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Tarde da noite, K. chega na pequena aldeia cercada de névoa e escuridão, enterrada na neve. Procura abrigo, e, depois de alguma negociação, o dono da hospedagem oferece-lhe saco de palha na sala. Pouco depois de adormecer, é acordado por jovem atrevido. “Não é permitido passar a noite aqui”, diz-lhe o rapaz, “essa aldeia é propriedade do Castelo. É preciso pedir permissão”. Cabeça ainda enevoada pelo sono, K. pergunta, “permissão para quem?”. Modos insolentes, o jovem responde que é preciso pedir permissão ao Conde, dono do Castelo. Contudo, isso não pode ser feito naquele instante. Enseja-se conversa insólita entre os dois, culminando em telefonema igualmente insólito e inconclusivo.
Das Schloss, em alemão, é o último romance de Franz Kafka, frase final inacabada. O título é palavra homônima, de significado alternativo “a fechadura”, símbolo da frustração de tentar inutilmente conduzir transações com sistemas controladores e sem transparência. No caso, a transação é mero exercício de mensuração de uma propriedade. Afinal, K. é agrimensor.
Até recentemente, éramos todos como K. Incapazes de mensurar as relações entre o Tesouro e o BNDES – o nosso castelo enevoado – perdidos estávamos em labirinto opressivo. No entanto, no ano passado o Senador José Serra inseriu na lei 13.132/15 parágrafo que obriga a Secretaria do Tesouro Nacional a divulgar, duas vezes ao ano, relatório com as seguintes informações: qual o impacto fiscal das operações do BNDES, e qual o valor dos restos a pagar nas operações de equalização de taxas de juros do BNDES. Segundo o documento do Tesouro que cumpre a chamada “emenda Serra”, somam em valor presente R$ 67,2 bilhões de reais os subsídios concedidos ao BNDES somente no biênio 2016-2017. Ou seja, o governo ainda haverá de pagar nos próximos dois anos pouco mais de 1% do PIB brasileiro em subsídios concedidos referentes a empréstimos já contratados. Até 2020, a conta alcança R$ 117,4 bilhões, ou quase 2,5% do PIB.
Há tempos o BNDES é o grande enrosco da política fiscal e da política monetária. Como mostrei em estudo publicado pelo Peterson Institute for International Economics em setembro de 2015, a atuação do BNDES ajuda a explicar porque as taxas de juros no Brasil são tão elevadas. De um lado, ao conceder financiamentos subsidiados para parcela expressiva do mercado, nosso Castelo estrangula a capacidade de transmissão da política monetária – afinal, a Selic não tem efeito sobre o custo desses empréstimos. De outro, as taxas praticadas pelo BNDES segmentam o mercado de crédito, pressionando as taxas privadas: a diferença entre as taxas cobradas pelo setor privado e pelo BNDES chega a mais de 40 pontos percentuais, um escândalo. Uma das razões é que ao fornecer crédito barato para todos, o BNDES captura os tomadores com melhor perfil de risco, deixando para o setor privado aqueles cujo risco é maior – esse efeito é chamado de “seleção adversa”. Do lado fiscal, as pressões que o BNDES exerce vêm tanto dos subsídios supracitados, quanto dos juros mais elevados que prejudicam a capacidade de financiamento do governo. A pesada carga de pagamentos de juros sobre a dívida pública, por sua vez, gera questionamentos sobre a política monetária: se o esforço fiscal para pagar os juros é crescente devido a vários motivos, inclusive à atuação do BNDES, há um constrangimento para que o Banco Central eleve os juros ainda mais em resposta à inflação e à desancoragem das expectativas. Ou seja, as distorções causadas pelo uso descontrolado de crédito subsidiado do BNDES aumentam o ônus fiscal e impedem o bom funcionamento das políticas de estabilização macroeconômica. Não à toa, está ele no cerne de problema conhecido como “dominância fiscal”, isto é, os limites impostos à política monetária em razão do descontrole das contas públicas.
Fecha-se, portanto, nosso ciclo kafkiano. Enrolados no emaranhado irracional das relações entre o BNDES, o Tesouro, e o Banco Central, estaremos, como K., destinados a padecer na aldeia sem jamais alcançar o Castelo, ou destravar a fechadura. Urge encontrar solução para o BNDES.
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