O fim do ano, fim da picada


RIO – Foi o mais longo dos anos recentes, a despeito de ter iniciado tarde, apenas em 11 de março, quando a OMS declarou que o surto de Covid-19 era uma pandemia, e terminado cedo, em 15 de dezembro, com o Comício da Ceagesp.

Sim, o ano terminou em 15 de dezembro, com a histórica visita do presidente ao mercadão de São Paulo, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, Ceagesp S/A, empresa pública federalizada em 1997, para pagar dívidas do estado, que tentou privatizar a companhia em 1996, mas não houve lance no preço mínimo de 65 M.

A visita-comício na Ceagesp serviu como um marco para assinalar o rompimento público entre o projeto político de Jair Bolsonaro com a sua própria política econômica declaradamente de livre mercado, uma junção tensa, às vezes descrita como um “casamento arranjado”.

A Ceagesp foi incluída na privatização pelo decreto presidencial nº 10.045 de 4/10/19, do próprio Bolsonaro, e foi retirada nesse comício, sem decreto, no peito e na raça.

O rompimento do presidente com o liberalismo já vinha se desenhando há tempos, mas a crise final que explode nesse momento teve seus detalhes conhecidos apenas depois de reunidos e consolidados os diversos relatos preciosos e picantes de testemunhas que atinaram para a transcendência do momento.

Tudo começou de forma um tanto mágica, e inesperada, quando o presidente, logo ao chegar ao palanque viveu um “momento Philip Roth”, como confirmam várias testemunhas:

— Vocês viram meu projeto econômico liberal por aí? Acho que deixei cair… Não consigo encontrar, é uma coisa pequena, vocês sabem, pode estar em qualquer parte, as reformas liberais, estavam todas no mesmo chaveiro…

Um dos muitos alter egos de Philip Roth é um ator que perde sua mágica (Simon Axler, de “A humilhação”), assim, de uma hora para a outra, e se torna um canastrão e uma caricatura de si mesmo: “tudo que funcionara para fazer dele quem ele era se tornara agora o que o fazia parecer um louco”.

— É uma coisinha pequena, mas importante para mim, deve estar jogada pelo chão, vamos procurar, por favor.

Os assessores à sua volta não entendiam, como assim, presidente, perdeu o que mesmo, será que alguém pegou, e então o presidente se virou na direção do presidente da Caixa, que se acotovelava entre os circundantes, suado como todos, buscando visibilidade nas fotos, e perguntou diretamente:

— Você viu meu projeto econômico, Pedro?

Não lembrava do nome completo. Sabia das iniciais, PG, iguais às do ministro, e das piadas sobre o PG2, mais novinho, ainda mais irrequieto, mas o nome era outro, também com “G”.

Pedro G percebeu, e todos em volta, mas enquanto vários já sussurravam “Guimarães”, “Guimarães”, Pedro G cochichou bem alto no ouvido que o presidente lhe estendera:

— Vamos abrir uma agência da Caixa aqui.

O presidente vira-se para o público, microfone em riste, e troveja:

— O nosso Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal, vai abrir uma agência aqui, amanhã mesmo…

E a multidão reage com um bafejo de aplausos, como uma fera amorosa rugindo em busca de mais carinho. O presidente volta a perguntar de seu projeto, mas foi Pedro G quem tomou a iniciativa, balançando a cabeça decidido, está perdido mesmo, presidente, vamos em frente, a fila anda, e o presidente olhou desconfiado, virou-se para a multidão e soltou o verbo:

— Quanto à privatização quero deixar bem claro que, enquanto eu for o presidente da República, essa é a casa de vocês. Nenhum rato vai sucatear isso aqui para privatizar para os seus amigos.

Uma das testemunhas, conhecedora de Roth, lembrou de uma fala do escritor: a ficção existe para eviscerar a realidade. Outra comentou, em resposta: é mas no Brasil a realidade possui tripas que a ficção desconhece.

E foi assim que terminou a “fase liberal” do governo, sepultada simbolicamente na Ceagesp que, aliás, tenha-se claro, não é mais que uma metáfora — com seus 600 funcionários, faturamento de 117 M (2019) e prejuízos de mais de 50 M acumulados entre 2016 e 2019 — perto dos R$ 7,6 bilhões que o Tesouro colocou em 2019 em aumento de capital da Emgepron, estatal que constrói fragatas para a Marinha.