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Quando presidiu o Banco Central (BC), de 1999 a 2003, Arminio Fraga brigou com dois monstros que assustam o país – o tamanho da taxa básica de juros (determinada pelo governo, por meio do Comitê de Política Monetária) e o tamanho das taxas de juros finais, como o crédito pessoal (determinadas pelos bancos). Três presidentes de BC depois, os dois monstros continuam a atrapalhar muito. Eles dificultam o uso de crédito por cidadãos e empresas e inflam as dívidas privadas e públicas. Não há solução fácil para o problema. Fraga, sócio fundador da Gávea Investimentos, encontrou tempo para voltar a estudar o assunto, com rigor acadêmico. Sempre elogioso à equipe econômica atual, ele espera contribuir mais com o debate público a respeito nos meses à frente.
ÉPOCA – No Brasil, linhas de crédito especiais para setores importantes – construção, agronegócio – estão concentradas nos bancos estatais. Uns dizem que as linhas especiais são necessárias porque os juros de mercado são altos demais. Outros, que os juros de mercado são altos demais, em parte, por causa da existência das linhas especiais. Como desatar o nó?
Arminio Fraga – Eu faria o que o BNDES está fazendo: define critérios, um período de transição e vai em frente. É um problema antigo. A resposta é fazer de forma gradual. Seria arriscado e irresponsável fazer uma redução drástica [nesse tipo de crédito]. Mas esperar milagre não adianta. Não há quem me convença que um país pode se desenvolver com seu potencial máximo, com o máximo de produtividade, com dois terços da intermediação financeira nas mãos de bancos estatais, por melhores que eles sejam. Há muita gente boa no BNDES, no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal. Mas, no geral, a governança é ruim, muito exposta a tudo que é tipo de problema, vieses ideológicos, tráfico de influência e até ignorância. E falta concorrência no setor financeiro. É importante avaliar a concentração no setor. Talvez ele já esteja concentrado demais.
ÉPOCA – O que mais o governo pode fazer para baixar os juros finais? Aumentar a concorrência entre os bancos?
Fraga – Os [bancos] estrangeiros andaram saindo daqui. Com o tempo, podem voltar. Existem outras questões importantes que determinam o spread bancário [o que os bancos cobram a mais de juros de seus clientes, em relação ao juro básico determinado pelo governo]. O BC sinaliza que vai trabalhar nessa área. No crédito para pessoa física, o tema quente continua a ser o cadastro positivo. O cidadão pode carregar a história dele de um banco para outro e forçar a concorrência entre eles. No crédito para empresas, tem a ver com a qualidade das garantias. Historicamente, no Brasil, o grosso do crédito tem sido sem garantia. Em função disso, é muito mais caro. Tem a ver com a eficácia da lei de falências, que precisa de uma revisão. O Ilan [Goldfajn, presidente do BC] chegou ao BC um ano e meio depois de mim [Goldfajn foi diretor de Política Econômica do BC na gestão de Fraga]. Ele assumiu um papel importante na redução do spread e conhece profundamente o tema.
ÉPOCA – A taxa básica de juros também é alta demais. Como pode um país ter juro tão alto e inflação tão alta?
Fraga – É outra encrenca. O Brasil tem juro muito alto há muito tempo, uma aberração quando se compara com o resto do mundo. Nessa área, estou envolvido num projeto de pesquisa caprichado, talvez a primeira vez que faço pesquisa para valer desde que terminei o doutorado. O trabalho passa por várias etapas de levantar dados sobre a longa história dos juros altos. Tenho um coautor que estava na PUC quando começamos a conversar e agora está no BC, o Tiago Berriel [diretor de Assuntos Internacionais do BC desde julho]. Está cedo para chegarmos a alguma conclusão heroica. Parece claro que o nó maior é na área das contas públicas, mas também que não é só isso. Outros países com situação fiscal precária não têm juro tão alto quanto nós.
ÉPOCA – O economista André Lara Resende defendeu, num artigo recente no jornal Valor Econômico, alguns achados acadêmicos relativamente recentes – em linhas gerais, que juros altos podem, no longo prazo, aumentar a inflação. O que o senhor acha da ideia?
Fraga – Uso aqui a frase clássica: o artigo tem algumas coisas boas e algumas coisas novas. As boas não são novas – a ênfase no fiscal. E as novas, para mim, são muito frágeis, como um aumento da taxa de juros provocar aumento de inflação no longo prazo. Alguns modelos matemáticos mostram que, sob certas condições, pode acontecer. Daí achar que isso gera alguma proposta de política econômica é implausível. Como o artigo é muito complicado para jornal e 99,9% das pessoas que leram não entenderam nada, melhor deixar para o debate acadêmico, sempre desejável. Para mim, a principal conclusão dessa linha de pesquisa é bem intuitiva e se aplica ao Brasil: as políticas monetária e fiscal têm de se complementar e se reforçar. No lado fiscal, isso requer um orçamento equilibrado, uma dívida pública relativamente pequena em épocas normais, para [o governo] poder agir quando necessário. Não é o caso aqui agora.
ÉPOCA – Mas é interessante observar que nos países ricos há realmente um período longo de juros baixos e, mesmo assim, inflação baixa. E no Brasil há realmente um período longo de juros altos e, mesmo assim, inflação alta.
Fraga – Vamos lá: o que fez o governo Dilma? Antes de perder a disciplina fiscal, reduziu os juros na marra e a inflação não caiu, subiu, algo esperado no curto prazo. Esse debate tem mais a ver com os países desenvolvidos, que vivem um período longo de juro zero com inflação baixa. De fato, é um tema extremamente interessante. Lembra a armadilha de liquidez do [economista britânico John Maynard] Keynes [que descreveu a situação em que, com juros já baixíssimos, a autoridade monetária não consegue reaquecer a economia por meio de injeções de dinheiro – o capital fica “empoçado”, em vez de circular]. Tem a ver com o mundo estagnado da ressaca da crise financeira global, dos balanços inchados estudados por [Kenneth] Rogoff e [Carmen] Reinhardt. Tem a ver também com a entrada na economia mundial de 2 bilhões de trabalhadores e poupadores da China e da Índia. Mas querer inverter a equação e aplicar no Brasil não faz sentido.
ÉPOCA – O governo Temer escolheu se concentrar em algumas reformas econômicas e especialmente no ajuste das contas públicas. É a tática correta?
Fraga – Nossa política fiscal continua muito frouxa. Isso mantém a pressão pela elevação dos juros. Se você olhar a trajetória do saldo primário [o resultado das contas públicas sem o pagamento de juros], houve uma piora de uns 6 pontos percentuais do PIB. O superávit se tornou um baita déficit. Metade da piora foi aumento de gasto, que inclui gasto com Previdência. A outra metade se pode dividir meio a meio entre desonerações [suspensão de cobrança de tributos] e recessão, que faz a arrecadação cair – mais ou menos 3 pontos de aumento de gasto, 1,5 ponto de desonerações, 1,5 ponto de queda da atividade. Se considerarmos as desonerações como uma decisão de gasto, três quartos do buraco vieram por aumento de gasto. Então faz sentido limitar o crescimento do gasto a zero. E faz sentido, como dizem o ministro [da Fazenda, Henrique] Meirelles e o secretário [do Tesouro, Eduardo] Guardia, reverter as desonerações.
ÉPOCA – Mas os setores que receberam o benefício reclamam e usam argumentos com apelo, como desemprego.
Fraga – Reclamam, mas isso é normal. Do lado do governo, ninguém me convence que não há onde cortar. É um trabalho de guerrilha. Acho que o governo deveria ter orçamento de base zero [não manter destinações baseadas apenas no orçamento anterior, sem nova justificativa]. E há espaço para acabar com as desonerações. O governo vem sinalizando isso, à medida que vençam os prazos das desonerações. O sistema tributário tem brechas demais. Tem de ser redesenhado para se tornar mais eficiente. O ICMS é um imposto caótico. No Imposto de Renda, estamos vendo uma profusão de novos métodos de redução do pagamento. Pessoa física virar pessoa jurídica é um deles, algo que não tem sentido. A saída de criar exceções e regimes diferentes não cabe. O Brasil está sempre buscando essas saídas fáceis. A carga tributária onera os setores de forma muito diversa. A indústria paga muito mais imposto que os serviços. Não é razoável nem justo. Há uma agenda enorme para trabalhar. É curioso que um governo de esquerda tenha patrocinado tantos subsídios, brechas fiscais e desonerações. Isso tem de ser desfeito.
ÉPOCA – Mas fazer essas correções agora não vai esfriar ainda mais a economia?
Fraga – Desonerações, subsídios e proteções deveriam desaparecer ou diminuir gradualmente, num prazo como cinco a dez anos. Não há que ter medo desse movimento do lado da demanda [o consumo das empresas e famílias, necessário para reaquecer a economia]. Porque essa correção certamente daria mais espaço para o BC cortar a taxa básica de juros e, quem sabe, caminharmos para ter uma taxa de juros mais normal. E tem sentido do ponto de vista da fragilidade das contas públicas – teríamos o impacto direto do corte de gastos e aumento de receita, e o impacto indireto do corte de juros [que faria a dívida pública crescer mais lentamente]. Teria impacto positivo também na confiança.
ÉPOCA – Na parte da agenda que depende do Congresso, qual deveria ser a reforma seguinte, após a da Previdência?
Fraga – A reforma trabalhista é mais simples e parece mais viável no curto prazo. A tributária envolve muitos aspectos complicados. Mas, neste momento de dificuldade para os estados, quem sabe a negociação não se viabiliza? É importante o governo ter essa reforma desenhada, para aproveitar uma eventual oportunidade no Congresso. Mesmo com a agenda carregada, vale a pena o Executivo insistir na reforma tributária. É papel dele manter a agenda viva, ambiciosa. Essa seria a troca: saem subsídios, desonerações e proteções, entram juro baixo para todo mundo, boas regras trabalhistas, infraestrutura melhor, sistema tributário mais arrumado.
ÉPOCA – O governo Temer está fazendo o suficiente na parte da agenda que não depende do Congresso?
Fraga – No geral, sim. Impressiona o trabalho feito no BNDES, na Petrobras e no setor de petróleo, na Eletrobras. Dado que este governo é relativamente novo e opera em condições adversas, acho que está avançando bem – o que não quer dizer que seja suficiente. O importante é continuar avançando. Trabalhar com aumento de produtividade no Brasil é um paraíso. Há tanta coisa malfeita, distorcida, tanta política pública sem sentido… quando vejo o BNDES anunciar os novos critérios, eu vibro! Para que serve o BNDES? Ele tem de atuar nas áreas em que há algo a mais, como dizem a Maria Silvia [Bastos Marques, presidente do BNDES] e os colegas dela, algo que interesse à sociedade inteira, pelo fator ambiental, pela tecnologia, pela educação. Isso é revolucionário.
ÉPOCA – A crise fiscal nos estados, ao menos nos casos mais graves, como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, está sendo administrada da melhor forma?
Fraga – Não sei ao certo. Está claro que ajustes têm de acontecer em vários estados, aqui no Rio com certeza. Quando vemos outros estados dispensando ajuda e fazendo ajuste… Visitei recentemente o Espírito Santo, fizeram corte de salário no setor público, está funcionando para eles. Aposto que vai atrair investimento. Mas não sou desses que dizem “o setor público é a origem de todos os males”. O que aconteceu no Brasil não foi o setor público sozinho, foram o setor público e o privado juntos na cama fazendo essa lambança toda.
ÉPOCA – Neste início de ano, o Fundo Monetário Internacional e o Fórum Econômico Mundial manifestaram preocupação com a desigualdade e o crescimento não inclusivo. Os efeitos políticos da insatisfação já são visíveis em algumas eleições. O tema ganhou importância de verdade entre os economistas?
Fraga – Penso muito nisso. De um ponto de vista global o problema ganha outras dimensões. A fase dourada da globalização tirou bilhões de pessoas da pobreza. A desigualdade no mundo como um todo não aumentou. Talvez tenha aumentado lá na pontinha do 0,1% mais rico, porque hoje quem descobre alguma coisa espetacular vende no mundo inteiro e assim criam-se alguns bilionários. Isso é normal e até desejável, porque são pessoas inovando fantasticamente e são poucas. Mas quando se olha especificamente cada país, especialmente os mais avançados, a gente vê que a classe média está se arrebentando. Essa é que está reclamando mais e com razão. Isso ocorre porque eles estão concorrendo com gente do resto do mundo, que oferece o mesmo serviço, mas mais barato. Neste mundo integrado, várias eleições já espelham essa insatisfação da classe média.
Mas tem outra faceta da desigualdade que tem a ver com o Brasil: o enriquecimento não daqueles que produzem, mas daqueles que têm mais contato com o governo ou estão mais dispostos a pagar para obter vantagens. Isso é o mais complicado. Esse jogo de soma zero [em que um só pode ganhar se outro perder], de rouba montinho, precisa ser combatido com toda força. Alguma desigualdade sempre vai existir, é da natureza de uma sociedade em que, mesmo que haja igualdade de oportunidades, as pessoas não são todas iguais nem têm todas a mesma sorte. Eu, como liberal, defendo um Estado que funcione para a sociedade, e não para grupos, que tenha uma rede de proteção social, mas que sobretudo ofereça oportunidades. No Brasil, faltam oportunidades.
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