nome citado com frequência a cada ano eleitoral no que diz respeito à preparação dos planos econômicos de presidenciáveis. Em entrevista concedida a VEJA por telefone, ele analisou a situação econômica atual e apontou possíveis caminhos para o país sair da estagnação em que segue atolado — para ele, uma consequência direta da gestão temerária do governo de Jair Bolsonaro.
A alta inflação adquiriu um caráter central nas críticas ao governo e a sua condução da economia. Como o senhor vê esse crescimento nos últimos meses? O problema inflacionário é global. Existe uma dimensão que envolve o desajuste de oferta, causado pela Covid-19, como houve depois da II Guerra Mundial, quando os países desenvolvidos tiveram de normalizar suas estruturas produtivas que estavam voltadas para a economia de guerra. Mas há, sobretudo, um elemento de demanda, causado por taxas de juros muito baixas e excessivo estímulo fiscal. No caso brasileiro, a situação ficou mais grave por causa do câmbio. Num momento em que tivemos um ciclo positivo de commodities, a moeda local deveria valorizar-se, e não o contrário. É o efeito Bolsonaro. A má administração, o descuido com as contas públicas, a destruição dos órgãos de controle ambiental, de apoio à cultura, ciência e tecnologia, a aliança com o que há de pior na política brasileira criaram um enorme ceticismo em relação ao futuro do Brasil.
De que maneira esse efeito impacta a economia? Os brasileiros passaram a remeter dólares ao exterior e os estrangeiros, pelas mesmas razões, resolveram deixar de lado a ideia de investir no país. O Brasil virou um pária do ponto de vista dos investimentos internacionais, por desconfiança com o governo. A moeda acabou muito depreciada, empurrando a inflação para cima, que só deve cair no ano que vem, em um patamar de 6% ao ano. Mas isso ao custo de uma economia estagnada e de juros muito altos.
A autonomia formal recém-conquistada do Banco Central pode ajudar no controle da inflação? Desde o Plano Real, o BC teve uma independência de fato, embora não de direito. Com exceção de alguns poucos episódios, os presidentes evitavam interferir de forma direta na instituição por medo da instabilidade que isso geraria no mercado financeiro. Formalizar essa independência certamente é um avanço. Não sei como estaríamos hoje se Bolsonaro pudesse interferir no Banco Central como interfere na Polícia Federal ou na Receita Federal, ainda mais em um ano eleitoral como será o de 2022.
O presidente passou a pandemia inteira opondo as questões de saúde à atividade econômica, dizendo que não se poderia tomar medidas restritivas de circulação porque prejudicaria o PIB, mas isso parece ter estendido os dois problemas mais do que deveria. Não ter tratado a saúde e a economia de forma integrada acabou sendo um erro duplo? Tivemos mais de 600 000 mortos, um número espantoso. Se tivéssemos permitido um colapso do sistema de saúde, sem que os governadores adotassem medidas de quarentena e isolamento, seria muito pior. Do ponto de vista humanitário, os governadores fizeram o certo para evitar uma catástrofe maior ainda. Já o governo federal errou. Ajudou pouco as empresas, os programas de sustentação de empregos foram mal desenhados, e mesmo a ajuda emergencial foi mal focalizada. Criou na Caixa Econômica Federal um monopólio da distribuição dos recursos, uma medida eleitoreira que ignorou a capilaridade e a eficiência das instituições privadas. O governo de São Paulo trouxe a vacina, obrigando o governo federal a se mexer para comprar outros imunizantes. O caso da Pfizer é um escândalo. A pandemia poderia ter sido pior se dependêssemos apenas do Bolsonaro.
Muitos de seus pares apoiaram Bolsonaro na eleição de 2018, a favor das reformas liberais que propunha. O que o levou a se manter distante desse posicionamento? Em vários momentos na campanha, alertei sobre os riscos de eleger um presidente sem experiência política efetiva, que desprezava a política, estatizante por natureza, que tinha defendido torturadores, que desconfiava das instituições democráticas. Bolsonaro votara contra o Plano Real e disse que fuzilaria o então presidente Fernando Henrique Cardoso por causa da privatização da Vale do Rio Doce. Quando os acionistas escolhem o presidente de uma empresa, a primeira coisa que fazem é ver o currículo dos candidatos. O que aconteceu não me surpreendeu em nada, mas preferiria ter errado a ter acertado.
Como avalia o trabalho do Ministério da Economia? As pessoas acham que ministro da Economia é um cargo técnico. Não é. Trata-se de um cargo político. O ministro implementa medidas que reforçam um projeto de poder, seja ele bom ou ruim para o país. O ministro Paulo Guedes faz parte do projeto de poder da família Bolsonaro. Ajudou a dar legitimidade ao Bolsonaro durante a eleição, trazendo um verniz liberal, e vai ficar no governo até o final. Tem uma retórica que agrada à Faria Lima, mas na prática faz uma gestão ruim da economia. Se a culpa é dele ou do Bolsonaro não importa, porque ele é parte do mesmo projeto de poder.
A solução encontrada para a criação do benefício do Auxílio Brasil foi abrir espaço no Orçamento por meio de proposta de emenda constitucional, a PEC dos Precatórios. Como o senhor avalia essa solução? A PEC dos Precatórios é um vexame. Qualquer empresa aberta tem de fazer provisões quando a probabilidade de perder uma ação judicial se torna grande e, por tabela, ajustar seu balanço para isso. Por que seria diferente com a União? O ministro afirma que os precatórios são “meteoros” que caíram de surpresa sobre o Orçamento. Meteoro só acontece no céu. Populistas de todos os matizes criticam o teto de gastos. Já pensou como estaríamos sem o teto de gastos, com Bolsonaro em campanha eleitoral e com o Centrão no poder? Teríamos uma farra fiscal, verbas aprovadas sem nenhum critério, corrupção e uma enorme ineficiência.
E como avalia o restante da agenda econômica do governo? A abertura econômica não aconteceu, as privatizações não andaram, a reforma tributária da PEC 45 empacou e a dívida pública só diminuiu, comparada às estimativas, por causa da inflação.
Que análise faz das emendas de relator, com as quais o governo conquistou apoio no Congresso Nacional? O Orçamento Secreto é um escárnio. Em países democráticos, não deve existir dinheiro público com destinação secreta. É necessário dar transparência sobre a paternidade de emendas, deixando claro como o dinheiro foi aplicado.
Num cenário desses, dá para pensar se o Brasil ainda tem solução? A experiência dos oito anos da gestão de Fernando Henrique Cardoso mostra que sim. Naquela época, foram criados os fundamentos do Brasil moderno: o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Reforma Administrativa, o tripé macroeconômico, as agências reguladoras, as privatizações e a agenda social. Dá para fazer. Mas tudo começa com a eleição presidencial. Claro que elegermos um bom Congresso é também importante, mas a eleição do presidente é crucial. É ele quem aponta os rumos, mobiliza apoio e determina a agenda de reformas. Se errarmos nessa escolha, estaremos, uma vez mais, comprometendo nosso futuro.
Quais são os principais estraves para o país? A lista é grande, mas convém começar lembrando que o drama maior do Brasil está nos três ‘ismos’: populismo, corporativismo e patrimonialismo. É quando se busca apropriar-se do Estado para fins de interesses privados. Temos de avançar numa revisão de gastos, benesses fiscais e isenções tarifárias, tratando de uniformizar alíquotas e eliminar privilégios. Avaliar a qualidade dos gastos públicos fará muita diferença também. É um programa de longo prazo, mas tem de começar. Além do erro de beneficiar esse ou aquele setor ou atividade sem uma análise crítica e pública dos prós e contras.
Existe alguma proposta urgente para acelerar a agenda de que o Brasil necessita? A Constituição prevê o respeito às liberdades individuais, à educação e saúde básicas e à propriedade privada. Mas, além dos princípios normativos fundamentais, há um detalhamento excessivo que obriga todos os governos a governar por PECs. As mudanças e adaptações da política pública, mais importantes do que nunca num mundo em rápida transformação, ficam enormemente dificultadas por causa do quórum elevado exigido para cada alteração. Todos os governos sofreram com esse problema. Minha proposta é tirar todos os detalhamentos da Constituição, preservando seus fundamentos, passando os demais dispositivos para lei complementar. Nada mudaria de imediato, mas o sarrafo ficaria baixo. Passariam para lei complementar todas as indexações e vinculações, como também o teto de gastos e a regra de ouro. Precisamos de um acordo nacional em favor da flexibilidade de mudanças nas políticas públicas, independentemente das preferências de cada um. Não podemos ficar engessados eternamente, com articulações que se arrastam por meses a fio, e emendando a Constituição todos os anos. Pode ser utópico, mas acho importante refletirmos a respeito dessa proposta.
Seu nome é frequentemente cogitado para colaborar em programas de governo. O senhor já foi procurado por algum candidato nas próximas eleições? Essa é uma das raras perguntas a que eu realmente tenho preferido deixar de responder.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769
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