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“É perfeitamente legítimo a qualquer pessoa expressar de público suas ‘memórias do futuro’, para usar a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos – quer se realizem, quer não.” Assim abri meu artigo de 14/12/2014 neste espaço. O comentário vinha a propósito de discurso feito por Lula durante a campanha eleitoral de 2014, no qual afirmou que já se imaginava em 2022, nas comemorações de nossos 200 anos de Independência, defendendo, com Dilma, tudo o que haviam conquistado “nos últimos 20 anos”.
O primeiro discurso de Lula eleito para seu terceiro mandato, na noite de sua vitória, parecia indicar uma clara percepção do grau de polarização a que havíamos chegado e, principalmente, o reconhecimento de que uma legião de eleitores havia votado nele porque não queria mais quatro anos de Bolsonaro. Ali Lula afirmou que governaria para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para seus eleitores.
Mas Lula é Lula. “Quando completarmos 100 dias, teremos voltado com todas as políticas públicas que criamos e que deram certo neste país” é apenas uma numa sucessão de declarações recentes que evocam um passado glorioso, em modo campanha eleitoral. Mas objetivos meritórios exigem ações eficazes, consistentes e compatíveis com as restrições sob as quais qualquer governo deve operar. Mesmo aqueles que acham que um governo que emite a própria moeda tem amplo espaço de manobra reconhecem que existe uma “restrição da realidade” imposta pela capacidade de resposta da oferta doméstica, existente ou a ser criada pelo governo em articulação com o setor privado, um programa consistente e eficiente de investimentos. Alguns dos adeptos do amplo espaço de manobra reconhecem também que há, sim, restrições orçamentárias a que qualquer governo está – ou deveria estar – submetido no curto e médio prazos.
O projeto de lei do Novo Marco Fiscal encaminhado ao Congresso pelo ministro Fernando Haddad representa o reconhecimento de que há necessidade de respeitar tais restrições; de mostrar que o governo tem regras consistentes para a relação entre gastos, receitas, resultado fiscal e dívida pública, com números críveis para mostrar as respectivas trajetórias.
Dada a nossa história, não teria qualquer credibilidade um governo que se limitasse a afirmar seu compromisso com a responsabilidade fiscal. Principalmente quando muitos na cúpula do PT afirmam, ao mesmo tempo, que há gastos que não são “gastos” e que, portanto, deveriam estar fora da regra que os define.
Da mesma forma, na política monetária não teria qualquer credibilidade um governo que se limitasse a afirmar que envidaria o melhor de seus esforços para preservar a inflação sob controle – mas que teria objetivos mais importantes a perseguir. E que, portanto, a inflação seria a possível nas circunstâncias.
Ambos, regime fiscal e regime monetário, precisam ter discricionaridades restringidas por regras estabelecidas com clareza e acompanhadas pelo Congresso e pela opinião pública. Deverá ser resolvido o atual descompasso entre política monetária restritiva e uma política fiscal que é e será expansionista no que depender do presidente da República; possivelmente por meio da inclusão no Novo Marco Fiscal, pelo Congresso, da exigência de relatórios bimestrais ou trimestrais detalhados sobre a evolução dos gastos e receitas no bimestre (ou trimestre) e projeções para o ano à luz do resultado (e das metas definidas pelo governo). Também por meio da redução das exceções de gastos que estariam fora dos gastos a serem controlados, mas que não deixam por isso de ser gastos. Por último, é preciso indicar na lei o que deveria ser feito, em prazo hábil, se os números se distanciarem demasiadamente das metas estabelecidas. Avanços críveis na área fiscal permitem reduções nas taxas de juros.
O governo deverá demonstrar – na prática, não no discurso – que conseguirá realizar as receitas necessárias e que, ao mesmo tempo, controlará as pressões por expansão das despesas que surgem da sociedade e que certamente existem no âmbito do próprio governo.
Desde 2003, e passando pelas confiantes declarações de Lula na campanha de 2014, o mundo mudou. E também mudou o Brasil, que é hoje ainda mais complexo e difícil de governar. O período inicial deste governo que chega em breve a seu primeiro inverno mostra, por meio de derrotas recentes, que o Poder Executivo não tem (ainda?) uma base de sustentação consistente num Congresso cuja musculatura é hoje muito maior. Aumentou sua parcela de controle sobre a execução do Orçamento por meio de emendas parlamentares impositivas, cresceu seu poder político por meio de vultosos recursos para os fundos eleitoral e partidário. A entrevista do presidente Arthur Lira ao jornal O Globo em 8/5/2023 deixa claro que os tempos são outros.
Concluo com Raymond Aron, “a sociedade moderna precisa ser vista sem arroubos de indignação ou de entusiasmo”; e com Eduardo Giannetti, “a lâmina da serenidade precisa de dois gumes para eliminar excessos de otimismo e de pessimismo”. São as sábias lições que me vêm à mente nestes tempos difíceis.
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ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM
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