O livro mais importante do ano: Gustavo Franco e o mito do berço esplêndido


No que tem tudo para se tornar o livro mais importante do ano, e um ‘esquenta’ para a campanha eleitoral de 2022, Gustavo Franco vai publicar no final deste mês “Lições Amargas: Uma História Provisória da Atualidade” (História Real, 256 páginas, R$ 49,90.)

Um dos pais do Real, Gustavo é o Larry Summers brasileiro: um grande economista engajado no debate de políticas públicas e com serviços prestados ao País.

As ideias contidas em seu livro deveriam estar no centro do debate eleitoral do ano que vem —‌ se o Brasil tivesse a sorte de ter candidatos com visão de estadista e projetos de País.

Um ‘projeto de País’ é uma estratégia que coloca o longo prazo à frente dos interesses eleitorais de curto prazo; é um projeto que fala a verdade e administra remédios amargos em vez de servir a janta de hoje em detrimento do almoço de amanhã.

Ao que tudo indica, o Brasil continua muito longe de ter estadistas eleitoralmente viáveis, mas o livro de Gustavo tem o mérito de mostrar o quanto nós, brasileiros, flertamos com o fracasso e desperdiçamos oportunidades por acharmos que, de alguma forma, estamos condenados ao sucesso.

O Brazil Journal vai publicar ao longo da semana —‌ começando agora —‌ três excertos do livro.

No trecho de hoje, Gustavo volta ao tempo da Escravidão para explicar como nossa suposta predestinação ao sucesso sempre fez o Brasil adiar as tais reformas. Afinal, aquela foi a primeira reforma que atrasou demais.

“Como seria o Brasil se tivéssemos nos livrado desse ‘modelo econômico’ [a Escravidão] meio século antes?” ele pergunta no livro.

Mas Gustavo vai além e sugere que o próprio conceito de reforma precisa ser reformado e atualizado no mundo pós-covid.

“A agenda mudou, bem como sua urgência. As reformas de que falávamos em seguida ao Plano Real não são necessariamente as que fariam melhor ao Brasil pós-pandemia, pois os problemas ficaram mais difíceis. … Novos temas se apresentaram, enquanto velhos impasses ganharam nova importância e se mostraram em novos ângulos.”

A boa notícia: “Uma onda de reformas seguindo-se à pandemia talvez possa ser transformadora e abrir novas possibilidades de progresso.”

Em vez de tirar as crianças da sala, talvez seja melhor dar este livro e mostrar a elas como seu futuro está sendo roubado — pela esquerda e pela direita.

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Bem antes da pandemia, o andamento da economia já era frustrante.

No final dos anos 1980 a expressão “década perdida” ainda chocava observadores treinados a tomar o “milagre econômico” como nosso futuro provável, um “lugar conhecido”, onde tínhamos estado, ainda que por breve momento, mas para onde estávamos fadados a retornar. O mito do milagre ficou conosco durante muitos anos, acho que só nos escapou recentemente, diante da acumulação de decepções.

Havia uma certeza sobre essa vocação. Aceitávamos, meio a contragosto, a condição de economia “emergente”, mas era questão de tempo.

É difícil dizer se o otimismo, assim ingênuo sobretudo, não leva à preguiça. O problema é que esse futuro idealizado está longe de ser inevitável, não estamos condenados ao sucesso, tampouco ao fracasso; vai depender do que fizermos, nosso destino está onde sempre esteve, em nossas mãos, mas há uma síndrome nacional antiga, a de achar que vamos ficar ricos sem trabalhar, por conta de algum evento mágico, a descoberta de uma jazida ou de um choque econômico heterodoxo.

O Brasil adora um remédio milagroso.

Esse tipo de advertência, no passado, poderia servir para moderar nossa propensão ao autoengano, mas depois de tanta procrastinação, de algumas décadas perdidas e da pandemia, é preciso mudar o tom. Muitas portas já se fecharam, perdemos um tempo irrecuperável e talvez não seja mais possível retornar à primeira divisão. Exceto por um truque no “tapetão”.

Primeiro foi a hiperinflação. Com o tempo, ainda no século XX, fomos verificando que, de um lado, a receita desenvolvimentista juscelinista não funcionava mais; e, de outro, o mundo parecia irreconhecível, seus desafios não estavam codificados em nossos planos plurianuais de desenvolvimento, constitucionalmente incorporados na dinâmica orçamentária desde 1988. Em seguida, depois de resolvido o problema da moeda, ficou claro, também, que não há atalhos para a prosperidade e que mesmo uma descoberta espetacular, como a do petróleo da camada pré-sal, pode funcionar ao contrário.

Era para termos entrado para o Primeiro Mundo nesses últimos 30 ou 40 anos, mas fracassamos. Não apenas continuamos emergentes, como agora a maldição que assomou a Argentina no século XX – terminar o século mais pobre do que começou – parece muito próxima do Brasil do século XXI.

Na verdade, lamento informar, essa maldição é tão nossa quanto dos hermanos. Estranhamente fingimos não enxergar que o nosso século XIX foi um estrondoso fracasso econômico, que criou um abismo jamais recuperado entre nós e os americanos, com quem tínhamos condições próximas ao final do século XVIII. A renda per capita brasileira estagnou da Independência até o final do século, enquanto a americana quadruplicou. Em dólares constantes, a renda per capita brasileira de 1904, ano da Revolta da Vacina, foi exatamente a mesma – 713 dólares constantes de 1990 – que a de 1820. Em seu conjunto, o Império foi um desastre econômico. Portanto, não é a primeira vez que experimentamos uma estagnação prolongada sem perceber.

A historiografia cultiva um olhar benigno sobre o Império, exaltando a estabilidade das instituições e sobretudo a preservação da unidade territorial, um contraste positivo considerando a vizinhança. Porém, é impossível dissociar o péssimo desempenho econômico do Império de uma equação política viciosa, da qual faziam parte não apenas a escravidão, como os impedimentos à livre iniciativa ricamente resenhados na agonia do Visconde de Mauá.

Na verdade, foi o exato rompimento dessa equação que transformou a quartelada de 15 de novembro de 1889, um tanto inesperadamente, no nosso primeiro e mais confuso “choque de capitalismo”. As reformas econômicas da ocasião, a Abolição entre elas, simplesmente atrasaram demais.

Como seria o Brasil se tivéssemos nos livrado desse “modelo econômico” meio século antes?

Essa experiência fundadora é muito útil para o debate contemporâneo sobre reformas, pois, segundo se alega, não estamos prontos, ou os perdedores se julgam injustiçados e pleiteiam um adiamento, para o governo seguinte, ou, idealmente, para a próxima geração. É sempre a mesma conversa, como se a obsolescência fosse inconstitucional e as boquinhas pudessem sempre durar mais uma década ou duas.

Sim, o Brasil é o país da procrastinação, e nessa terra a lentidão é “protocolar, litúrgica, dignificante”, tanto que o Brasil “não tem problemas, apenas soluções adiadas”, conforme ensina Luís da Câmara Cascudo.

Mais uma vez, estamos no limiar de uma nova rodada de reformas e, coincidentemente, à beira do precipício. Na verdade, no país da procrastinação, a proximidade do precipício parece se mostrar essencial. Talvez não exista outra forma de romper com as amarras, senioridades e privilégios que oneram o nosso futuro que a antevisão de um gigantesco e vexaminoso abismo, cavado por nós mesmos, cujo fundo nem se consegue vislumbrar.

E assim, chegamos ao limiar da terceira década do século XXI com a medicação equivocada, contando “décadas perdidas” e “voos de galinha” em quantidades impensáveis, uma aritmética desoladora para um país que outrora ostentava a certeza de que estava predestinado à prosperidade. Não se pode mais dizer que são erros isolados, episódios que não alteram nosso destino econômico de glórias.

A ideia de reforma é muito útil. Essencial, na verdade. Mas a agenda mudou, bem como sua urgência. As reformas de que falávamos em seguida ao Plano Real não são necessariamente as que fariam melhor o Brasil pós-pandemia, pois os problemas ficaram mais difíceis. As variantes em matéria de procrastinação, bem como as dificuldades de execução, se tornaram exasperantes.

Novos temas se apresentaram, enquanto velhos impasses ganharam nova importância e se mostraram em novos ângulos. Uma onda de reformas seguindo-se à pandemia talvez possa ser transformadora e abrir novas possibilidades de progresso. Mas parece claro que é preciso reformar a ideia de reforma, tal como vem sendo experimentada.

O fracasso continuado do sonho desenvolvimentista, ao menos em seu formato canônico juscelinista, a degeneração dessa mitologia em hiperinflação, seguida da reconstrução da moeda em 1994, resultaram em estabelecer a ideia redentora de “reforma”, ou de “reformas”, no plural, como consertos de natureza variada ao ideal do desenvolvimento, mas com o intuito de criar um novo sonho, o qual, todavia, ainda teima em permanecer meio vago, indefinidamente aprisionado em um labirinto interminável de concepção e negociação.

Sim, “reforma” é a palavra que tem capturado, ainda que apenas como invólucro de um novo futuro, a necessidade de um novo modelo econômico, que precisa ser mais detalhadamente especificado, e o reconhecimento implícito, e meio ocioso, de que o velho modelo JK se esgotou, ou a ideia de que é preciso reverter muitas práticas que não estão funcionando

Reforma é o novo substantivo para o sonho, ocupando o lugar que antes cabia ao “desenvolvimento”.

Entretanto, a ideia de “reforma” se organizou no formato de módulos temáticos determinados pelas distorções mais flagrantes dos anos 1990, grandes e transcendentes reformas a serem implementadas em grandes fornadas, pois era o tempo do colapso do socialismo e da reconstrução econômica dos países da Cortina de Ferro. A ideia de reforma surgiu como reconstrução total, reinício, redefinição. É preciso reformar essa ideia, trazê-la para a nova realidade do Brasil que emerge da pandemia. É claro que precisamos ainda mais desesperadamente de reformas, mas seriam as mesmas? O que aconteceu com as da primeira safra?

Desde quando entraram para as prioridades nacionais, as reformas no Brasil ficaram aprisionadas a um gradualismo deliberadamente excessivo e a movimentos pequenos, tardios e invariavelmente insuficientes, à mercê de corporações enfurecidas, lideranças grisalhas amedrontadas, ou ambos, de tal sorte que, desafortunadamente, a ideia de “reforma” virou parte do establishment, um componente essencial da continuidade.

As reformas ficaram paradas no tempo, como Brasília, o futuro que não houve.

É estranho, mas não surpreendente, que nossas reformas ainda estejam estacionadas na pauta do início dos anos 1990 – o “choque de capitalismo” –, que, infelizmente, ficou pela metade. Não é que o Brasil precise adotar um capitalismo selvagem do tipo chinês, mas é necessário se livrar de traços anticapitalistas tremendamente prejudiciais ao progresso. O Brasil ainda possui uma quantidade obscena de empresas estatais, de obstáculos à importação, de obrigações tributárias acessórias e de tribunais do trabalho. Essas distorções não são meras exceções à ordem econômica fundada na “livre iniciativa” de que fala a CF (art. 172, IV): exceções em grande quantidade compõem a verdadeira regra, um mosaico de regras individualizadas, cada corporação tratada da forma seletiva que melhor lhe cabe.

O Brasil ainda está preso a um anticapitalismo selvagem.

Atolamos em uma espécie de negacionismo vaidoso: nossa incapacidade de aceitar que o modus operandi do progresso não era o que se pensava, e para o qual estávamos organizados e adaptados. É fácil se acostumar com a ideia de que não é preciso fazer nada para ficar rico. O problema é verificar, anos depois, que a apatia simplesmente não funciona.

É claro que a opção pode ser exatamente a de não fazer essas reformas pró-mercado, o que é perfeitamente legítimo. Mas é preciso viver com as consequências, que devem ser devastadoras para os nossos sonhos de desenvolvimento econômico.

É imperativo avançar, mas não há acordo sobre como fazê-lo. No Brasil, são imensas as áreas nas quais as ditas “melhores práticas” parecem estrangeiras e distantes. Muito nacionalismo de bravata, muita ideologia de autossuficiência, de eficácia muito duvidosa e com danos à nossa convivência com outros países.

Mesmo as práticas pertinentes à sustentabilidade fiscal, que acabamos adotando depois de muita pirraça, e que nos levaram ao chamado grau de investimento – ou seja, a uma posição honrosa em rankings internacionais de boa gestão macroeconômica –, infelizmente, retroagiram à província da dúvida.

A heterodoxia fiscal, como outros negacionismos típicos dessa época estranha, renasceu como rejeição à medicina convencional, e assim o Brasil se enraizou novamente em números fiscais muito perigosos para os padrões convencionais, mas muitos acham que isso não é problema.

Por tudo isso faz-se urgente a necessidade de reforma na ideia de reforma, inclusive para que se torne um esforço cotidiano, inscrito em programas de produtividade, assunto que deverá estar no centro de uma renovação dos termos de referência do sonho econômico brasileiro. Por estranho que pareça, a pandemia pode ajudar, pois nos levou ao impensável e removeu interdições ao debate de certos temas delicados.

Caímos em uma armadilha terrível: não se consegue perceber o efeito das “reformas” dos últimos anos, pois a economia não cresce, já faz tempo, e passamos a culpar as reformas que, na verdade, não fizemos, pois ingerimos o medicamento reformador em dosagens excessivamente diluídas, com vistas a não balançar o barco.

Não é de hoje que temos uma obsessão nacional por não balançar o barco e por contornar os assuntos que levam ao gás lacrimogêneo. Essa nossa cordialidade vai nos levando a versões leves e inofensivas das “reformas”, a maior parte delas, inclusive, admitimos abertamente fazer pela metade, por medo da encrenca; e outras, as mais transformadoras, vamos deixando para um “depois” bastante distante no tempo.

É como se tivéssemos encontrado uma fórmula ideal de não fazer “reformas”, mas mantendo vivo o assunto, um aperfeiçoamento macunaímico sobre o teorema de Lampedusa: para que tudo fique muito parecido com o que sempre foi, não mudamos mesmo nada de muito fundamental, mas permanecemos cultivando o mito das reformas, gastando energias políticas e sociais, correndo na esteira, trabalhando apenas com os consensos fáceis.