Casa das Garças

O Paradoxo das Almas

Data: 

14/06/2016

Autor: 

Monica de Bolle

Veículo: 

Blog Monica de Bolle[1], site Estadão

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Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

Fernando Pessoa, “Não sei quantas almas tenho”

 

“Num horizonte não muito distante podemos atingir o centro da meta”.

“Quando ocorrerem raros, fortes e infrequentes choques, que levem a inflação para fora do intervalo de confiança da meta, é relevante que a trajetória de convergência ao centro da meta seja ao mesmo tempo desafiadora e crível”.

Horizontes não tão distantes. Trajetórias desafiadoras e críveis, simultaneamente. Vaguezas? A vagueza, na fala, é condição daquilo que é vago e impreciso. A vagueza na pintura é condição da tinta que se distribui de maneira suave na tela. A vagueza na poesia é espaço para a reflexão, para interpretação íntima daquilo que o poeta não diz. Na poesia, na literatura, na pintura o não-dito, a vagueza, é mérito. Conclui-se, portanto, que o novo presidente do Banco Central, ao deixar vagos os objetivos da política monetária seria, também, poeta, escritor, artista? Disse o Valor Econômico sobre a posse de Ilan Goldfajn: “De uma forma bem suave, o novo presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, indicou que está contemplando a possível adoção de uma meta ajustada que permitiria levar a inflação ao centro da meta, de 4,5%, depois de 2017.” Quando dizia coisas semelhantes, embora jamais tenha falado de metas ajustadas, Alexandre Tombini não foi tratado com a mesma deferência. Ah, mas trata-se do novo. Ao novo, tudo. Ao velho, as batatas quentes do FMI, onde Tombini ocupará o posto de Diretor-Executivo. Eis, portanto, a constatação: na política econômica, a vagueza é por vezes condição necessária e suficiente. Sobretudo quando há graves obstáculos políticos pela frente.

Não estranhei as palavras de Ilan. O Banco Central, como sabem os economistas, é instituição que a cada momento mudou, estranhando-se continuamente, sem que se tenha visto ou acabado — por acabado entenda-se acabamento, não aniquilação.

Qual é o papel da política monetária no Brasil atual? Ao contrário de outras épocas, nosso problema principal não é monetário, é fiscal. É o déficit provável de R$ 600 bilhões, mais de 10% do PIB. É a perspectiva de que tais déficits continuem a assombrar-nos, de que a dívida pública continue a subir. “Ah, mas temos teto”, diz Meirelles. Teto para o gasto, teto para conter o crescimento do gasto. “Ah, mas não é bem assim”, disse, em recente entrevista para este jornal, Edmar Bacha. O teto é furado. Furado porque, como escreveu Alexa Salomão ao Estadão, há no orçamento pelo menos 14 tipos de gastos que não podem ser mexidos livremente. Eles, os gastos “imexíveis”, representam 76% da despesa primária. Disse eu para o Estadão: “PEC do Teto, sozinha, é nada”. Disse o economista Felipe Salto para o Estadão: “o grupo de gastos obrigatórios sobre os quais o governo não tem controle drenam R$ 878 bilhões do orçamento”. Quais são os gastos? São despesas com saúde e educação, vinculações orçamentárias específicas, emaranhado de regras de indexação que fazem crescer, de modo automático, gastos diversos, sobretudo na provisão de benefícios previdenciários. Para que “a política fiscal ajude a política monetária”, como disse Ilan, será necessário alterar as regras que hoje determinam nada menos do que três-quartos da despesa primária. Sem isso, o teto corre o risco de travar a administração pública. “Nem papel higiênico”, pontuou Edmar Bacha.

Consideremos. Para complementar o teto, será preciso tornar os gastos com educação e saúde despesas não-obrigatórias. Será preciso reduzir benefícios que, hoje, a sociedade brasileira vê como conquistas. Será preciso dizer a todos que as vinculações que dão sobrevida a grupos de interesse — não necessariamente aos mais pobres, que fique claro — terão de ser extintas. Viável? Possível? Aceitável?

Pois, aí estamos. Regime de dominância fiscal das mais dominantes, dominatrix. Dominatrix que inviabiliza qualquer vagueza sobre a política monetária, qualquer divagação ainda que proferida por grandes nomes da economia nacional. Caso não sejam encaminhadas ao Congresso as PECs necessárias para sustentar o teto, a fundação e os pilares do teto, teto desabará, morte prematura e anunciada. Ajuste fiscal, sem teto ou pilar? Não haverá.

O que haverá? Haverá a única válvula de escape para essas situações, válvula nefanda. Chama-se inflação. Horizonte não muito distante? Trajetória desafiadora, porém crível? Palavras vazias, sem arte ou precisão.

Mas, a inflação?

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

 

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