O Real improvável


Luiz Felipe Lampreia, então secretário-executivo do Itamaraty, telefona para Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Relações Exteriores, e informa: “Estou aqui com o ‘Diário Oficial’. Diz que você é ministro da Fazenda, e eu, das Relações Exteriores”.

 

Nascia assim o Plano Real, embora, na ocasião ninguém imaginasse isso, nem mesmo os seus autores.

 

E você, leitor, vai entender tudo quando ouvir os episódios deste podcast, Plano Real – Histórias Não Contadas.

 

Acompanhei de perto esse momento inicial, até engraçado. Estávamos na noite de 19 de agosto de 1993 e eu era diretor de jornalismo da TV Bandeirantes.

 

Conhecia bem FHC. Havia trabalhado com ele, escrevendo alguns textos, quando ele era senador, lá em 1983. Conheci Lampreia nessa mesma época. Eu era coordenador de Comunicação do Ministério do Planejamento, e ele, secretário de Relações Internacionais.

 

Sabendo que o presidente Itamar Franco, à revelia, nomeara FHC para a Fazenda, telefonei para Lampreia. Confirmou e contou que o novo ministro estava jantando em Nova York, na residência oficial do embaixador brasileiro na ONU, Ronaldo Sardenberg (Sim, parente).

 

Liguei para lá, falei com o primo, insisti, FHC veio ao telefone. Não deu qualquer detalhe nem declarações. Disse que só faria isso na volta ao Brasil. Na verdade, não tinha o que dizer naquele momento.

 

Mas sabia muito do que precisaria fazer. Começamos a entender o que poderia vir pela frente com a primeira escolha de FHC. Já na manhã do dia 20, alcançou Edmar Bacha, quer acabara de dar uma aula na PUC-Rio.

 

Isso queria dizer muita coisa. Bacha era o principal economista do PSDB, com muito trânsito político. Havia sido um dos principais nomes dos chamados “economistas de oposição”, que criticavam a política econômica da ditadura.

 

Sobretudo, pertencia à PUC-Rio, onde se juntavam as cabeças que estudavam um caso tão difícil na teoria quando na prática: como entender e debelar a hiperinflação brasileira.

 

Mais ainda: Bacha havia integrado a equipe do fracassado Plano Cruzado, de 1986, e, como vários outros colegas, sentia-se em dívida com o país.

 

Vem coisa aí, foi a sensação entre jornalistas e nos meios econômicos. Ao mesmo tempo, todo mundo sabia que seria muito difícil.

 

O convite-convocação a Bacha dizia tudo. No telefone, FHC lhe disse: “Me puseram nessa encrenca e você vem comigo”.

 

Expectativas baixas. FHC era o quarto ministro da Fazenda de um presidente Itamar enfraquecido no Congresso e na sociedade. A hiperinflação disparava. E faltavam menos de dois anos para o fim do governo.

Entre os jornalistas, um grupo amplo achava que só tinha uma saída para o momento: outro congelamento de preços e salários. Aliás, o próprio Itamar esperava algo assim.

 

Eu havia participado da equipe do Plano Cruzado, na parte de comunicação, conhecia bem os economistas e sabia que congelamento estava inteiramente fora de cogitação.

 

Então, o quê?

 

Empurrar com a barriga, dar uma ajeitada nas contas públicas e cair fora?

 

Aqui entra a extraordinária liderança de FHC. Nas condições mais adversas, não sendo ele um economista, conseguiu reunir a nata do time que se dedicara anos a estudar hiperinflação. Mais: convenceu-os que era possível fazer o que seria o Plano Real.

 

Na verdade, como se acompanha neste podcast, FHC teve de convencer sua turma várias vezes. Houve momentos em que os economistas achavam que estava tudo perdido – como quando Itamar, sem falar com FHC, demitiu o presidente do Banco Central, Paulo Ximenes.

 

Agora, acabou, pensou a equipe da Fazenda. Mas, como se conta no podcast, FHC foi a Itamar e de lá – “milagre”, diz Bacha – saiu com Pedro Malan presidente do BC e, sobretudo, saiu como dono absoluto da política econômica.

 

A equipe sentiu algo assim: agora tem que fazer.

 

Mas havia ainda outras resistências, no Congresso, por exemplo, que o “senador” Bacha enfrentou, e muito ceticismo na sociedade, inclusive entre jornalistas.

 

Perguntei a Bacha se ele tinha uma crítica, a nós, jornalistas, por esse ceticismo, expresso mesmo quando o novo real estava em circulação, com a população orgulhosa das notas estalando.

 

“Mas ninguém acreditava”, respondeu, aliviando a barra.

 

Ainda bem que FHC e seus pais do Real acreditaram.

 

Carlos Alberto Sardenberg é colunista de “O Globo” e âncora da Rádio CBN. Este é o primeiro de uma série de seis textos sobre os podcasts apresentados pelo autor na CBN sobre os bastidores do Real