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Eu posso sentir a presença dela. Não sei explicar, não há exatidão, nem mesmo tanta clareza nos indicadores antecedentes, mas ela está lá.
Todo o espaço exterior às muralhas está tomado, mas não podemos vê-la, apenas sentir a sua prontidão.
As autoridades encenam tranquilidade e indiferença, como se tudo fosse parte de um ciclo conhecido e previsível. Pode ser, tomara que sim, mas as pessoas desconfiam.
Há muitos ruídos indefinidos nessa noite escura que nos envolve, um vento rebelde sacode as árvores e derruba os postes. Pode ser um presságio para volta da velha senhora, ou não. Saberemos em breve.
O espectro da inflação se mostra também na excitação com os preparativos para a defesa da nossa cidadela. Voltaram alguns temas bizantinos como a periodicidade da indexação, os limites da correção monetária e a indefectível teoria da imprevisão.
Voltaram também os acrônimos, o IGP-M (e seu pulo inesperado), o IPCA-15 (como prévia), os aumentos na Selic, o CDI, o relatório Focus, agora misturados com as novidades do mundo digital, o PIX, o bitcoin e as fintechs.
Aliás, se o dinheiro desaparecer, o que vai ser da inflação? Não será aconselhável acabar com o dinheiro logo, antes de a inflação voltar?
Mas talvez nada disso sirva para muita coisa diante da velha senhora, sempre subestimada e invariavelmente devastadora. Os jovens não estão tão assustados quanto os anciãos, pois não viveram o último surto, e acham que vão ultrapassar o problema melhor que a geração anterior graças à internet e à inteligência artificial. Pois sim.
A inflação é invisível e contagiosa, como o coronavírus. Seu alastramento parece uma epidemia, a diferença está em que é um processo social, transmissível pelo ar e pelo noticiário.
Analogicamente, as máscaras de proteção seriam como as cláusulas de indexação, ao passo que os mecanismos de hedge e de casamentos de índices funcionariam como os protocolos de distanciamento social. Mas não há defesa milagrosa. Há, isso sim, muitos tratamentos “precoces” ineficazes, muito charlatanismo e oportunismo. Antigamente a cloroquina se chamava “choque heterodoxo”.
A principal lição quando se trata de pandemia e de inflação diz respeito à prevenção: uma vez que combater a doença é imensamente mais complexo do que trabalhar para evitá-la, sempre melhor não deixar alastrar.
Em assuntos médicos, como monetários, o conservadorismo é sempre recomendável.
Não há tanto exagero em afirmar que a “vacina” contra a inflação está na atuação do Banco Central, e na qualidade da sua governança ou na sua independência.
Jamais esquecer que a inflação é uma doença da moeda, daí a centralidade do Guardião da Moeda.
Nessa linha, vale notar que o governo rotineiramente exagera o real significado da Lei Complementar 179 (LC179), de 24 de fevereiro de 2021, que define os objetivos do Banco Central do Brasil, dispõe sobre sua autonomia e sobre a nomeação e a exoneração de seus dirigentes.
A LC179 não era pouca coisa, mas não era “a independência” do Banco Central. Ela nos colocou mais perto da média mundial em termos do grau de independência da instituição, nada mais do que isso.
Ao exagerar a importância da LC179 pode ter ficado a sensação de que estávamos imunizados no tocante à inflação e portanto podíamos, inclusive, correr mais riscos.
Talvez, com isso, a LC179 tenha diminuído o empenho do governo em questões fiscais, ou mesmo introduzido um viés baixista nas decisões do Copom. Tudo se conserta, sobretudo agora que a LC179 se consolidou, sobrevivendo inclusive um questionamento constitucional.
O fato é que o Guardião das Muralhas demorou a agir, os bárbaros chegaram muito perto e as pessoas estão assustadas. Isso não estava nos planos.
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